“Sonhei que eras uma cabra”



Há um tipo que regista as frases que a namorada diz durante o sono e as partilha na Internet, mais concretamente no Reddit, formando uma espécie de cadáver esquisito de balbuciação – expressões tão reveladoras como “preciso de mais pés” ou “parece que tenho teclados agarrados ao corpo”.

Uma vez, num daqueles raros mas incríveis sonhos em que me apaixono perdidamente por um estranho, ouvi o que me pareceu a mais bonita declaração de amor de sempre. Acordei, escrevi-a num papel e voltei a adormecer. No dia seguinte, fui ler: “O teu cabelo cheira a maçãs de Abril.” Não era grande coisa afinal. Podia ser um elogio revolucionário ou uma referência a uma qualquer espécie de maçã sazonal muito saborosa, mas é óbvio que não fiz qualquer esforço interpretativo, até porque já me disseram coisas mais bonitas na vida real. E, convenhamos, era só um sonho. Como quando a Pam acordou e afinal o Bobby do Dallas não tinha morrido.

Não há grande coisa a retirar do sonho da Pam senão a conclusão óbvia de que muitas vezes o medo de perder aqueles que amamos nos faz sonhar que eles morrem ou, numa versão mais subtil mas mais perversa, que não nos ligam nenhuma. Sonhei várias vezes que os meus namorados me ignoravam ou desprezavam, mas tive sempre pudor de partilhar esse tipo de sonho com o protagonista da altura. Na verdade, estaria só a inquietá-lo com uma insegurança minha latente que não interessava trazer para o mundo real.

Mas nem toda a gente tem esse discernimento – talvez quem encare o sonho como um oráculo –, por isso já houve quem acordasse ao meu lado amuado, a dizer coisas meiguinhas como “sonhei que eras uma grande cabra”. E não é nada mau, tendo em conta descrições dantescas que já ouvi de discussões conjugais que começaram por causa de sonhos deste género. Ou até mesmo histórias de pessoas que acordam de trombas por não terem conchinha suficiente durante a noite.

Talvez o senhor que partilha as frases da mulher na Internet desista de o fazer se a ouvir balbuciar qualquer coisa como “Serei sempre tua, Carlos Henrique”, ou “Jorge Manuel, dá-me com mais força”. Mas tenhamos sempre em mente que a vida já é uma canseira de olhos abertos, quanto mais se nos armarmos em Freud das nossas insegurançazinhas.
Se há coisa a que o meu cabelo não cheira é a maçãs.

Guionista, apresentadora e porteira do futuro
Escreve à sexta e ao sábado

“Sonhei que eras uma cabra”



Há um tipo que regista as frases que a namorada diz durante o sono e as partilha na Internet, mais concretamente no Reddit, formando uma espécie de cadáver esquisito de balbuciação – expressões tão reveladoras como “preciso de mais pés” ou “parece que tenho teclados agarrados ao corpo”.

Uma vez, num daqueles raros mas incríveis sonhos em que me apaixono perdidamente por um estranho, ouvi o que me pareceu a mais bonita declaração de amor de sempre. Acordei, escrevi-a num papel e voltei a adormecer. No dia seguinte, fui ler: “O teu cabelo cheira a maçãs de Abril.” Não era grande coisa afinal. Podia ser um elogio revolucionário ou uma referência a uma qualquer espécie de maçã sazonal muito saborosa, mas é óbvio que não fiz qualquer esforço interpretativo, até porque já me disseram coisas mais bonitas na vida real. E, convenhamos, era só um sonho. Como quando a Pam acordou e afinal o Bobby do Dallas não tinha morrido.

Não há grande coisa a retirar do sonho da Pam senão a conclusão óbvia de que muitas vezes o medo de perder aqueles que amamos nos faz sonhar que eles morrem ou, numa versão mais subtil mas mais perversa, que não nos ligam nenhuma. Sonhei várias vezes que os meus namorados me ignoravam ou desprezavam, mas tive sempre pudor de partilhar esse tipo de sonho com o protagonista da altura. Na verdade, estaria só a inquietá-lo com uma insegurança minha latente que não interessava trazer para o mundo real.

Mas nem toda a gente tem esse discernimento – talvez quem encare o sonho como um oráculo –, por isso já houve quem acordasse ao meu lado amuado, a dizer coisas meiguinhas como “sonhei que eras uma grande cabra”. E não é nada mau, tendo em conta descrições dantescas que já ouvi de discussões conjugais que começaram por causa de sonhos deste género. Ou até mesmo histórias de pessoas que acordam de trombas por não terem conchinha suficiente durante a noite.

Talvez o senhor que partilha as frases da mulher na Internet desista de o fazer se a ouvir balbuciar qualquer coisa como “Serei sempre tua, Carlos Henrique”, ou “Jorge Manuel, dá-me com mais força”. Mas tenhamos sempre em mente que a vida já é uma canseira de olhos abertos, quanto mais se nos armarmos em Freud das nossas insegurançazinhas.
Se há coisa a que o meu cabelo não cheira é a maçãs.

Guionista, apresentadora e porteira do futuro
Escreve à sexta e ao sábado