Maria Bethânia. “Deus não me deu nem filhos,

Maria Bethânia. “Deus não me deu nem filhos,


50 anos de carreira são também para retribuir ao público a possibilidade de alcançar essa data redonda. É por isso que o espectáculo que assinala meio século de vida artística dedicada à canção, à interpretação e, acima de tudo, ao palco, se chama “Abraçar e agradecer”. O Coliseu do Porto é o primeiro ponto de paragem,…


Maria Bethânia celebra, aos 68 anos, 50 de carreira e isso é motivo mais do que suficiente para celebrar, porque desde tenra idade se habituou a não deixar passar em branco aquilo que é importante.

Mas 50 anos de profissão são também para retribuir ao público a possibilidade de alcançar essa data redonda. É por isso que o espectáculo que assinala meio século de vida artística dedicada à canção, à interpretação e, acima de tudo, ao palco, se chama “Abraçar e agradecer”.

Os concertos que tem dado esgotam a sua lotação rapidamente, parecendo comprovar que, apesar da efeméride, é sobretudo do momento presente que eles se fazem. O espectáculo que Maria Bethânia não quis retrospectivo contará com os seus autores de sempre, incluindo, claro, Fernando Pessoa – há, de resto, um DVD sobre o poeta que a cantora acabou de lançar –, mas também com novos compositores que gosta de trazer para a aclamação pública, como em 1965 fizeram consigo, dando a conhecer o seu talento aos brasileiros.

Diz que foi a partir desse momento que percebeu que a sua vida seria no palco, com tudo aquilo que cabe nele, e não apenas a canção. É nesse terreno, que é o seu meio de eleição, que regressa a Portugal, para que também possa “abraçar e agradecer” àqueles que, do lado de cá do Atlântico, a têm seguido ao longo destes 50 anos de carreira.

A celebração faz-se com três concertos, porque a procura acabou por acrescentar uma data extra às duas inicialmente marcadas. O Coliseu do Porto é o primeiro ponto de paragem, no dia 24, seguindo-se o Coliseu dos Recreios, em Lisboa, nos dias 27 e 28.

Em Junho recebe o Prémio da Música Brasileira, mais um marco a coroar aquilo a que dedica “de corpo e alma”: o seu trabalho.

Os concertos em Portugal são, naturalmente, apresentados como “celebração de 50 anos de carreira”. Alguma vez pensou algo como “é só mais uma data, não é assim tão especial”, ou sentia que tinha de comemorar a efeméride?

Ah, eu gosto de comemorar coisas boas. A minha mãe [Dona Canô] sempre gostou muito de festa . Eu fiz um espectáculo dedicado a ela que se chamava “Amor, festa e devoção”, que para ela eram as guias da vida. E fazer 50 anos de carreira num país de cantoras, de excelentes cantoras, e com a alegria de poder agradecer e abraçar, para mim é muito importante. Eu quis comemorar, sim. Comemoro com todo o vigor.

Esgotou vários concertos no Brasil, de resto, com estas comemorações?
É, tudo esgotado. Uma beleza!
 
Tem ideia, depois de tanto tempo a cantar, de como é que os brasileiros, sobretudo, a vêem, o que representa para eles?
O que eles me têm demonstrado é imenso carinho, uma grande admiração e um grande respeito. Graças a Deus.

E em relação ao público português, com o qual também construiu uma relação ao longo do tempo?
É a mesma coisa. De Portugal, eu só tenho a abraçar e a agradecer também por ser sempre recebida dessa maneira, com respeito, carinho e admiração.
 
É igualmente uma grande influência para muitos cantores e músicos mas, a si, quem é que a influenciou, quem a fez decidir-se pelas canções?
Olha, eu sou tão diferente de tudo [risos]. Não tive assim uma influência de uma cantora em particular. Tem milhares de cantoras que eu adoro, como a Billie Holliday, Édith Piaf ou Judy Garland. Eu gosto mais é de intérpretes, que é mais a minha praia. No Brasil, a cantora que eu mais admiro é a Nana Caymmi, que é uma grande intérprete mas, ao mesmo tempo, é também uma grande cantora. Mas eu não tenho nada a ver com nenhuma delas, sou completamente diferente. Eu acho que não tem nada parecido comigo nem eu pareço com nada.
 
E o que acha que a distingue mais das outras cantoras?
Pois é, eu acho que tenho uma maneira própria de me expressar e também tive um mestre de teatro, grande director e grande amigo, o Fauzi Arap, e ele criou um estilo de espectáculo para que eu me pudesse expressar completamente, mais como intérprete do que como cantora. Então eu posso falar, recitar, cantar, posso ficar em silêncio. Tem uma dramaturgia por detrás. E é isso que eu acho que me distingue um pouco das outras cantoras. Um pouco não, distingue muito, porque o espectáculo de uma cantora, normalmente, é um recital, uma canção depois da outra. Os meus exigem uma dramaturgia, uma ideia, um pensamento a ser seguido, e isso talvez seja a grande diferença.

Apesar de ser uma influência para muitos músicos e cantores, também interpreta outros compositores. Em 2012, por exemplo, veio a Portugal com um espectáculo em que interpretava Chico Buarque. Há algum compositor que goste particularmente de cantar ou a quem goste de voltar mais vezes?
Chico [Buarque] e Caetano [Veloso] são os compositores mais presentes no meu repertório, nestes 50 anos de profissão. São os dois grandes compositores. Do mesmo modo que na poesia, na literatura, são Fernando Pessoa e Clarice Lispector. Agora, eu adoro conhecer gente nova, ouvir canções de compositores novos. Esse espectáculo dos 50 anos não é um espectáculo retrospectivo, é actual, reflecte o que eu penso hoje, o jeito que eu vejo hoje, não só a mim, como o mundo, as pessoas, a música, a literatura. É isso que é o meu espectáculo e eu encerro-o com uma canção de uma jovem compositora pernambucana que me foi apresentada pelo Chico César e que nunca foi gravada assim… Não existe ainda no cenário nacional. Isso é que eu acho lindo, poder andar. Agora, sem esquecer que tem Caetano, que tem Chico, que tem Clarice, que tem Vinicius. É assim que eu ando.

Mas, de facto, esta geração, a sua, que agora se encontra a celebrar os 50 anos de carreira, é uma geração que definiu aquilo que consideramos ser a MPB.
É uma geração muito privilegiada musicalmente. São os maiores compositores, os grandes revolucionários. A bossanova, depois o tropicalismo, o movimento de Minas, liderado pelo MiltonNascimento [Clube da Esquina], o Chico Buarque, que veio trazer um teatro e uma música completamente diferente. Foi uma geração privilegiadíssima e nós, intérpretes, ganhámos com isso.

Sendo uma espectadora atenta dos novos talentos…
Ah sim, eu gosto de gente nova, e nos meus espectáculos e nos meus discos tenho pessoas anónimas que estão a começar a carreira, iniciantes mesmo. Eu adoro fazer isso.
 
E vê alguns artistas na música brasileira actual que possam vir, no futuro, a ter um papel semelhante ao desta geração que agora comemora 50 anos de carreira, ou é uma realidade completamente diferente?
Eu acho que não se pode querer que seja parecido ou igual, da mesma altura ou do mesmo tamanho, penso que não se pode é achar que acabou ali. Eu acho burrice isso, porque eu tenho ouvido tanta coisa bonita… A música não acaba, as pessoas se renovam e entram outras gerações com outras inspirações que podem ter outra expressão. Pode--se achar melhor ou não. Eu gosto da aventura, de esperar o que vem.

Voltando um pouco atrás, ao início da sua carreira, logo em 1965 teve muito sucesso com as primeiras canções. Como é que lidou com isso, foi complicado gerir o sucesso, era algo que desejava?
Não, olha, eu sempre soube que ia trabalhar com a arte, principalmente sabia que ia trabalhar no palco. Não sabia de que jeito, mas eu sabia que a minha vida seria ou no trapézio, no circo, ou no palco, fazendo alguma coisa, actriz ou cantora, o que fosse. No dia em que eu cantei no palco, eu disse: “É isso que eu quero fazer.” Mas não era somente cantar, porque eu tinha outras coisas que me interessavam. E por aí fui e estou aqui até hoje.
 
O facto de fazer parte de uma família de artistas, de gente tão talentosa, alguma vez representou um maior sentido de responsabilidade, de pressão sobre o trabalho que tinha a fazer?
Sobre o sentido de responsabilidade, e ainda em referência à outra pergunta, quando eu cheguei noRio de Janeiro, cantei o “Carcará” e virei uma intérprete, uma cantora nacional conhecida e aplaudida, é lógico que tive um choque de responsabilidade muito grande. Eu era muito menina, tinha 17 anos. Vivia ainda com os meus pais, na casa deles, então foi uma mudança muito radical. Casa, família, outra cidade, outra gente, sucesso, reconhecimento… Foi muito difícil, mas sempre tive uma estrutura muito boa, proporcionada pelos meus pais, que me dava segurança para eu conduzir isso de uma maneira, pelo menos, digna, e sem me perder. Eu acho o sucesso muito bonito, necessário, preciso, todos os artistas querem e devem querer. Mas ele não é mais do que a minha necessidade de me expressar. Ele não é maior do que eu.

Ao longo destes 50 anos, qual foi a maior transformação que viu acontecer no Brasil?
No Brasil? A degradação da floresta amazónica é o que mais me abala.
 
Actualmente, o Brasil é palco de manifestações, de insatisfação social. O que acha que seria necessário ser mudado de imediato para fazer a diferença?
Vamos começar por aquilo de que falava, pelo parar de fingir que não estão acabando com a Amazónia. Ninguém aqui é bobo. Ninguém é surdo nem cego. Todo o mundo está vendo e ficam enganando a gente, dizendo que não. O pessoal sair para a rua, eu acho lindo. Tem mais é que ir para a rua.

Mas opõe-se veementemente a quem defende um golpe militar ou sugere uma solução não democrática para derrubar Dilma Rousseff.
O quê? [A ditadura] Não volta, não. Não volta, aquele inferno não há-de voltar para o meu Brasil, jamais. Jamais, jamais! O vento não vai deixar, a folha não vai deixar, a floresta não vai deixar, os rios do Brasil não vão deixar.

A música parece ter uma influência e uma capacidade rara de mobilização de vontades e atitudes no Brasil. É assim?
O brasileiro gosta de música. O brasileiro gosta de dançar, gosta de ser feliz. Então, para se expressar, para reclamar, com as suas razões todas, ele o faz cantando. Eu mesma reclamo muito cantando.

A Maria Bethânia é da Bahia, mas vive no Rio de Janeiro. Em termos afectivos, qual é a sua casa?
Eu moro no Rio desde os 17 anos. A minha casa, minha casa é o ventre de minha mãe, é a casa do meu pai, o quintal onde eu me criei. Essa é a minha casa. Agora, por lei de Deus, por missão, eu vim trabalhar no Rio de Janeiro, onde comprei uma casa para mim. É a minha casa, que não foi meu pai que deu nem minha mãe. Fui eu, cantando, que consegui comprar uma casa do jeito que eu queria, no meio do mato. E, se eu pudesse, era mais mato ainda. Assim quietinha. Mas eu tenho muito afecto por esse lugar, onde eu vivo desde 1972. Agora é óbvio que a minha casa, a minha raiz, é Santo Amaro da Purificação, a casa dos meus pais. E é onde eu quero ser enterrada, na minha cidade.

Cinquenta anos de carreira podem fazer com que se fique cansado de determinadas coisas, por mais que se goste do que se faz. Há coisas que não quer repetir, propostas às quais diz que não?
Tem muita coisa que me chateia, mas que não me começou a chatear agora, com 50 anos de carreira. Chateia-me desde 1965, quando me estreei.

Na altura já sabia o que queria, já se recusava a fazer certas coisas?
É, porque eu sou uma pessoa do interior, sou muito caseira, não gosto de lugares muito concorridos. Eu gosto do meu trabalho. Nada no meu trabalho me chateia porque é para ele. A tudo o que o favoreça, eu me dedico de corpo e calma. Eu vivo para ele.Deus não me deu nem filhos, só me deu o meu trabalho, e é a ele que dedico cada minuto da minha vida. Se choro, guardo a minha lágrima para quando for cantar; se namoro, o prazer do namoro será para utilizar quando for trabalhar. É tudo assim. Tudo é o meu trabalho. Agora, continuam a chatear-me as mesmas coisas: aeroportos, aviões, hotéis. Essas coisas de que eu não gosto, mas que há pessoas que amam. Há pessoas que dão a vida para fazer uma viagem, eu dou a vida para ficar no mato [risos]. Mas adoro o meu ofício, aí não reclamo de nada.

Ao mesmo tempo que faz estes concertos, lança um DVD com poemas de Fernando Pessoa. O que acha que tem Pessoa de especial para que as gerações se renovem e o interesse continue?
Ah, ele é fora do comum, não é? Ele é espectacular. Ele leu tudo do meu coração, da minha alma, todos os meus ancestrais, conhece-me como a palma da mão. Então ele traduz-me completamente, preenche-me, satisfaz-me. Se eu procuro uma ajuda, uma orientação, ele tem-nas, na sua variedade, nos seus heterónimos, na sua prosa, na sua poesia. É o poeta da minha vida.

Por falar em vida e pegando naquilo que disse em relação ao início da sua carreira sobre o circo, encara a sua vida como um trapézio sem rede ou reserva uma margem de segurança?
Encaro sempre. Acho que a vida é um trapézio deslumbrante sem rede, mas tem que se saber equilibrar [risos].