Messalina vive numa estátua em mármore, Lívia Drusa teve direito a busto, a cabeça em calcário de uma mulher parecida com Cleópatra enfeita o Museu Britânico, Clódia foi pintada a chorar por um pardal, o Louvre guarda Cornélia num óleo sobre tela e Gala Placídia conquistou um lugar na Cruz de Desidério.
De 753 a.C. a 450, 14 figuras foram muito mais que peças de galeria numa Roma onde o estatuto permitido às mulheres raras vezes merecia ser emoldurado e exibido ao público. Recordemos a sua força.
A informação que temos sobre estas mulheres é narrada por homens. Há alguma excepção?
Não temos nenhum registo de textos escritos por mulheres. Lembro-me de que Tácito refere uma obra escrita por Agripina, mãe de Nero, de que falo no livro. Refere brevemente que ela escreveu as memórias da família, mas essas memórias perderam-se. Tácito, provavelmente, leu-as; infelizmente, não chegaram até nós.
Como poderemos avaliar esta narrativa masculina? Acredita que poderá não fazer a devida justiça ao papel destas mulheres ou, por outro lado, conseguirá garantir maior isenção na análise?
Só podemos especular. Pelo que percebi, isenção, não. [risos]. Até porque as biografias, e estou a pensar em Suetónio e Plutarco, são políticas. São escritas depois de tudo isto ter passado, o que também é conveniente. Escrever contra Nero durante a época de Nero não era aconselhável, embora tenha acontecido. Espalharam-
-se panfletos por Roma quando Nero matou a mãe, o que era algo terrível. Num contexto em que o homicídio é relativamente normal e todos escapam impunes, de repente parece que há um limite. Matricídio já é outra coisa.
“Deus não podia estar em todo o lado, por isso criou as mães”, é uma das frases que cita. A maternidade acaba por ser o estatuto mais respeitado?
Exacto. É o caso de Cornélia, que teve 12 filhos, ou dizem que os teve. Estas biografias das quais retiro estas histórias, todas feitas por homens, também tiveram os seus objectivos. São objectivos de legitimação do poder de quem está no poder. Suetónio escreveu durante os reinados de Trajano e Adriano, muito posteriores aos Julius Claudius, que representam uma espécie de parêntesis de uma história longuíssima, um fosso de crueldade. Não quer dizer que não tenha havido mais violência, mas aquele momento em particular é circunscrito ao clã e a uma época.
Organiza estas figuras cronologicamente. É possível encontrar informação anterior à mulher mais antiga perfilada?
Não conheço outras figuras, recuando mais no tempo. Com certeza haveria outras mulheres sobre as quais falar. Também poderia ter desenvolvido outras mulheres que mencionei brevemente, caso de Pompeia Plotina, mulher de Trajano, ou Fúlvia, que é a mulher de Marco António, enquanto ele mantém uma relação com Cleópatra. Depois, também falta muita informação. No capítulo sobre Helena de Constantinopla, ela é descrita em relação ao filho Constantino.
A mulher é quase sempre descrita em função de outrem?
Sempre em função do sítio ou da tribo a que pertence. É claro que se Adriano é um dos imperadores bons, ele não pode ser casado com uma imperatriz do tipo Agripina. Tem obviamente a seu lado uma imperatriz boa. O mesmo se passava com Trajano ou Marco Aurélio.
Na introdução defende que “há poucas mudanças de fundo quanto ao que se espera de uma mulher”. Estas histórias começam em 753 a.C. O que herdámos ainda?
Há coisas que são obviamente muito diferentes, como o facto de podermos estar aqui a falar, e não é algo assim tão antigo. Cem anos é muito pouco tempo; só aqui neste livro estão mais de mil anos. Mas há coisas que não mudam. Acho que as expectativas em relação às mulheres são mais ou menos as mesmas. O que se esperava de uma mulher na Roma antiga é que tivesse vocação para o casamento. Hoje em dia não se fala também disso? É uma ideia que se mantém, apesar das transformações. O que se espera das mulheres é mais ou menos parecido. Claro que o seu papel e direitos mudaram. Hoje podemos herdar, não é preciso ter um tutor. Mas tudo isto não mudou assim há tanto tempo. Esse problema está descrito na série “Downton Abbey”, por exemplo. Mary não podia herdar, tinha de ser um homem. Cem anos é uma gota na história.
Encontrou figuras muito transgressoras entre a conformação?
Sim, a figura de Messalina é muito transgressora. Aliás, tão transgressora que quase desconfiamos de todas aquelas histórias que sobre ela contaram. É difícil classificá-la. O mais importante na sua história é aquele final, muito moralista: tens esta liberdade toda, então vais ter de pagar com a vida por isso. Tudo o que se desviasse de uma norma rígida conhecia esse fim. A mulher trabalhava as lãs, fazia a sua própria roupa. Era o campo de autonomia que tinha, um campo doméstico. Esse sempre foi o campo reservado à mulher. Mas nestes casos, a relação com os filhos não é uma relação de estar com eles ou de ensinar. A dada altura apercebi-me de que as mulheres eram educadas tendo em vista o futuro dos filhos.
São essencialmente formadoras de cidadãos?
Sim, e aqui estavam a formar imperadores. É claro que havia a figura do tutor, mas a mãe começa a ter um peso, sobretudo a partir de Cornélia. É muito forte e muito culta. Elas acabam por ter um papel determinante, também porque são elas que manipulam a chegada de certas pessoas ao poder. O caso mais flagrante é o de Agripina, que faz com que Nero ascenda. Faz tudo por isso.
Têm noção desta capacidade de manipulação?
Perfeitamente. É assim que a história nos é contada e não me surpreende. No contexto, é plausível. Elas fazem parte deste ambiente de poder, exercem-no também à sua maneira. Não de uma forma executiva, mas têm influência. Penso em casos mais tardios, como o de Julia Domna, mulher de Sétimo Severo. Fala-se de mecenato e até de um círculo de intelectuais que se reunia à sua volta. É outro tipo de poder.
Ousavam intrometer-se noutros domínios?
Não era boa ideia quando uma mulher se intrometia noutros domínios. Fúlvia, por exemplo, acha que a dada altura pode comandar as tropas e a coisa corre muito mal. Depois sabemos que algumas mulheres de imperadores acompanham os maridos nos acampamentos militares, e isso é visto com agrado, e até recebem títulos como “mãe do acampamento”. São figuras protectoras e de compaixão e, assim, são toleradas naquele ambiente hostil.
É inevitável destacar Cleópatra. Justifica-se que seja a mais célebre de todas?
Faz todo o sentido. É extraordinária e os próprios relatos são incríveis. Era muito teatral. Penso nas duas entradas em cena, uma com Júlio César, outra com Marco António, e são absolutamente irresistíveis. O curioso é que estas histórias são contadas há dois mil anos e é a mesma história que Plutarco contou. Talvez Shakespeare tenha tido um papel importante ao fixar essas histórias. É talvez a figura feminina que mais está em pé de igualdade com os homens. Não só pelo estatuto, mas sobretudo por uma questão de atitude. Era uma mulher de Estado, realmente. Com Marco António há relato de uma relação de amor com uma cumplicidade incrível, e com amizade, o que era inaceitável à época. A amizade pressupõe uma igualdade entre pessoas e, por isso, muitas vezes se diz que as mulheres não podem ser amigas dos homens e vice-versa. Há esta tensão.
O que a levou a escrever sobre as mulheres que fizeram Roma?
Estas, em particular, pela possibilidade de ter informação sobre elas. O livro foi um convite da editora. Estava a fazer a minha tese de doutoramento em Teoria da Literatura na Faculdade de Letras, e a estudar Plutarco. Hei-de terminar esse projecto. Pareceu-me um desvio não muito grande. Achei que este conjunto daria pelo menos uma visão global, desde a fundação de Roma até à queda do império.
Durante esse período notam-se algumas diferenças no papel da mulher?
Não muitas, mas há algumas variações. Lembro-me do tipo de casamento, com manus e sem manus, que é muito importante. A mulher estava sob a jurisdição do pai e passava a estar sob a tutela do marido. No casamento “com a mão”, em caso de divórcio, o que podia acontecer, o dote ficava com o marido, o que implicou uma distribuição de património que não interessava, porque deixava de ficar na família da mulher. A partir do século I a.C., as coisas começam a mudar. Na época de Augusto dá-se o casamento sem manus. O dote permanece na mão do pater familias.
Observando alterações como estas, é possível dizer que à luz da época a sociedade admite algumas evoluções?
Acho que sim. Não podemos dizer que seja uma sociedade muito tolerante e aberta em relação às mulheres, mas talvez admita algumas mudanças – nem sempre para melhor, claro. Na época de Augusto impõe–se uma série de leis altamente restritivas e moralizantes. Penaliza-se o adultério da mulher com o exílio. Uma coisa são as leis, outra coisa é a vida das pessoas e, se calhar, temos uma percepção melhor através da literatura que das leis. Havendo uma taxa de mortalidade infantil brutal, era comum perder filhos. Como era isso vivido? Isso tem de implicar um sofrimento, são coisas que não mudam. Mas temos apenas um vislumbre da forma como isso acontecia. Há uma carta de Plutarco à mulher, depois da morte da filha com dois anos. Chama-se “carta de consolo à minha mulher”. Isto significa que, sendo comum, não seria banal.
Falou da literatura. Qual destas figuras escolheria para escrever um romance?
Não seria capaz de romancear; a ficção é um género muito peculiar. Mas talvez Agripina, que é interessante, ou a fascinante Gala Placidia, que coincide com a queda do império. Vale a pena ler a sua história.