“Labanta braço, grita bo liberdade.” O mote é dos Tubarões e só pode morder a quem nunca ouviu falar do histórico grupo, embaixador da cultura de Cabo Verde no mundo. Vinte anos depois de se separarem, o grupo que foi liderado pelo saudoso Ildo Lobo encerra o festival Rotas & Rituais, que celebra os 40 anos da independência das ex-colónias. Mário Bettencourt, o baixista da banda, atende-nos da Cidade da Praia.
Como está a ser este regresso e o que têm preparado?
Está a ser muito bom. Vamos tocar essencialmente o que já havíamos tocado noutras épocas. Neste regresso, vamos chamá-lo assim, é bom que as pessoas ouçam o som e as músicas que fazíamos. Aquela nostalgia sempre vem ao de cima.
É natural que muito tenha mudado na forma de fazer música. Que impacto tem esta distância em relação aos primeiros anos?
Absolutamente. Mudou e de que maneira, mas mantivemos sempre a nossa matriz. A forma de tocar e estar na música. Só faz sentido o regresso dos Tubarões com a forma de estar que sempre tivemos.
A sua chegada é posterior ao início da formação. Como se juntou ao grupo?
Entrei em 1975, com 14, 15 anos. Hoje tenho 55. E acho que de todos os elementos que vão estar agora em Portugal nenhum fazia parte da banda original. Foram buscar-me ao liceu. Eu na altura disse que eles tinham baixistas em Cabo Verde bem melhores. Mas eles disseram que não precisavam do melhor, precisavam de um que cumprisse. [Risos.]
Que referências tem do começo do grupo, em 1969?
Ainda não fazia parte. Foram cinco jovens que entenderam criar a banda, e depois seguiu-se o processo natural dos Tubarões.
E esse nome…
Acho que tem a ver com a própria ilha. Essa espécie abunda muito, daí a escolha. Foram entrando pessoas, saindo pessoas, a lei natural da vida. Uns por questões profissionais, ou por necessidades de família, outros apenas por não quererem continuar. Fomos mudando até chegarmos à formação que temos hoje.
Ildo Lobo, o vocalista fundador, era funcionário da alfândega, e no grupo todos tinham outro tipo de ocupações. Essa conjugação de actividades manteve-se?
Exactamente. Era uma das maneiras de os Tubarões sobreviverem. Ninguém podia tocar sem ter uma ocupação em que não dependesse da música.
Que memórias guardam de Ildo Lobo?
Temos várias histórias curiosas, em concertos, por exemplo. O Ildo, de tanta emoção num concerto, deita-se para o chão e nós todos em palco de boca aberta. Ele era uma pessoa muito certinha, não sabíamos o que se passava. Enfim, são coisas que neste momento fazem parte das recordações e que nos dão prazer.
Ainda é muito vivo esse papel preponderante no país, sobretudo a partir de 1975, ano da independência?
Sim, acho que na altura era um dever de todos os cabo-verdianos conscientes, que queriam de facto mudar o rumo da história do país. Acreditámos na independência, no projecto que viria, e fizemos parte activa disso. Tivemos temas que se tornaram ícones, como o “Levanta braço”, “O chão de morgado”, o “5 de Julho”. São músicas que na altura quando tocávamos eram muito bem aceites. Muita gente entrou nesse comboio devido às mensagens veiculadas pelas canções.
Essas mensagens conseguem hoje continuar a ligar gerações?
Os Tubarões sempre tiveram um público bastante heterogéneo e de diferentes idades. Agora tivemos uma experiência, no Festival da Gamboa, em que tínhamos diferentes gerações lado a lado a ouvirem e a deliciarem-se com a música.
Como se desfaz o grupo, em 1994?
Na altura acabámos pura e simplesmente porque já não havia condições. Estar no activo implicava despesas que não correspondiam às receitas. Não podíamos estar a endividar-nos só para mantermos a banda. Não dependíamos só de nós. Tínhamos convidados que tinham de ser remunerados. Quando se complicou tivemos de suspender a actividade e ser realistas. Era melhor parar.
Que andaram os elementos do grupo a fazer entretanto?
Cada um foi para a vida real. Eu criei uma empresa de espectáculos, o Zeca [Couto, no piano] continuou no ensino da Música, o Toto [Silva, na guitarra] continuou também no ensino, o Jorge [Lima, percussão] trabalhou com o serviço de sempre. O Jorge Pimpas na música. Cada um a fazer aquilo de que mais gosta, para viver tranquilamente.
Já tinham pensado na hipótese de uma reunião ou a ideia surgiu apenas agora?
A reunião acontece na sequência deste convite da Câmara Municipal de Lisboa. O Festival da Gamboa [na Cidade da Praia] teve uma boleia.
É mais um regresso a Portugal.
Portugal basicamente era o nosso palco predilecto. Já fizemos o Coliseu, em que gravámos o nosso disco ao vivo. Tocámos por tudo o que era sítio, de norte a sul. Já fizemos digressões com os Trovante, os Madredeus, etc. Já fizemos muito shows, no Avante, por exemplo.
Uma das vossas músicas faz parte da banda sonora do filme “Cavalo Dinheiro”, de Pedro Costa. Como viu esta escolha?
Ai é? É uma novidade. Qual é a música?
“Alto Cutelo”.
Opa, essa música é muito expressiva. A letra, o teor, a forma que encontrámos para enquadrar esse poema, foi muito bem aceite em Cabo Verde. Em função do poema normalmente escolhemos as músicas dos compositores em bruto. Ouvíamos os hinos, juntávamo-nos na sala de ensaios e começavam a surgir ideias. Íamos compondo aqui e ali até ao produto final. Éramos muito exigentes com a forma de interpretar as músicas.
Gravaram oito discos entre 1976 (“Pepe Lopi”) e 1994 (“Porton d’nôs ilha”) mas é difícil seguir-lhes o rasto. Como se arranjam CD dos Tubarões?
Já não é editado há muito. Sinceramente, não sei como se chega a eles. Mesmo aqui na Praia pode encontrar-se numa ou noutra loja, mas é difícil.
Depois desta actuação em Lisboa, há planos para continuarem a tocar juntos?
Já temos vários convites mas é uma coisa de cada vez. Vamos agora deliciar-nos com este show de dia 29 e logo se vê o que dá. Podem esperar o melhor dos Tubarões, com o repertório da nossa geração. A sonoridade não vai fugir muito. Funaná, coladeira, a morna tocada no seu melhor. É para dançar, na nossa música é obrigatório.