O rapaz de orelhas grandes


O rapaz de orelhas grandes ofendeu-se por o terem tratado como um desenho animado e não como alguém que merece respeito. Vejo o Ídolos e o lamento do miúdo é um grito que continua na minha cabeça


Luís Marques, administrador responsável pela área dos conteúdos da SIC, defendeu o programa Ídolos e tentou atenuar a polémica à volta do rapaz de orelhas grandes que foi ridicularizado no concurso. Afirmou que todos os portugueses conhecem o formato e que o rapaz não fugia à regra – no fundo, quis dizer que alguém com orelhas de abano, sabendo ao que vai, devia ter tomado precauções. 

Tem toda a razão. O formato é aquele. As pessoas vêem o Ídolos precisamente por, antes das galas, poderem rir com as desgraças dos outros. Quanto mais desgraçadamente cantarem, quanto mais cromos, desdentados, corcundas, burros forem, mais terão a capacidade de nos fazer estar sentados e, com isso, potenciam-se audiências, publicidade e chamadas de valor acrescentado. Todos ganham. Um canal de televisão dá às pessoas o que elas querem ver, rapazes e raparigas têm os seus minutos de fama, tudo segue o seu rumo. 

Também vejo o Ídolos. Rio-me sem prazer mas com gosto, por vezes com vergonha de mim próprio. Em que momento perdemos a necessidade de nos questionarmos? De fazermos juízos que partam do princípio de que as pessoas que vemos nas televisões, revistas e jornais são como nós e não personagens de um filme que se consome como qualquer ficção? Em que instante transformámos a nossa própria vida num exercício em que tudo é volátil? 

Vivemos um tempo de superficialidade. Nas guerras os soldados matam outros soldados como se fosse um jogo de computador, a ideia de culpa desvanece-se com a inexistência de um contacto visual com quem se desfaz à frente dos olhos. Nos bancos o dinheiro não existe materialmente, na verdade não temos dinheiro apenas a informação que o temos, uma nuance que faz toda a diferença. Se todas as pessoas de um prédio não muito alto (e não precisavam de o ter em muita quantidade) levantassem o dinheiro ao mesmo tempo na mesma dependência, o banco não teria notas suficientes para dar a todos. 

O que quero dizer com tudo isto? Que o mundo está construído para que tudo seja descartável, para que nos possamos divertir em permanência. E que o miúdo de orelhas grandes tem razão. O país entendeu o sentido do seu sofrimento. Entendemos que é um ser humano e que sentiu vergonha e humilhação. O rapaz de orelhas grandes ofendeu-se por o terem tratado como um desenho animado e não como alguém que merece respeito. Vejo o Ídolos e o lamento do miúdo é um grito que continua na minha cabeça: um grito que diz sobre o que sentiu mas também sobre nós, sobre o que nos tornámos. 

Ps: Hoje, dia 14 de Maio, assumo a direcção interina no i. Tentarei estar à altura do desafio que me foi lançado e agradeço por antecipação a toda a equipa pela paciência que espero merecer. Agradeço também a Luís Rosa, director que contribuiu fortemente para o crescimento do jornal nos últimos meses. Foi um prazer trabalhar na direcção por si liderada.  


O rapaz de orelhas grandes


O rapaz de orelhas grandes ofendeu-se por o terem tratado como um desenho animado e não como alguém que merece respeito. Vejo o Ídolos e o lamento do miúdo é um grito que continua na minha cabeça


Luís Marques, administrador responsável pela área dos conteúdos da SIC, defendeu o programa Ídolos e tentou atenuar a polémica à volta do rapaz de orelhas grandes que foi ridicularizado no concurso. Afirmou que todos os portugueses conhecem o formato e que o rapaz não fugia à regra – no fundo, quis dizer que alguém com orelhas de abano, sabendo ao que vai, devia ter tomado precauções. 

Tem toda a razão. O formato é aquele. As pessoas vêem o Ídolos precisamente por, antes das galas, poderem rir com as desgraças dos outros. Quanto mais desgraçadamente cantarem, quanto mais cromos, desdentados, corcundas, burros forem, mais terão a capacidade de nos fazer estar sentados e, com isso, potenciam-se audiências, publicidade e chamadas de valor acrescentado. Todos ganham. Um canal de televisão dá às pessoas o que elas querem ver, rapazes e raparigas têm os seus minutos de fama, tudo segue o seu rumo. 

Também vejo o Ídolos. Rio-me sem prazer mas com gosto, por vezes com vergonha de mim próprio. Em que momento perdemos a necessidade de nos questionarmos? De fazermos juízos que partam do princípio de que as pessoas que vemos nas televisões, revistas e jornais são como nós e não personagens de um filme que se consome como qualquer ficção? Em que instante transformámos a nossa própria vida num exercício em que tudo é volátil? 

Vivemos um tempo de superficialidade. Nas guerras os soldados matam outros soldados como se fosse um jogo de computador, a ideia de culpa desvanece-se com a inexistência de um contacto visual com quem se desfaz à frente dos olhos. Nos bancos o dinheiro não existe materialmente, na verdade não temos dinheiro apenas a informação que o temos, uma nuance que faz toda a diferença. Se todas as pessoas de um prédio não muito alto (e não precisavam de o ter em muita quantidade) levantassem o dinheiro ao mesmo tempo na mesma dependência, o banco não teria notas suficientes para dar a todos. 

O que quero dizer com tudo isto? Que o mundo está construído para que tudo seja descartável, para que nos possamos divertir em permanência. E que o miúdo de orelhas grandes tem razão. O país entendeu o sentido do seu sofrimento. Entendemos que é um ser humano e que sentiu vergonha e humilhação. O rapaz de orelhas grandes ofendeu-se por o terem tratado como um desenho animado e não como alguém que merece respeito. Vejo o Ídolos e o lamento do miúdo é um grito que continua na minha cabeça: um grito que diz sobre o que sentiu mas também sobre nós, sobre o que nos tornámos. 

Ps: Hoje, dia 14 de Maio, assumo a direcção interina no i. Tentarei estar à altura do desafio que me foi lançado e agradeço por antecipação a toda a equipa pela paciência que espero merecer. Agradeço também a Luís Rosa, director que contribuiu fortemente para o crescimento do jornal nos últimos meses. Foi um prazer trabalhar na direcção por si liderada.