“Posso ajudar?”, perguntam-nos após a nossa entrada meio aos apalpões. Timing perfeito que evita o típico “está alguém em casa?” e nos faz mergulhar no ponto de venda da Fábrica Sant’Anna. Dois degraus colocam-nos perante uma amostra do mundo da mais antiga empresa de azulejos a operar em Portugal – se dissermos que é desde 1741 acredita? –, hoje localizada no número 96 da Calçada da Boa Hora, perto da Rua Junqueira, em Lisboa.
Abafado por entre as tascas e cafés de cinco assentos, o quartel-general da Sant’Anna parece não bater certo com a paisagem tradicional da zona onde se inscreve. Porém, quando Carolina Vicetro – a anfitriã de serviço – chama aquele que será o nosso guia particular por uma tarde, Francisco Tomás, director comercial, e este nos leva à olaria já cá não está quem falou. É aqui que se inicia um percurso que nos embrenha numa arte esquecida, um vaivém exploratório a um passado que muitos desconhecem, um passado que ainda consegue ser presente e agora pretende ser Património da Humanidade da UNESCO. O enredo que se segue exige um rótulo de embalagem fácil, cuidado com os pés.
A PRECISÃO É ALGO NATURAL Mal Francisco nos abre a porta da olaria, no piso térreo da fábrica, o fado projectado de uma aparelhagem Sanyo impera. À esquerda, pilhas e pilhas de moldes dispostos ordeiramente em suportes de metal. Entretanto Francisco vai-nos explicando que aqui na Sant’Anna só se trabalha com argilas naturais. “Até ao terramoto de 1755 em Lisboa, éramos uma empresa de bairro vermelho, tijolos. Com a necessidade de reconstruir a cidade começámos a dedicar-nos a esta arte”, garante Francisco, e ainda adianta depressa que os processos não mudaram muito com o tempo, quer para os azulejos, quer para as faianças.
Contudo, como as palavras nem sempre têm a potência de projectar imagens completamente fidedignas, nada como testemunhar a concepção de um azulejo em formato exemplo para jornalista ver. Hora de Ariosto Salvado, funcionário da Sant’Anna há 42 anos, 60 de idade, fazer a sua arte – caso para dizer que o segredo está na massa. A argila é amassada na lastra, vulgo rolo de massa para leigos do pão – mas com dimensões significativamente maiores – e de seguida inscrita no molde em questão. Arioso parece fazer disto coisa de carregar pela boca, pela forma como trata o material com tamanho à vontade. O suposto seria a massa ficar a secar durante cinco ou seis semanas, mas aqui o tempo foge. “É preciso ter muito cuidado para não haver falhas, para não ficarem bolhas de ar na argila”, explica o homem de poucas falas, que se limita a encolher os ombros quando sugerimos que aquilo para ele é canja. Resposta entendida, que serve de mote à continuação da visita. Seguimos o rumo da argila, até à zona dos fornos.
CUIDADOS METEOROLÓGICOS O trajecto até à zona dos fornos é feito com especial atenção ao que se pisa, e ainda assim quase tropeçamos num carrinho de mão com jornais desportivos de 2012. Dois passos e estamos de caras com três fornos que só do tamanho assustam. O banco ao lado de um dos fornos permite perceber o tamanho que um objecto como este pode ter – chamar-lhe objecto chega a ser ridículo. Pior é quando Francisco Tomás nos aponta para o termómetro dos dito cujos, os 942 graus fazem-nos suar de imediato. Uns metros ao lado, Francisco agarra em quatro azulejos que tinham ido ao forno há uns dias: “Repare como nenhum destes é igual a outro. Estamos perante uma produção totalmente artesanal.”
Após uns minutos a vislumbrar os fornos, eis que chega junto de nós Alberto Bruno, 53 anos, desde 2000 na Sant’Anna, que como director de produção regista as diferentes temperaturas que se vão fazendo sentir nos fornos. “Temos de estar constantemente a controlar o calor dos fornos, há diferentes vaganas, que são os suportes, há temperaturas distintas para as diferentes peças, cada uma reage de forma diferente, é por isso preciso acompanhar. Por vezes acontece uma surpresa, que faz estalar e perder peças, e o nosso trabalho é evitá-las ao máximo”, afirma ao estilo de um meteorologista. “Daí se explica que ontem o Alberto só tenha saída daqui à uma da manhã. Quando os fornos estão em funcionamento tem de estar cá alguém. Não me adianta ter muita gente a pintar se não houver capacidade de produção”, remata Francisco.
UM TENTO NÃO É UM PAU DE VASSOURA Subimos as escadas para a sala de controlo de qualidade, onde uma série de painéis artísticos – o terceiro produto aqui concebido, além dos azulejos e das faianças –, em que se incluem bastantes figuras tradicionais portuguesas, Zé Povinho à cabeça, como não podia deixar de ser, que nos acenam com a simpatia de uma tradição secular. “Os nossos trabalhadores cresceram no meio disto, a sua ocupação é uma tradição com mais de 300 anos, isto relembra-lhes o que é ser português”, aproveita para explicar o director comercial da Sant’Anna enquanto nos enquadra no espaço, que é igual a dizer que esta sala é o lugar onde se montam os painéis para enviar aos clientes internacionais – convém dizer que a Sant’Anna exporta entre 85% e 90% da produção.
O desvio no ciclo de seguimento da argila acaba aqui. É que uma porta depois estamos junto à vidração, onde a massa já cozida é mergulhada num alguidar com um pó branco, aquilo a que por norma chamamos vidro. As férias do pessoal desta secção da Sant’Anna – que gozam uma semana em Maio e folgam três em Agosto – obrigam Francisco Tomás a ser o responsável pela demonstração da vidração. “Sei a teoria mas falta-me o jeito. Para isto ficar decente teria de estar aqui a praticar durante muitos anos”, defende-se após a falta de êxito com um pequeno objecto. Nós faríamos pior, com certeza.
Eram 16h quando alcançámos a zona de pintura da fábrica. Aqui há quem também esteja de férias, mas as cadeiras vazias, explica-nos Francisco, “são da hora do lanche aqui na fábrica, pára-se sempre”. Merenda arrumada na zona própria, e lá regressam às suas secretárias, onde cabem todas as cores do mundo, recipientes e água, para obter todas as misturas e variantes perfeitas.
Também aqui o pincel segue um rigor extremo, pelo menos, garantia que nos é dada pela precisão do movimento de mão de Vítor, 56 anos, que há 43 anos, à boleia de um tio, veio desaguar numa foz que se revelaria duradoura. Pinta um prato com o auxílio de um tento, “algo que para outras pessoas podia ser apenas um pau de vassoura”, avisa Francisco, mas que tem antes a função de deixar a mão fluida, ou o peso estragaria a perfeição da pintura. Tentamos não nos distrair e perceber o que pensa Vítor da candidatura do azulejo português a Património da Humanidade. “Como trabalho nesta profissão, gostei de saber, fiquei contente, mas a verdade é que o trabalho não pára, há que continuar a pintar”, responde brevemente.
Como de resto parece ser a natureza destes homens e mulheres, que fazem jus a uma tradição muito nossa. Sobra o fado na rádio, os pincéis a sacudir a tinta nos frascos, os azulejos a ganhar forma. É assim desde 1741.