Talvez a história não tenha descanso e seja a narrativa que dos factos extrai estórias, servindo uma ideia encorajadora do presente e, portanto, do futuro. A elegância permitirá que passe por justa a forma como nela se selecciona, organiza e interpreta os eventos que se confundem no passado, como se estabelece um argumento credível, arrumando a desarrumação do tempo. Muitas coisas sucedem simultaneamente, boa parte delas de costas voltadas antes de se enfrentarem. E há uma margem significativa de fenómenos acidentais ao lado de outra, talvez maior, de efeitos atrás de causas que passam sem dar testemunho e se perdem no esquecimento. Mas a história também se faz de um esforço de lembrança.
A Rússia assinala hoje o 70.o aniversário da vitória soviética sobre a Alemanha nazi e a forma como escolhe lembrar a II Guerra Mundial difere desde logo da forma como o Ocidente organiza a sua memória pelo nome que lhe dá. Os russos chamam-lhe a Grande Guerra Patriótica. A mais mortal das guerras – uma que, segundo estimativas conservadoras, calcula em 27 milhões os soldados e civis da ex-União Soviética que nela perderam a vida – é destacada como um dos motivos de maior orgulho na história que os russos contam de si a si mesmos.
Mas para que se tenha uma ideia de como a questão está longe de ser pacífica basta considerar o testemunho de Viktor Astafyev, uma das vozes mais relevantes da literatura russa, a relatar o que foi a guerra. Ele que esteve na linha da frente, foi ferido sucessivas vezes – a última delas, com gravidade, levaria à sua dispensa antes do fim da guerra –, com a sua coragem a ser reconhecida inicialmente com uma medalha e, mais tarde, com a Ordem da Estrela Vermelha. Segundo Astafyev, o balanço que se ficou por 27 milhões de mortes resulta de contas que passam muito por baixo do que foi um pavoroso sacrifício humano, e acusa as chefias militares de terem alcançado a vitória à custa de “uma enorme quantidade de sangue”.
Numa carta recentemente publicada pelo jornal independente “Novaya Gazeta”, o veterano de guerra diz que “foram eles que atiraram as pessoas ao fogo como se fossem palha” e que “o inimigo foi bombardeado com cadáveres e afogado em sangue russo”.
À frase que diz que a história é escrita pelos vencedores escapam certas nuances, por vezes brutais. Os piores sacrifícios acabam por consolidar a própria noção de glória numa guerra. Isso explica, em parte, que a vitória do Exército Vermelho seja celebrada hoje com um espectáculo ostentoso, com o céu de Moscovo rasgado por 150 caças militares e Vladimir Putin na Praça Vermelha a presidir a um desfile de 16 mil soldados russos e estrangeiros, enquanto estarão em exposição algumas das novas armas russas – três mísseis balísticos intercontinentais.
São claros os propósitos do presidente russo de aproveitar a ocasião para homenagear o passado imperial da Rússia e engrandecer o seu regime após a anexação da Crimeia e a incursão no leste da Ucrânia. Assim, este olhar sobre a história é outro sinal inquietante que põe em evidência as crescentes tensões com o Ocidente, num cenário paralelo àquele que viu os dois blocos que saíram vencedores da II Guerra ensaiar um confronto entre si numa terceira.
Se recuarmos dez anos, quando em 2005 se celebrou o 60.o aniversário da rendição nazi, o contraste torna-se evidente: na Praça Vermelha, ao lado de Putin estavam os líderes norte-americano, francês e alemão de então – George W. Bush, Jacques Chirac e Gerhard Schroeder. Hoje, os líderes destes e de outros países ocidentais estarão ausentes, tendo deixado claro que não queriam fazer parte do espectáculo de que Putin se servirá para alimentar a retórica que o levou ao auge da sua popularidade no momento em que anexou a Crimeia, naquela que foi a primeira emenda ao mapa da Europa pela força desde o fim da Guerra Fria.
Numa renovação das alianças da era soviética entre Moscovo e os países da América Latina e Ásia, Putin terá a seu lado os líderes da China, Cuba, Índia, África do Sul e algumas ex-repúblicas soviéticas, os quais representam cerca de um terço dos 68 chefes de Estado e líderes de organizações internacionais convidados para a cerimónia. Quanto ao boicote, o líder russo acusou os EUA de pressionarem os seus aliados para que não comparecessem e disse que a estratégia dos “inimigos” da Rússia passa por reescrever a história, minimizando a importância do papel desempenhado por Moscovo na derrota da Alemanha nazi.