Análise de Bloodborne. Macabra gratificação.

Análise de Bloodborne. Macabra gratificação.


Foi em 2009 que os fãs de videojogos voltaram a enfrentar algo que há muito haviam esquecido. Uma dificuldade capaz de os motivar a avançar apesar das inúmeras adversidades sentidas a cada minuto da progressão, uma sensação de recompensa única e viciante.


Agora, 6 anos após o lançamento de Demon's Souls e com o regresso de Hidetaka Miyazaki à produção em exclusivo para uma consola da Sony, os jogadores têm a oportunidade de experienciar uma vez mais tudo aquilo que caracterizou a série Souls, numa atmosfera distinta, marcante e igualmente recompensadora.

…casas que remetem à Londres vitoriana do século 19, com o estilo gótico a fazer-se realçar em cada canto

A jornada começa da mesma forma que na maioria dos RPGs, com a criação da nossa personagem. As ferramentas disponíveis são vastas e suficientes para moldar um esbelto e poderoso Hunter de Yharnam, ou a chacota de Hunters Dream. O leque é imenso, permitindo que personalizem a vossa estrutura física, feições da cara, cor do cabelo e até o uso, ou não, de monóculos e outros acessórios característicos da época fictícia onde Bloodborne se desenrola. Após a moldagem do Hunter, assistimos a uma cut-scene que dita o tom e ambiente obscuro que nos vai perseguir ao longo de toda a cidade de Yharnam, o palco principal da nova PI da From  Software. A cidade é composta por casas que remetem a Londres vitoriana do século 19, com o estilo gótico a fazer-se realçar em cada canto, algo que o afasta por completo dos títulos Souls, aprimorados pelo visual medieval embelezado por majestosos castelos, poderosos cavaleiros e dragões imponentes.

 

A humidade na calçada, as queimadas, as lanternas a óleo, as vestimentas dos aldeões infectados pelo vírus estão bem interligadas, expondo um realismo imaginário ao jogador. O mundo de Bloodborne é coeso, contrariamente à região de Drangleic de Dark Souls 2. A passagem da cidade para a floresta, ou da floresta para os calabouços faz de facto sentido.

É gratificante fazer a transição para um local que nunca tínhamos visto, como se tratasse de um encaixe das várias peças do puzzle que é Yharnam, algo que se torna ainda mais evidente com os inimigos presentes em cada canto da cidade.

Aldeões armados com espingardas de pólvora seca e forquilhas, corvos gigantes com bicos cortantes, lobisomens sedentos de sangue e bosses monumentais, dão vida aos nossos maiores pesadelos. Contrariamente aos jogos Souls, os adversários são directamente retirados dos nossos sonhos mais sombrios, incitando suores frios e tremores cada vez que lhes fazemos frente. As criaturas criam assim um elo mais apavorante e íntimo, tornando a sensação de recompensa ainda maior após o seu extermínio, como se tivéssemos ultrapassado os nossos medos… pelo menos até nos depararmos com o próximo.

A carne viva mutilada da cabeça a meio do dorso do Blood-Starved Beast,algo que ainda me atormenta de tão grotesco.

Este sentimento é realçado sobretudo no embate frente a um boss. A carne viva mutilada da cabeça a meio do dorso do Blood-Starved Beast, algo que ainda me atormenta de tão grotesco e realista que é, mesmo depois de o ter vencido. Por outro lado, faz com que queira voltar a enfrentá-lo, a experienciar os movimentos velozes e golpes devastadores. Chamem-me perturbado, demente ou viciado, mas a vivência presenciada com estas demonstrações de horror são algumas das melhores experiências que tive nos videojogos.

A jogabilidade é um dos ingredientes mais distintos de Bloodborne, incentivando a que os jogadores sejam velozes nas suas acções em vez de se fiarem nas capacidades defensivas. O círculo é assim um dos botões mais utilizados, uma vez que permite fazer dodge aos golpes inimigos ou até mesmo encurtar a distância entre o Hunter e a presa, caso já tenham confiança nas vossas capacidades e conhecimento das acções da futura vítima.

Outra componente única é a transformação das Trick Weapons. Passar de um florete perfurante para um pesado martelo de duas mãos, ou de uma espada de lâmina curva para uma gigantesca foice, concede ao jogador várias formas de iniciar o combate e desembaraçar-se das mais perigosas situações. Cada arma é distinta das restantes, com um leque de ataques próprios e apreciáveis, convidando cada jogador a escolher a sua companheira de combate favorita, companheira essa que evolui e o acompanha ao longo da campanha.

Contrariamente aos títulos Souls, não precisam da alma de um boss para a criação e melhoramento das armas. O sistema foi simplificado e redesenhado para que possam adquirir as vossas armas nos Messengers ao investirem algumas Blood Echoes (novas Souls), ganhando assim um novo e macabro brinquedo. A personalização consiste na já comum subida de nível dos objectos de tortura e na selecção de Blood Gems, minerais coloridos que concedem à arma melhorias como o aumento de dano de ataques físicos e arcanos, ou atributos únicos como a capacidade de envenenar os inimigos lentamente.

Os escudos e magias dos títulos Souls foram substituídos e repartidos pelos novos elementos de jogabilidade. Caso sejam surpreendidos por um inimigo, o mais certo é que sofram o primeiro golpe, diminuindo momentaneamente a barra de vida do Hunter. Momentaneamente porquê? Bem, contrariamente aos títulos que inspiraram a nova PI, têm alguns segundos para recuperar a vida que perderam, ao atacar repetidamente um oponente “sugando” assim, parte do sangue que derramaram. Uma excelente forma de substituir o escudo, incentivando a que os jogadores avancem e enfrentem os seus medos.

As armas de fogo combinam parte da magia e defesa ausente no jogo, como se de um canivete suíço se tratassem. A nossa espingarda pode ser usada para fazer Parry (escudo) aos ataques dos inimigos, abrindo assim uma pequena janela onde podem desferir um mortífero golpe que vos cobre com sangue do vosso oponente. A munição e até mesmo as Pebbles (Pedras) são uma das melhores formas para isolar um inimigo do restante grupo, funcionando como as Souls Arrows de Dark Souls. Elementos moldados dos jogos que servem de base a Bloodborne, de forma a adaptarem-se aos agressivos e acelerados confrontos.

O sistema de atributos tornou-se mais inteligível para enquadrar a jogabilidade de Bloodborne, e sejamos sinceros, para aumentar o número de contractos de sangue também. A diminuição de 8 para 6 Skills e mais importante, a inexistência de Equip Load, torna toda a experiência mais acessível e intuitiva. Os jogadores já não precisam de se perguntar para que raio serve o Faith e preocupar-se com o peso do seu equipamento, que definia a forma como a personagem se movimentava e golpeava, algo que não se adequaria ao estilo de combate do novo monstro de Miyazaki.sintam o prazer que é ultrapassar um obstáculo à primeira vista “impossível”.

É inegável que os jogos da From Software são de uma dificuldade acima da média, apesar de para mim, compará-los à peste negra que abala os videojogos seja excessivo. O nosso maior inimigo somos nós próprios, esta é a verdade. A comum morte frente a um adversário, um desfiladeiro, uma armadilha ou claro, um boss, são rituais de aprendizagem que transmitem o conhecimento necessário para que o jogador enfrente a mesma situação de forma distinta. Caso surja You Died no ecrã, então é porque fizeram (You) algo de errado. Avancem calmamente e cuidadosamente, analisem as acções dos oponentes e encontrem o “momento” certo para contra-atacar, sintam o prazer que é ultrapassar um obstáculo à primeira vista “impossível”.

 

Saboreiem o doce sabor de vitória enquanto podem, não existe maior recompensa que essa.

Uma nota para a música do jogo, um acompanhante melancólico adornado pelos sons e vozes dos aldeões, informadores escondidos por detrás da segurança das suas casas, eles que não arriscam nada, mas que abrilhantam uma atmosfera de gritos estridentes, grunhidos inquietantes e passadas estremecidas, dando "vida" a uma cidade governada pela morte.

 

Graficamente, brinda os aventureiros com um estonteante mundo aberto, composto por sombras e iluminações que realçam a beleza retida nos vários locais e claro, nos perturbadores seres que vagueiam pela região. O sangue é uma das assinaturas do jogo e faz por se fazer notar. Os jorros de plasma encarnado dos opositores pintam a nossa passagem de vermelho, numa atmosfera marcada por tons neutros, fazendo com que cada golpe seja prazeroso e tenha impacto no Hunter e em tudo que se encontra ao redor.

O online permanece similar aos jogos Souls. Continuamos a poder ver as jornadas de outros caçadores através dos fantasmas que vagueiam pela região, assistir aos últimos segundos de folgo através dos espectros vermelhos contidos nas criptas e a ler as várias mensagens deixadas no solo, que alertam para a presença de um inimigo, um tesouro esquecido ou uma simples demonstração de humor negro, que motiva os jogadores a avançar para precipícios sem fim. Para além destes elementos, continuam a poder cooperar e invadir outros jogadores com os simbólicos sinos de Bloodborne. Formas de interacção com o mundo “exterior” que ainda assim não são suficientes para o abandono da sensação de solidão, tão vincada nos títulos da From Software. Hunter Vs o Mundo.

As Chalice Dungeons são outra parte integrante do online, que aumenta o valor de repetição do jogo, com níveis criados aleatoriamente através de vários elementos para a concretização de um ritual. Após o aglomerar dos itens necessários, os jogadores têm oportunidade de enfrentar novos locais, contendo bosses e inimigos únicos que não serão capazes de confrontar na história principal. É divertido explorar os níveis juntamente com amigos ou desconhecidos, em busca de equipamento exclusivo enquanto assistem ao tombo dos imponentes inimigos. Um conceito com imenso potencial, que acaba por pecar passado algum tempo, devido ao visual semelhante e inimigos comuns presentes nas várias Dungeons.

Mas nem tudo é um mar de rosas (sarcasmo evidente), Bloodborne também conta com os seus próprios pesadelos, mais concretamente, os demorados loadings (40 segundos) e uma framerate instável. Se porventura ainda não tiverem percebido, vão falecer vezes e vezes sem conta, terão de lidar com esta certeza regularmente, e infelizmente, aguardar entre 30 a 40 segundos até que possam regressar ao mundo dos “vivos”. É algo que prejudica a experiência do jogo, que tem como imagem de marca a morte, mas não o suficiente para vos desalgemar.

Tal como mencionado em cima, existem momentos aleatórios em que é perceptível a diminuição de framerate no jogo, amedrontando assim a progressão dos Hunters ao longo da cidade de Yharnam. Situações que podem instigar momentos de frustração nunca comparáveis às sentidas pelos entusiastas de Dark Souls em Blightown. É bom saber que a equipa de produção se encontra a desenvolver um patch que vai, esperamos nós, aniquilar estes monstros, suavizando uma experiência já por si stressante.

Veredito

Apesar das inúmeras comparações com os títulos Souls, uma coisa é evidente, Bloodborne é um título singular. O seu combate “fast paced”, as variações das armas, a maleabilidade das espingardas e a sua atmosfera sombria, marcada pelos traços góticos e vitorianos tornam o novo exclusivo da Sony distinto dos restantes títulos da From Software. Uma variação refrescante que apesar dos penosos Loadings e das momentâneas quebras de framerate, acaba por oferecer uma das melhores experiências lançadas até ao momento para as consolas da actual geração. No futuro, Bloodborne vai ser comparado com ele mesmo e não com os pilares que serviram como estrutura para o seu desenvolvimento. 9.4 /10

*Artigo escrito por André Henriques, da IGN Portugal.