“A preparação é muito diferente. O treino que faço nenhum surfista de alta competição faz nem sabe o que é. Isto não é treinar, é sofrer, mas para te preparares para o futuro. É aqui que salvas a tua vida. Eu já salvei a minha aqui duas vezes.” Conversamos à beira da piscina onde António Silva “sofre” duas a três vezes por semana. E a descontracção com que fala do mar da Nazaré, que por pouco não lhe tirou a vida na espantosa sessão de 11 de Dezembro, é desarmante. “É preciso uma boa dose de loucura. Não é Jaws ou Mavericks, picos onde as ondas quebram sempre no mesmo sítio. Só quem lá esteve em dias mesmo gigantes é que sabe o que é a Nazaré. É uma estupidez de mar a vir de todos os lados. Mas é divertido descer ondas daquelas. Se corre mal, como correu da última vez, passas mal. Ficas naquela linha…”
Um ano volvido sobre a atribuição das bolsas EDP Mar Sem Fim, o i fez um balanço do projecto e um ponto da situação do surf de ondas grandes em Portugal. É verdade que o norte-americano Garrett McNamara colocou a Nazaré no mapa de destinos, mas desde então os portugueses têm dado o corpo às balas (aquáticas) do Canhão e não só. São ainda poucos, mas têm puxado constantemente os limites. “É uma coisa progressiva, não se acorda um dia e vai surfar-se uma onda grande. Requer muita experiência e o progresso é incremental. Quem fez surf em ondas pequenas toda a vida não surfa uma onda gigantesca de repente. Não funciona assim.” Quem o diz é João de Macedo, um dos mentores do projecto cujo objectivo é ajudar ao desenvolvimento do surf de ondas grandes em Portugal, dar visibilidade aos atletas e explorar novos locais.
Lembra-se da “linha” que António Silva referiu? É a ténue diferença entre viver ou morrer. Quando se cai numa onda de 20 ou 30 metros, como lhe aconteceu, o surf deixa de ser desporto e passa a ser uma luta pela sobrevivência. Aí, entra em acção a preparação física e psicológica. Para melhor as perceber, acompanhámos durante várias semanas os treinos na piscina da Reboleira, dados por João Parisot (Jojó), também ele surfista. António é um dos mais assíduos, num grupo heterogéneo com surfistas, mergulhadores e jogadores de hóquei subaquático. “Um dos objectivos é melhorar o domínio emocional em situações de perigo e a capacidade aeróbia. Incidimos muito em melhorar lacunas”, explica André Martins, que trabalha com Jojó na elaboração do plano de treinos.
Se não conseguires manter a calma, a preparação física não serve de nada. Zero. Acabou
Ninguém precisa de ter surfado para saber que a falta de oxigénio no corpo humano provoca sensações desagradáveis. Na piscina simulam-se condições que lhes permitam enfrentar com confiança uma vicissitude mais complicada na água. Entre séries de natação com diferentes intervalos de respiração, exercícios com pesos ou remada na prancha, Jojó puxa pela resistência de cada um. A dureza do treino é tal que o instrutor tem de ir puxando constantemente pelos rapazes. De quando em vez lá se ouvem alguns queixumes, que cruzam o ambiente descontraído e de cumplicidade.
Há quem aproveite uma saída de água para se deitar e descansar alguns segundos entre exercícios. O ritmo de respiração ofegante dificulta ainda mais as tarefas que têm de completar enquanto submersos. Também nos submetemos ao teste, para compreender a exigência do treino, e ficamos a perceber ainda melhor a opinião de António. "Não é treinar, é sofrer."
Amigo da calma O joelho continua em recuperação, uma sequela do wipeout de Dezembro. Há cinco meses que António Silva não surfa, limitando-se aos treinos de piscina, fisioterapia e remada no mar. “Antes de entrar tenho medo, penso ‘vou surfar com segurança’. Assim que entro na onda esqueço tudo e volto a fazer merda e meto-me em situações que não devia. Não consigo controlar, acho que temos todos um pouco disso.” É um dos mais destemidos nas ondas grandes. Não é surpresa que tenha vencido, juntamente com o seu piloto Ramon Laureano, a bolsa “XXL” (3000 euros), uma das três atribuídas pelo Mar Sem Fim. “Já foi, isto tem muitos custos, mas ajudou-me bastante. Foi espectacular, uma iniciativa brutal”. A sua temporada de Inverno foi mais curta que o habitual. Mas nem o susto na Nazaré lhe tirou a vontade de treinar para voltar a descer uma gigante massa de água (“a cena de contar os metros… epá, posso dizer que é bueda grande, todas as ondas que quebram ali nesses dias são prédios de água”). Às terças e quintas ziguezagueia pelos edifícios, os citadinos, para fazer a preparação na água calma da piscina.
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Quando se descem “prédios de água” tem de se estar preparado para as consequências. Tanto João como António já passaram pelo inferno, por enquanto sempre com bilhete de ida e volta. O que fazem no mar não é uma qualquer loucura, é uma controlada e preparada ao detalhe. “Faço muito ioga, que é semelhante ao estado de espírito que tens de ter quando treinas apneias. É conseguires desligar completamente. Ou seja, quando te falta o ar, o nosso corpo começa a dizer ‘o que estás a fazer, vai para cima’ e tens de desligar e superar vários níveis de ansiedade que a falta de oxigénio cria no ser humano. É um treino mental”, explica Macedo. Silva é de poucas palavras mas as vívidas descrições quase nos transportam ao interior da história. “Em momentos de aperto passa-te tudo pela cabeça. O meu melhor amigo é a calma. Depois há várias fases, dá-te o blackout, tens de usar a mente. Às vezes pensas ‘já morri’. O máximo que aguentei foi um minuto, na Galiza, há dois anos. Já é um exagero, não esperava aguentar. Não é um minuto estático, é um minuto na máquina de lavar que te leva muito fundo.”
“Quem quer passar além do Bojador/Tem que passar além da dor”, escreveu Fernando Pessoa. No mar, como em quase tudo na vida, a dor está presente quando se tenta ir mais além. Felizmente que no surf de ondas grandes a coragem desafia a morte e sai quase sempre vencedora. João de Macedo também teve um wipeout (em Mavericks) que ficou famoso. “Naquele dia estavam uns sete metros de trás, talvez 14 de frente [os havaianos medem a onda de trás, o resto do mundo pela frente].” O surfista, que viveu vários anos na Califórnia, nem chegou a dropar a onda; caiu de imediato. “Fui muito fundo, lembro-me que ia partindo um tímpano.
Já temos três sítios, não é preciso gastar muito numa viagem ao Havai. Com uns trocos para a gasolina, já se treina cá
Quando senti que tinha estabilizado debaixo de água fiquei calmo. No fundo, naquele turbilhão todo, o segredo é não consumires oxigénio. É atingir um estado de calma quando estás numa situação muito angustiante”. Easier said than done, diriam os norte-americanos. O segredo está onde muitos não procuram, na mente. “Se não conseguires manter a calma, a preparação física não serve de nada. Zero. Acabou. Essa é uma das chaves das ondas grandes, que se aplica a outras áreas, que é a pessoa ter confiança nas suas aptidões e conseguir lidar com a ansiedade em momentos em que é impossível não estar ansioso. A piscina ajuda a criar contextos em que és sujeito a isso.”
Mais além “A evolução no material e na segurança dentro de água tem permitido que os surfistas desafiem os limites. Ruben Gonzalez, antigo campeão nacional, atirou-se à água no Cabo Raso e destapou mais um spot para ondas grandes. A bolsa “Descoberta” (3000€) permitiu-lhe consolidar o trabalho que já vinha desenvolvendo no pedaço de mar em Cascais, próximo do Guincho. “Não é uma onda super perfeita, tipo Coxos, mas dá para treinar em todo o tipo de tamanho. Estava ali uma onda à vista de toda a gente e ninguém ia lá.
Quando o mar está enorme, existe ali uma alternativa.” O orçamento é uma dificuldade recorrente e transversal ao grupo português. Mais uma vez o nome McNamara vem à baila e parece ser consensual que o americano desbravou território. “A vinda do Garrett trouxe muitos estrangeiros e isso ajuda-nos a olhar para as ondas grandes e os limites de outra forma. Estes surfistas já estão a ser falados de outra forma. Faltava-nos isso. Não há muito aquela cultura de um indivíduo viver só do surf, ser pago para isso, é mais na Austrália, nos EUA.”
O projecto Mar Sem Fim promoveu também uma expedição aos Açores, na busca de novos locais. “O fenómeno natural da Nazaré é incrível mas não é único”, comenta Macedo. O big wave riding está bastante mais desenvolvido nos EUA e João gostava de ver mais locais para se treinar em Portugal. “Sem tirar valor ao que já se faz lá [Nazaré], o objectivo das explorações nos Açores é encontrar um novo canhão, digamos assim. Às vezes são ondas que se vêem mas o acesso é inatingível. Queremos criar condições, caso a pessoa tenha vontade, para ter acesso a ondas em que sonhamos surfar.” Conseguiram uma boa sessão de remada no baixio de Santana (“percebemos que tínhamos encontrado um local com potencial genuíno de ondas grandes”), que nunca tinha sido surfado dessa forma, e experimentaram o pico da Viola.
Em Cascais, as incursões ao Cabo Raso foram, também, frutíferas. Ruben admite que “a bolsa foi uma ajuda extra quando houve uns dias com bom swell”. “Permitiu-nos ter mais motas de água, um barco, e convidar mais pessoas para irem lá. Nunca tínhamos entrado lá com aquele tamanho.”
“Para um jovem que se queira iniciar nesse mundo, passam a ser sítios que podem visitar e aos poucos aperfeiçoar a sua performance”, acrescenta Macedo. Com a exploração do potencial na Papoa (Peniche), Portugal começa a criar um cartão de visita forte. “Assim de repente, no continente já temos três sítios. Não é preciso gastar muito dinheiro numa viagem ao Havai. Com mais uns amigos e uns trocos para a gasolina, já se podem treinar cá. Isso alegra-nos muito.” António gaba a consistência do país “em termos de ondulações” mas lamenta “a pouca cultura de ondas grandes”. “Somos quatro ou cinco. Agora começa a aparecer mais pessoal mas mesmo assim há poucos miúdos com atitude para o fazer. Também não é para qualquer um.” António Rodrigues é um dos jovens que pretende seguir os exemplos deste pequeno grupo mais experiente.
O surfista do Porto foi escolhido para a bolsa Nova Geração (1000€) e aos 17 anos é sempre o mais novo na água em dias de mar grande. Esteve na tão divulgada sessão na Papoa [que aconteceu durante o Mundial de surf em Supertubos] com alguns dos mais respeitados big wave riders. “Foi óptimo, aprendi muito com eles. Superei os meus limites, acho que foram as maiores ondas que já apanhei a remar mas sinto que trabalhei para isso. Não cheguei lá e foi de repente. Andei a preparar-me para naquele dia poder chegar lá e surfar.”
Falamos durante a sua curta estadia em Lisboa. Aparece acompanhado por Macedo e António Silva, antes de experimentar um treino na piscina da Reboleira. “Cada vez que estou com eles aprendo qualquer coisa, é com eles que tenho de aprender porque não há muita gente cá a fazer isto. São o top de Portugal e sinto-me um sortudo por poder conviver com eles.” Começou a deslizar nas ondas logo aos cinco anos, por influência do pai. Agora tenta conciliar o 11.º ano com os treinos diários no mar e o jiu-jitsu, que o ajuda na preparação física. “A bolsa permitiu-me estar mais presente em cada swell que entrava e poder viajar para outros sítios.” O objectivo é um dia correr o Big Wave Tour (circuito mundial), algo que só um português conseguiu: João de Macedo.
Voltamos ao ponto de partida. A piscina. Onde o suor prepara cada nova investida ao mar selvagem. “Temos pessoas de várias disciplinas, achamos importante eles partilharem experiências, por exemplo um mergulhador com um surfista. Aprendem sempre uns com os outros como superar situações difíceis”, diz André Martins. A certa altura, temos a visão de um ginásio subaquático. Aqui os pesos são levantados debaixo de água, sem respirar. Porém, com a certeza de que o esforço será mais tarde compensado. “Eles estão muito formatados para quando tudo corre bem mas não para quando corre mal. Este é um treino mais difícil mas muito mais motivante, tem uma componente quase lúdica.”
É quase impossível não sentirmos solidariedade, ou uma emoção que seja, quando vemos um pontinho minúsculo a descer uma onda gigante. É a eterna busca do homem pela superação. “Sinto medo, mas até é bom”, confessa António Rodrigues. “Se não tivermos medo somos um bocado malucos (medo temos todos, interrompe António Silva). Mantém-nos alerta”. Nunca ninguém poderá conquistar o mar. Mas estes surfistas de ondas grandes nunca estiveram tão perto de o domar por alguns, ainda que breves, segundos.