Eu e a língua


Muitas pessoas acham que corrigir os outros é uma forma de humilhação.


Sinto que, com esta história mal contada do novo acordo ortográfico, a Edite Estrela dentro de mim deixou de brilhar. Sempre fui uma defensora apaixonada da língua, protegi com a minha vida a gramática dos pontapés dos “haviam” e de outros inimigos. Muitas pessoas acham que corrigir os outros é uma forma de humilhação. Eu sempre achei que, desde que não houvesse cagança, era um acto de amor.

E agora vejo a ortografia virar-se contra mim desta maneira, como num twist de filme de super-heróis. E quem se revela um dos meus arqui-inimigos? Malaca Casteleiro, o meu professor de Sintaxe e Semântica do Português na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Pergunto-me se isto não será uma vingança pelo facto de eu ter adormecido algumas vezes durante a sua aula. Não é que não estivesse interessada mas, quando me dei conta de que o professor era um bocadinho surdo (o que, infelizmente, não lhe suscita mais simpatia pelas consoantes mudas), desisti de participar na aula e comecei a levar bandas desenhadas para ler às escondidas e poupar-me assim à vergonha maior de passar duas horas a mandar cabeçadas à Jardel.

O que eu gostava de saber era se o professor Malaca Casteleiro já pediu desculpas à minha professora de Introdução aos Estudos Linguísticos e ao meu professor de Fonética, Fonologia e Morfologia do Português pelo tempo e o latim despendido a dissecar questões agora obsoletas. Já agora, que houvesse um pedido de desculpas também dirigido a mim, que podia ter-me poupado aos pesos na consciência de cada vez que me baldava a estas cadeiras para ficar no Bar Novo a jogar às cartas ou a falar de rapazes (que felizmente eram poucos naquele estabelecimento de ensino, senão tinha demorado mais tempo a acabar o curso).

O professor Malaca Casteleiro gosta de modernices. Já naquela altura era conhecido por preferir “estope” a “stop” ou “estande” a “stand”. Eu, por outro lado, vou começar a ser aquela senhora idosa olhada com condescendência de cada vez que enfia um C ou um P onde não deve.

Querido jornal i, gostava que esta fosse uma crónica irredutível que resistisse agora e sempre ao seu invasor. Posso continuar a repetir os erros do futuro?

Guionista, apresentadora e porteira do futuro
Escreve à sexta e ao sábado

Eu e a língua


Muitas pessoas acham que corrigir os outros é uma forma de humilhação.


Sinto que, com esta história mal contada do novo acordo ortográfico, a Edite Estrela dentro de mim deixou de brilhar. Sempre fui uma defensora apaixonada da língua, protegi com a minha vida a gramática dos pontapés dos “haviam” e de outros inimigos. Muitas pessoas acham que corrigir os outros é uma forma de humilhação. Eu sempre achei que, desde que não houvesse cagança, era um acto de amor.

E agora vejo a ortografia virar-se contra mim desta maneira, como num twist de filme de super-heróis. E quem se revela um dos meus arqui-inimigos? Malaca Casteleiro, o meu professor de Sintaxe e Semântica do Português na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Pergunto-me se isto não será uma vingança pelo facto de eu ter adormecido algumas vezes durante a sua aula. Não é que não estivesse interessada mas, quando me dei conta de que o professor era um bocadinho surdo (o que, infelizmente, não lhe suscita mais simpatia pelas consoantes mudas), desisti de participar na aula e comecei a levar bandas desenhadas para ler às escondidas e poupar-me assim à vergonha maior de passar duas horas a mandar cabeçadas à Jardel.

O que eu gostava de saber era se o professor Malaca Casteleiro já pediu desculpas à minha professora de Introdução aos Estudos Linguísticos e ao meu professor de Fonética, Fonologia e Morfologia do Português pelo tempo e o latim despendido a dissecar questões agora obsoletas. Já agora, que houvesse um pedido de desculpas também dirigido a mim, que podia ter-me poupado aos pesos na consciência de cada vez que me baldava a estas cadeiras para ficar no Bar Novo a jogar às cartas ou a falar de rapazes (que felizmente eram poucos naquele estabelecimento de ensino, senão tinha demorado mais tempo a acabar o curso).

O professor Malaca Casteleiro gosta de modernices. Já naquela altura era conhecido por preferir “estope” a “stop” ou “estande” a “stand”. Eu, por outro lado, vou começar a ser aquela senhora idosa olhada com condescendência de cada vez que enfia um C ou um P onde não deve.

Querido jornal i, gostava que esta fosse uma crónica irredutível que resistisse agora e sempre ao seu invasor. Posso continuar a repetir os erros do futuro?

Guionista, apresentadora e porteira do futuro
Escreve à sexta e ao sábado