Escrevo o editorial depois de o Benfica se ter sagrado bicampeão. Começa a chegar gente ao Marquês de Pombal, faz-se a festa. A nossa necessidade de celebrar não é diferente dos espanhóis, franceses, alemães ou americanos – não há nenhuma originalidade portuguesa como tenho ouvido por aí, como se a vontade de festa fosse um exclusivo de um povo de foliões e preguiçosos. Temos esta tendência irreprimível de nos tratarmos pior do que alguém nos trata, pouco ou nada a fazer, coisa de séculos.
E temos igualmente a tendência de ver um lado dos problemas, de não problematizar as coisas, de quase nunca virar o problema de pernas para o ar. Lembro-me de vários exemplos. Começo, por respeito institucional, com uma preocupação de Cavaco Silva. O Presidente da República encomendou um estudo para saber do interesse dos rapazes e raparigas em relação à política e à participação na vida partidária. Os resultados são claros: o desinteresse é total. Cavaco alarmou-se, como se a notícia fosse apenas uma má notícia.
Não o é, em parte é até excelente: eu ficaria alarmado se os jovens se interessassem por uma política tão degradada nos valores e tão pouco interessante no pensamento. Se o estudo o provasse, colocaríamos certamente uma outra pergunta: os nossos jovens não estariam a interessar-se pela política e pelos partidos por acharem que assim lhes seria mais fácil ter uma boa vida? Disso estão ilibados. Maço-o com mais dois exemplos. Primeiro, o macabro crime de um adolescente de 17 anos que, por “motivos fúteis”, assassinou um miúdo de 14.
O país ficou incrédulo pela constatação de que gente daquela idade pode fazer aquele tipo de monstruosidade. Como era possível? Engraçado… continuamos a achar que os adolescentes (e as crianças) são propensos ao bem. Que é a vida, pelo peso das suas circunstâncias, a condenar infelizes e incautos. Tenho más notícias para ingénuas consciências. As crianças são estruturalmente o que virão a ser quando crescerem. Um mau carácter em adulto é já um mau carácter em criança; pode aprimorar ou esconder melhor mas, regra geral, é assim. Há poucos lugares tão perversos como uma escola, um lugar de humilhação para os miúdos mais frágeis e com menos defesas. Nós sabemos isso, mas esquecemo-lo como a mãe esquece a dor depois de o filho nascer.
O exemplo final neste dia com tantos carros e buzinas é a falência das famílias. Que a volatilidade do tempo, de que tanto falo, amplifica e torna ferida aberta. Os divórcios não param de aumentar, cada vez há menos casamentos, tudo isso. Mais uma vez, contradigo. É verdade, mas só em parte. Porque na nossa sociedade, neste nosso difícil tempo, deixou de ser admissível socialmente um homem bater na pessoa com quem assinou um papel, o casamento já não é apenas um assunto entre o marido e a sua mulher.
Além disso, passou a ter um peso social crianças serem abusadas, agredidas e maltratadas dentro de portas. Continuam a sê-lo, mas quem o faz (e são demasiados) paga um preço alto por isso, um preço que não pagava antes. Na desagregação das famílias há uma que é positiva, um profundo avanço civilizacional. É que, alimentadas pelo peso da indissolubilidade do matrimónio, milhares de pessoas tiveram casamentos que duraram décadas, profundamente estáveis, mas sombrios e construídos em cima da dor, do sofrimento e das aparências.
Amanhã voltarei ao tema. Tentarei defender a geração dos meus/nossos filhos (hoje adolescentes). Há boas razões para lhes darmos crédito. Sobretudo porque os nossos pais falharam e nós caminhamos para isso.