Na areia, os homens que passam pela multidão a vender bebidas gritam: “Vamos beber, é a cerveja do campeão!” Na água, Filipe prova mais uma vez que é o melhor surfista do mundo em ondas de um metro, não mostrando qualquer tipo de piedade por Bede Durbidge. Uma pontuação total de 19.85 na final é obra! Cada vez que vem a voar até quase à areia, o público entra por água adentro com bandeiras do Brasil. Há inclusive quem o tente agarrar em plena bateria – talvez grades sejam necessárias para o ano que vem. Na área de competidores o pai, Ricardo, chora de emoção. Hoje (domingo, 17 de Maio, dia em que se realizou a final da quarta etapa do WSL), o surfista de 20 anos, pode, certamente, atirar todas a lycras que quis para o público – dias antes foi repreendido por um dos organizadores da prova por ter comemorado dessa forma a vitória de uma bateria, tal como, embora sem puxão de orelhas, Gabriel Medina e outros surfistas brasileiros tinham feito.
Como o máximo que poderíamos arrancar do miúdo de 20 anos numa entrevista pós-vitória seria, e compreensivelmente, qualquer coisa como “estou muito feliz” e agradecimentos a Deus, à família e ao imenso público presente na Barra da Tijuca (Rio de Janeiro), optámos por vos deixar um perfil do campeão do Oi Rio Pro, escrito recente e tranquilamente entre o Havai e a Austrália. Aqui vai.
WSL Kelly Cestari
A carne é fraca, diz o ditado, mais ainda em climas tropicais. Estamos na ilha de Oahu e Nuande Silva (mais conhecido por Pekel), surfista e cozinheiro brasileiro residente em Portugal faz tempo, diz-nos que vai haver um churrasco na igreja do North Shore. Mais tarde a tentação surge de novo quando passamos em casa da Chris (ou a rainha da coxinha de frango de Pipeline), a preparar feijão preto para o mesmo evento: “Pô, passa lá, todo o mundo vai lá estar, vai ser super legal.” Sem mais para fazer, a experiência de ir a uma reunião de evangélicos parece-nos boa ideia e melhor ainda quando há carne e festa à discrição.
Talvez por castigo, chegamos ao local atrasados. Já só há sobremesas e, ainda por começar, um sermão de mais de uma hora do pastor. Ao entrar na sala, uma das primeiras pessoas que vemos é Filipe Toledo, sentado num sofá castanho de pele, ar de muito surf no lombo e cara de quem está prestes a adormecer. Para estranheza nossa, a missa é feita em torno da comparação entre um pedaço de carne, cujas gorduras e nervuras têm de ser retiradas para ser bom para a grelha, e o ser humano, que limado e trabalhado se pode tornar algo melhor que a peça bruta. Por essa altura, Filipinho já dorme e o pai, Ricardo, é convidado a falar sobre a sua relação com Deus. Rogamos pragas a Pekel por não nos ter dito a que horas lá deveríamos estar para assegurarmos o nosso jantar e, por peso na consciência, ficamos até ao final do encontro comandado por Marquito Santos, devoto e surfista.
Coincidência ou não, três meses mais tarde voltamos a reencontrar-nos com pai e filho, na Sexta-Feira Santa (ou do Amor), desta vez na Austrália. É noite e os Toledos estão a jantar com o shaper de Filipe, Nev Hyman, com quem assinou contrato em 2012. “Tem de estar sempre falando com Ele, né?”, explica, no meio de conversas cruzadas, o garoto franzino e dos vitelos mais novos da elite mundial quando lhe perguntamos sobre o Todo-Poderoso. “Agradeço muito a Deus por tudo o que Ele tem feito por mim.”
A entrada de Filipinho no WSL pode ter apanhado muitos de surpresa, mas não Ricardo, três vezes campeão brasileiro entre a década de 80 e 90 e da mesma geração que Teco Padaratz, Fábio Gouveia e Victor Ribas. “Sabia que ele tinha potencial para isso, foi sempre muito ousado e o surf dele evoluiu muito num ano. Quando viemos no ano passado para a Austrália, para ele correr a final do grommets (juniores), aqui em Bells, convidei ele a vir com duas semanas de antecedência para ganhar experiência em Newcastle, um seis estrelas, e ele praticamente ganhou o campeonato”, conta o pai, enquanto o filho vagueia no Instragram. “Só perdeu porque cometeu uma interferência contra o Willian Cardoso. Naquele momento vi nele um potencial muito grande e decidimos apostar todas as fichas no WQS. Falei para ele, ‘filho, você precisa botar na cabeça o seguinte, você tem que garantir a vaga antes do Havai; é difícil? É, mas você tem de fazer isso porque se não o fizer até lá, você é novo, magrinho e inexperiente em ondas grandes e tubulares, será muito difícil conseguir’.” E foi exactamente o que aconteceu. Foi para a Califórnia, ficou em 5.º no US Open (prime), em 3.º na Inglaterra, ganhou Lacanau (França), alcançou um 2.º na Virgínia e um 9.º no prime de Saquarema.
Para atrairmos de novo a atenção de Filipinho, perguntamos-lhe sobre um vídeo intitulado Brazilian Storm – Harlem Shake, que ele e os seus amigos decidiram fazer durante uma prova em Margaret River, no Oeste australiano. “Foi engraçado! [Risos.] Já tinha acabado o campeonato, tínhamos mais um dia lá e não tinha nada para fazer. A galera estava no tédio, decidiu fazer um churrasco, os brasileiros todos reunidos, e tínhamos visto esse vídeo no YouTube com milhares de visualizações. Aí a gente pensou ‘vamos fazer um Harlem Shake do surf’, ficou muito engraçado e os making of mais ainda.”
Experiente no que toca à competição, Ricardo é pai e treinador a tempo inteiro mas separa bem as águas. Fala que a estabilidade emocional de Filipe, como a de qualquer outro atleta, é importante e que no caso deles tem de “haver um consenso entre as duas partes”, pois ele é simultaneamente o técnico que lhe transmite informações e quer que as coisas aconteçam de uma certa forma, e alguém com quem o surfista tem uma intimidade muito grande. “Quando vejo que ele comete alguns erros bobos, depois chamo ele e falo: ‘Isso foi o fim da picada, ridículo, você não devia ter feito isso. Pô, calma, raciocina, usa a cabeça.’ Em alguns momentos não dá para usar só o talento, você tem que usar a cabeça também, existem atletas que não são tão bons surfistas mas são muito bons competidores. É necessário analisar a malícia, no bom sentido, do adversário, que pode estar fazendo pressão psicológica para induzir o outro em erro”, explica o Toledo pai, de 44 anos.
WSL Kelly Cestari
Ricardo vem de uma família de classe média e tudo o que conquistou na vida foi à conta de esforço. “Corri atrás, trabalhei e busquei tudo aquilo que eu queria. Sempre passei isso para os meus filhos, ter foco nos objectivos, porque se você for dedicado você vai alcançar. Lógico que existem obstáculos perigosos no meio do caminho, que podem fazer com que as pessoas se percam.” Diz ser muito sincero com eles – além de Filipe há ainda Matheus, de 24 anos, Davi, de 15, e Sofia, de 13 – e usar as suas experiências “ruins” para lhes mostrar as consequências. “Tinha campeonato e a gente ia para a festa, bebia e aí no dia seguinte não estava legal para competir. Passei um período em que usei drogas mas, graças a Deus, hoje estou tranquilo em relação a isso. Evito beber, porque já bebi muito e fiz muita besteira”, recorda o pai, que actualmente mora com o resto da família na Califórnia.
É por isso que sempre perguntou: “Filipe, o que é que você quer? Quer entrar no WSL? Quer ser campeão mundial?’ Então você precisa abrir mão de certas coisas – festinhas, mulheradinha, prostituição de todas as formas, porque isso existe, não tem como fugir, o assédio é muito grande. Você vai ter tempo para conhecer uma pessoa legal e que te complete. Não precisa usar isso, o facto de ser agora um surfista profissional para pegar as menininhas. Isso agora não é o foco e o principal objectivo tem de ser o título mundial.” Os outros mandamentos são: não ser “arrogante, orgulhoso, prepotente”, ser “um cara humilde, de coração puro e carismático”, cumprimentar sempre as pessoas, e, o mais importante, “nunca se esquecer de onde veio”.