Todo um programa de governo num único SMS


Assustei-me. Imaginei que António Costa era um ingénuo que se jogava nas mãos dos jornalistas. Mas, afinal, é uma nova forma de campanha eleitoral


Tenho de falar do SMS que António Costa enviou ao director-adjunto do “Expresso” porque não gostou do que o jornalista escreveu na sua coluna de opinião. Quando li a notícia, não queria acreditar. Estremeci. Como é possível que um político experiente caia na armadilha de enviar uma mensagem daquele teor a um jornalista? Será que acreditou que o sujeito a ia guardar para si e não dar importância a uma ameaça ao estilo do “animal feroz” ? Poderemos estar perante um candidato que é incapaz de controlar a sua fúria, mesmo quando legítima, e se joga desta maneira nas mãos do inimigo? Não tem um amigo, um assessor, alguém que lhe diga que se acalme, deixando o colunista com o pior dos castigos — imaginar que o visado pelo seu texto não o leu? Imaginava eu, na minha santa ingenuidade, que todos os políticos tivessem apagado da sua lista de contactos o nome e telefone de um jornalista que fosse, para não caírem na tentação de um ajuste de contas que ricocheta sempre contra quem o desencadeia.

Depois respirei fundo e percebi tudo. Percebi que António Costa é o mais responsável dos nossos políticos e, tendo consciência de que estamos em crise e que não faz sentido gastar dinheiro que faz falta aos mais pobres em cartazes e tempos de antena, decidiu resumir toda a sua campanha eleitoral numa única mensagem. Sim, porque a partir daquele texto é possível desenhar o carácter do candidato, e ainda todo um programa eleitoral.

Basta para tal fazer o pequeno exercício de dividir a prosa em orações, como nos ensinaram na escola. Ora veja: Onde está “Saberá que, em tempos, o jornalismo foi uma profissão de gente séria, informada, que informava, culta, que comentava”, deve ler-se: Durante o governo do PS, sob a minha orientação, será obrigatório estudar a lei de imprensa do Estado Novo, para que se perceba como foi importante o papel do dr. Oliveira Salazar na contenção de um jornalismo selvagem como aquele que se praticava durante o final da monarquia e durante a I República, já para não falar no pós-25 de Abril.

Onde se escreve “Hoje, a coberto da confusão entre liberdade de opinar e a imunidade de insultar, essa profissão respeitável é degradada por desqualificados, incapazes de terem uma opinião e discutirem as dos outros, que têm de recorrer ao insulto reles e cobarde para preencher as colunas que lhes estão reservadas”, deve ler-se: Dado que o jornalismo já não é uma profissão de gente séria, informada e culta, como no tempo da minha mãe, e eu bem sei do que falo porque tenho um irmão mais novo que faz parte dessa escória, e nomeou director-adjunto o desqualificado em causa, o meu partido, se for eleito, terá de reagir com veemência aos energúmenos que se atreverem a criticá-lo.

Sempre que a algum membro do governo não agradar o conteúdo das colunas reservadas a essa malta, sentir-se- á no direito de impedir tais escritos de serem publicados (os tais que o cretino do meu irmão deixa passar). Nota ainda que se passarão a considerar cobardes os escritos publicados em jornais com mais de 90 mil exemplares de tiragem e sobretudo quando assinados por quem os escreveu.

Onde se lê “Quem se julga para se arrogar a legitimidade de julgar o carácter de quem não conhece?”, deve ler-se: A partir do momento em que eu tomar posse, só as pessoas das minhas relações é que me podem criticar. Só estarão autorizados a fazê-lo parentes no primeiro grau e jornalistas que tenham almoçado com o primeiro-ministro em exercício, e pago a conta, claro.

Onde se lê, “Como não vale a pena processá-lo”, deve ler-se todo um programa para a justiça em Portugal: Dado que o meu partido não acredita nos tribunais, e ainda menos nos juízes, e sabe bem que é absolutamente inútil imaginar que se faça justiça em tempo útil, irá incentivar a justiça por próprias mãos — mais em conta e de uma celeridade incomparável. Enquanto um SMS vai e vem, ainda nem o processo deu entrada na secretaria.

Depois disto, não sei porque se admiram que António Costa afirme que não tem mais nada a dizer.

Jornalista e escritora
Escreve ao sábado


Todo um programa de governo num único SMS


Assustei-me. Imaginei que António Costa era um ingénuo que se jogava nas mãos dos jornalistas. Mas, afinal, é uma nova forma de campanha eleitoral


Tenho de falar do SMS que António Costa enviou ao director-adjunto do “Expresso” porque não gostou do que o jornalista escreveu na sua coluna de opinião. Quando li a notícia, não queria acreditar. Estremeci. Como é possível que um político experiente caia na armadilha de enviar uma mensagem daquele teor a um jornalista? Será que acreditou que o sujeito a ia guardar para si e não dar importância a uma ameaça ao estilo do “animal feroz” ? Poderemos estar perante um candidato que é incapaz de controlar a sua fúria, mesmo quando legítima, e se joga desta maneira nas mãos do inimigo? Não tem um amigo, um assessor, alguém que lhe diga que se acalme, deixando o colunista com o pior dos castigos — imaginar que o visado pelo seu texto não o leu? Imaginava eu, na minha santa ingenuidade, que todos os políticos tivessem apagado da sua lista de contactos o nome e telefone de um jornalista que fosse, para não caírem na tentação de um ajuste de contas que ricocheta sempre contra quem o desencadeia.

Depois respirei fundo e percebi tudo. Percebi que António Costa é o mais responsável dos nossos políticos e, tendo consciência de que estamos em crise e que não faz sentido gastar dinheiro que faz falta aos mais pobres em cartazes e tempos de antena, decidiu resumir toda a sua campanha eleitoral numa única mensagem. Sim, porque a partir daquele texto é possível desenhar o carácter do candidato, e ainda todo um programa eleitoral.

Basta para tal fazer o pequeno exercício de dividir a prosa em orações, como nos ensinaram na escola. Ora veja: Onde está “Saberá que, em tempos, o jornalismo foi uma profissão de gente séria, informada, que informava, culta, que comentava”, deve ler-se: Durante o governo do PS, sob a minha orientação, será obrigatório estudar a lei de imprensa do Estado Novo, para que se perceba como foi importante o papel do dr. Oliveira Salazar na contenção de um jornalismo selvagem como aquele que se praticava durante o final da monarquia e durante a I República, já para não falar no pós-25 de Abril.

Onde se escreve “Hoje, a coberto da confusão entre liberdade de opinar e a imunidade de insultar, essa profissão respeitável é degradada por desqualificados, incapazes de terem uma opinião e discutirem as dos outros, que têm de recorrer ao insulto reles e cobarde para preencher as colunas que lhes estão reservadas”, deve ler-se: Dado que o jornalismo já não é uma profissão de gente séria, informada e culta, como no tempo da minha mãe, e eu bem sei do que falo porque tenho um irmão mais novo que faz parte dessa escória, e nomeou director-adjunto o desqualificado em causa, o meu partido, se for eleito, terá de reagir com veemência aos energúmenos que se atreverem a criticá-lo.

Sempre que a algum membro do governo não agradar o conteúdo das colunas reservadas a essa malta, sentir-se- á no direito de impedir tais escritos de serem publicados (os tais que o cretino do meu irmão deixa passar). Nota ainda que se passarão a considerar cobardes os escritos publicados em jornais com mais de 90 mil exemplares de tiragem e sobretudo quando assinados por quem os escreveu.

Onde se lê “Quem se julga para se arrogar a legitimidade de julgar o carácter de quem não conhece?”, deve ler-se: A partir do momento em que eu tomar posse, só as pessoas das minhas relações é que me podem criticar. Só estarão autorizados a fazê-lo parentes no primeiro grau e jornalistas que tenham almoçado com o primeiro-ministro em exercício, e pago a conta, claro.

Onde se lê, “Como não vale a pena processá-lo”, deve ler-se todo um programa para a justiça em Portugal: Dado que o meu partido não acredita nos tribunais, e ainda menos nos juízes, e sabe bem que é absolutamente inútil imaginar que se faça justiça em tempo útil, irá incentivar a justiça por próprias mãos — mais em conta e de uma celeridade incomparável. Enquanto um SMS vai e vem, ainda nem o processo deu entrada na secretaria.

Depois disto, não sei porque se admiram que António Costa afirme que não tem mais nada a dizer.

Jornalista e escritora
Escreve ao sábado