Raúl Castro. Milagres de um camarada cubano

Raúl Castro. Milagres de um camarada cubano


Trocou o uniforme verde-tropa pelo fato e gravata. Apertou a mão a Barack Obama, recebeu François Hollande, visitou o Papa (que aterra em Cuba em Setembro) no Vaticano e pondera voltar a rezar. Raúl, o Castro que sucedeu ao irmão Fidel, é o rosto da aparente mudança na ilha que os americanos estão desejosos de…


Marx está vivo, Deus também, Raúl sente-se melhor que nunca e o resto do mundo acompanha com um misto de agrado, expectativa e reserva esta injecção tripla de saúde. Chamem-lhe o “evolucionário”, como o descreve a revista “Time”, que traçou o perfil do irmão de Fidel, a várias décadas de distância da imagem do jovem de cabelo longo a caminho de um encontro com o cônsul norte-americano, no rescaldo do rapto de 47 americanos, em 1958 – provavelmente, a última vez que o cubano se cruzou com um oficial yankee antes do simbólico aperto de mão a Barack Obama no funeral de Nelson Mandela, em 2013. Os tempos mudam. Os milagres espreitam a cada esquina, de forma tímida ou com espantoso descaramento, levantando apenas a dúvida se terão um preço, como todos os almoços, ou se estarão isentos de cobrança.

Cinquenta e cinco minutos de audiência, mais tempo que o habitual, confirmaram a mais recente epifania. No domingo, o presidente da República de Cuba foi recebido pelo Papa numa sessão privada na Sala Paulo VI, o gabinete de Francisco no Vaticano. À luz do desfecho, o mais convicto ateu levantar-se-ia da tumba para bradar aos céus. “Agradeci ao Santo Padre pela contribuição na aproximação entre Cuba e os EUA”, disse Castro no final, admitindo que, se o sumo pontífice “continuar assim”, regressará à Igreja e voltará a rezar.

Os sinais de aproximação entre o governo da ilha e a Igreja não são de hoje. Em Novembro de 2010, Raúl, baptizado em criança tal como o irmão, acompanhava um arcebispo americano e outros católicos na inauguração de um seminário nos arredores de Havana, a primeira construção na ilha comunista em mais de meio século – para a história ficara a intervenção do cardeal Jaime Ortega nas negociações para libertar 52 prisioneiros políticos encarcerados desde 2003.

Sucedem-se os indicadores de abertura ao mundo, mais religiosa ou profana. De tal forma que há mais um novo destino de férias na lista dos norte-americanos, ansiosos por chegar a estas paragens “antes que se transformem em Cancún”. “Planeia uma viagem a Cuba? Pode reservar um quarto em Airbnb.com e procurar voos em CheapAir.com. No Outono, poderá até partir de ferry de Miami e atracar na marina de Havana a tempo do pequeno- -almoço”, descreve o “New York Times”, apesar das restrições ainda vigentes, impostas pelo duradouro embargo.

Para menos conhaque (ou Cuba Libre) e mais trabalho, sucedem-se os encontros oficiais. Em Abril, Raúl voltou a cruzar-se com o presidente norte-americano, agora na Cidade do Panamá, no âmbito da Cimeira das Américas. Esta semana foi a vez de receber no seu país o presidente francês, François Hollande, que se tornava o primeiro líder europeu a pisar solo cubano desde o espanhol Felipe González, em 1986 – e até Fidel reapareceu em público, com o seu habitual fato-de–treino preto vestido. Em França ouviram-se críticas do UMP a este tête-à-tête, enquanto o PS rebateu: “Sarkozy recebeu o ditador Kadhafi em Paris.”

A romaria intensificou-se depois de 17 de Dezembro de 2014, o histórico dia em que os governos de Washington e Havana anunciaram que o vínculo diplomático entre países seria retomado, depois de mais de 50 anos de costas voltadas. Desde então, figuras como o governador de Nova Iorque, Andrew Cuomo, a chefe da diplomacia da União Europeia, Federica Mogherini, ou diplomatas de topo de países como Rússia e Japão aterraram em terras caribenhas.
No final do Verão, é a vez de o Papa Francisco fazer uma escala no paraíso da salsa antes da sua chegada aos Estados Unidos, onde participará no 7.o Encontro Mundial das Famílias, a realizar em Filadélfia de 22 a 27 de Setembro (o périplo norte-americano contempla um encontro com Obama, a visita à sede da ONU, em Nova Iorque, e um discurso no Congresso). É provável que, por essa altura, o homem que rendeu Fidel no comando dos destinos de Cuba, e que confessou seguir todas as intervenções de Georgio Bergoglio, esteja mais uma vez atento às suas palavras. Por agora, segue a todo o gás a distribuir passou-bem – incluindo a Putin, em Moscovo, ao patriarca Kirill, ao primeiro-ministro italiano, Mateo Renzi, ao primeiro-ministro argelino, Abdelmalek Sellal, entre outros.

Braço-direito do irmão, Raúl Modesto Castro Ruz, um dos cinco filhos de Ángel Castro e Lina Ruz González, o mais novo de três rapazes, nascido há 83 anos, passou boa parte da sua vida na sombra de El Comandante. Ao contrário do histórico líder, não apreciava os estudos, uma obrigação cumprida em colégios jesuítas, primeiro em Santiago de Cuba, depois em Havana. A reputação ancora na preferência pela bebida e pelo jogo. Pela altura da universidade junta-se à Juventude Socialista, organização do Partido Socialista Popular, o movimento comunista cubano. O seu envolvimento em grupos de protesto cedo lhe valeu dissabores disciplinares. Apoiou o irmão desde o começo no plano de derrubar a ditadura de Fulgencio Batista. Tinha 23 anos quando se associou à primeira acção dos rebeldes, em 1953. O assalto ao Palácio da Justiça resultou numa sentença de 13 anos de prisão, onde Raúl e Fidel continuaram a cozinhar o resto da revolução, ao longo de 22 meses. Batista é pressionado a libertar os autores do ataque a Moncada e a dupla exila-se no México, onde conhece o médico argentino Che Guevara. Em Novembro de 1956 regressavam a Cuba, mas o triunfo chegaria apenas em 1959, o mesmo ano em que Raúl Castro casa com Vilma Espín, formada em Engenharia Química no MIT e filha de um magnata do rum – uma cumplicidade partilhada de forma discreta com o resto do mundo até 2007, ano da morte da companheira de guerrilha, com quem teve quatro filhos.

A partir do começo dos anos 60, e já depois de ter visitado, pela única vez, os EUA, acumulou diferentes cargos ligados à revolução. A Defesa foi a pasta que ocupou durante mais tempo, servindo desde 1959, quando foi criado o Ministério das Forças Armadas, mantendo-se na posição até Fevereiro de 2008, quando sucedeu a Fidel, cujo estado de saúde vinha a degradar-se desde 2006, na sequência de um tumor no cólon. Introduziu reformas económicas, retomou o diálogo com Bruxelas, suavizou restrições na posse de telemóveis e computadores, e os cubanos celebraram o aumento de salários e pensões, enquanto parte do Ocidente começava a interrogar-se se o estímulo ao consumo privado não seguiria a marcha do modelo chinês.

No final do ano em que assumiu os principais destinos de Cuba, recebeu o actor e activista Sean Penn para uma entrevista e recordou como. apesar das tensões entre países, as forças militares de ambos não cessaram de se reunir na base de Guantánamo para discutir assuntos de interesse comum, geralmente na terceira sexta-feira de cada mês, num saldo de 157 encontros ao longo dos anos. Nessa conversa, Castro previu também a reeleição de Obama, que considerava garantida “a não ser que seja assassinado antes de 4 de Novembro”. Correu tudo de feição, incluindo para o entrevistado, eleito primeiro-secretário do Partido Comunista no seu sexto congresso, a 19 de Abril de 2011, depois de 46 anos no papel de segundo-secretário, sob as coordenadas do número um, Fidel. Em Fevereiro de 2013 era a vez de Raúl revalidar o cargo de presidente naquele que deverá ser o seu derradeiro mandato.

No Facebook, quase 54 mil pessoas gostam de Raúl Castro Ruz, apesar da generalização da internet ainda estar por concretizar. A mesma internet onde é difícil seguir o rasto ao perfil íntimo daquele que se antecipou a Fidel na militância comunista, que ergueu um exército de 150 mil homens num pequeno país, que cumpriu missões fora de portas, em Angola ou na Etiópia, e que viu o seu antigo chefe de pessoal, Alcibiades Hidalgo, desertar para os EUA em 2002.

Em 2013, num dos seus discursos à população, censurou os hábitos pouco civilizados dos cubanos, como cuspir para o chão, dizer palavrões na rua, criar porcos na cidade, grafitar paredes, fazer barulho fora de horas ou urinar na via pública. Um apertão de orelhas à falta de “disciplina social” dado pelo líder que insiste no fim do bloqueio, na devolução de Guantánamo, a base militar norte--americana na baía com o mesmo nome, que pretende que Cuba se converta “menos num país de caudilhos e mais num país de instituições”. É ver para crer.