Ivo senta-se ao nosso lado com o sonho vestido. Literalmente. Abre os braços e mostra a T-shirt com as fotos de família. Põe-se de costas e conseguimos ler “Corrida do Ivo” na parte de trás. A frase resume o desejo que concretizou há um ano. “Costumo participar em corridas cá e queria fazer uma em Londres, onde vive o meu pai.” Voou até à capital do Reino Unido e, para provar que não se trata de uma fantasia de criança, tira do saco a capa onde guarda todas as provas de que a viagem foi real: bilhetes de avião, autorizações de voo, fotografias do Big Ben e o diploma que lhe dá a categoria de jovem com sonho realizado.
Levar Ivo a Londres foi um dos 590 sonhos realizados pela equipa da Terra dos Sonhos. Idas à Lapónia para conhecer o Pai Natal, visitas ao Estádio do Sporting, encontros com o Cristiano Ronaldo ou viagens à Disneylândia foram outros desejos também realizados. “Mas já tivemos pedidos tão simples como o de uma menina que queria ir jantar fora com a mãe, coisa que nunca tinham feito”, conta ao i o CEO, Frederico Fezas Vital.
Quando em 2007 criou a Terra dos Sonhos, juntou ao modelo que já existia noutros países o factor surpresa. “Acreditamos que isso faz com que o impacto positivo seja ainda maior e a nossa intenção sempre foi que a realização do sonho fosse de tal forma impactante que criasse uma mudança interna no jovem e na família.” Apesar das boas intenções, depressa se aperceberam de que esse objectivo a longo prazo nem sempre era conseguido e a realização de sonhos de crianças com doenças crónicas ficava-se por um episódio de felicidade momentânea.
Foram precisos dois anos de pesquisa sobre o que existia em Portugal para perceber que havia um vazio por preencher. Frederico fala na vertente psico-socioemocional – “um palavrão, bem sei” – que faz questão de desmistificar logo a seguir: “Não existia uma unidade que, de forma integrada, trabalhasse aquilo que leva a uma melhor qualidade de vida da criança e da família.” Estava aberto o caminho para a criação da Unidade de Cuidados Intensivos de Felicidade (UCIF), que defende um modelo de intervenção terapêutica inovador a nível mundial. A partir de hoje, um grupo de profissionais vai trabalhar em conjunto com as famílias de jovens com doenças crónicas em quatro campos: gestão das emoções, aceitação da mudança, auto-estima e comunicação positiva. “É importante que tanto as crianças como as famílias saibam falar sobre a doença de uma forma aberta, construindo um discurso mais construtivo que destrutivo”, defende Frederico.
Encarar a doença O à-vontade de Ivo ao falar da sua doença podia fazer dele um embaixador da UCIF. Desapercebido sentado à mesa do centro, só se repara nele quando percorre os corredores do edifício com o seu andar vagaroso, depois de uma remodelação feita pelo programa “Querido, Mudei a Casa”, que mais parece um misto de cenários entre “O Principezinho “ e “Alice no País das Maravilhas”.
“Tenho espinha bífida”, conta enquanto faz um desenho com as mãos da forma da sua coluna. “A diferença é que normalmente a coluna é direita, mas a minha acaba assim” e afasta as mãos para mostrar. Apesar de a lesão não o obrigar a andar de cadeira de rodas, tem muitas infecções, já teve de ser operado dezenas de vezes, não tem muito equilíbrio e usa fralda, um segredo só há pouco tempo foi revelado.
“Quando a professora me pediu que fechasse o estore da sala de aula, levantei os braços e a minha fralda viu-se. Toda a gente se riu mas não liguei, que eu não tenho culpa de ter que a usar”, explica, com a mesma rapidez com que debita pormenores do problema com o qual tem de viver para sempre. “Gosto que os médicos me expliquem tudo em pormenor e além disso li muito sobre a doença para poder explicar a quem não a conhece”, acrescenta com prontidão, fazendo os seus 14 anos multiplicarem-se por dois ou três.
Apesar de a inauguração do espaço estar marcada para hoje, a primeira oficina de afectos – evento aberto ao público mas limitado a cinco famílias por sessão – aconteceu no sábado. Neste tipo de eventos, a par de palestras, workshops e campos de férias, previstos para este ano, às duas psicólogas de serviço podem juntar-se terapeutas de áreas tão diversas como reiki, meditação, terapia do riso, musicoterapia ou escrita terapêutica. Ivo esteve com a tia na primeira sessão e conseguiu fazer uma tulipa de origami, uma das actividades propostas às famílias. “Engraçado perceber que, apesar de não se conhecerem, não existem silêncios”, conta a psicóloga Andreia Martins, lembrando a importância do contacto entre pessoas que têm as mesmas vivências. “Aqui podem trocar experiências sem ser num contexto de grupo de ajuda, que poderia ser um pouco constrangedor”, explica.
À semelhança do que acontecia para a realização de sonhos, em que eram as instituições e os hospitais a indicar as crianças, na UCIF, em vez de sinalizar crianças, são escolhidas famílias. “Não tendo uma varinha mágica para mudar estas vidas, é preciso dotar estas pessoas da capacidade de encontrar ar no meio do sufoco. A postura da família é fundamental para a postura da criança”, diz Andreia, enquanto abre e fecha gavetas cheias de material para os trabalhos em grupo. O olhar foge para o ex-líbris da terapia pouco convencional que defendem. A mesa grande no centro da sala da UCIF, esconde por baixo um colchão apoiado numa base com rodinhas. Serve para desmistificar a TAC que os miúdos têm de fazer tantas vezes, mas a sua principal função é servir de “túnel altamente criativo”, nome dado pelas psicólogas ao lugar onde se trocam os pensamentos negativos por positivos. “E funciona”, garante Andreia.
marta.cerqueira@ionline.pt