As duas tragédias


A semana acabou com o trágico caso da menina de 12 anos violada pelo padrasto que está grávida de cinco meses.


A semana acabou com o trágico caso da menina de 12 anos violada pelo padrasto que está grávida de cinco meses. Uma monstruosidade que não deixa ninguém indiferente e que nos deixa todos incomodados. Este caso é emblemático não apenas pela própria monstruosidade mas por revelar friamente a sociedade em que vivemos e por dizer muito do moralismo da opinião pública. Revela assim duas tragédias: a da menina e do seu bebé e a de uma sociedade que não sabe lidar com os seus dilemas morais. 

Depois de se conhecer a primeira tragédia através da comunicação social – que como se sabe é orgulhosamente amoral e por isso se acha no direito de publicar seja o que for –, as redes sociais e as notícias agarram-se entusiasticamente a um debate abstracto: deve ou não deve ser permitido que a criança aborte? Esta discussão aconteceu apesar de não se conhecerem os contornos do caso, apenas os títulos.

O facto de a gravidez ter mais de cinco meses e a criança apenas 12 anos foi o motivo da discussão. Se fossem quatro os meses de gestação e se a mãe fosse uns anos mais velha não havia dúvidas. Vai daí assinaram-se petições a favor do aborto, manifestações contra o aborto e a menina de 12 anos e o seu bebé foram dissecados na rua sem qualquer pudor. Como se a rua tivesse voto na matéria. Como se a rua, a opinião pública, eu ou qualquer outra pessoa tivéssemos a autoridade moral, o discernimento ou o direito de ter uma opinião sobre um caso tão sensível e do qual desconhecemos os pormenores. Mas percebeu-se que a rua acha que pode, as redes sociais também e os autores das petições idem. Sim, somos livres de ter a nossa opinião, mas devíamos ter vergonha de a dar em alguns casos. E este é um deles. 

A simplicidade do debate, o à-vontade com que se defendeu o aborto e a certeza dos que foram contra o aborto, revelam que os princípios morais da nossa sociedade são circunstanciais. Que a moralidade das massas é uma espécie de espuma que desaparece com um sopro. Na rua é assim que se discute, daí que tenha sido mais uma discussão de arruaceiros. É esta a segunda tragédia revelada.

Enquanto a rua se agitava, no Hospital de Santa Maria um conselho de especialistas reuniu-se. Tendo em conta todos os pormenores do caso, que só eles conhecem, discutiram para decidir qual o destino do bebé da criança de 12 anos. Decidiu-se, e bem, que as conclusões não seriam reveladas, que o caso é demasiado sensível para ser tornado ainda mais público. Mas nem um dia passou e foi anunciada na capa de um jornal (dito de referência) a conclusão a que tinha chegado o dito conselho de especialistas. Os ânimos arrefeceram e as opiniões públicas calaram-se. Já não há mais nada que berrar. Na próxima semana ninguém se vai lembrar da menina de 12 anos e do seu bebé. O julgamento do padrasto terá com sorte direito a uma notícia em página par no canto esquerdo e as petições vão ganhar pó. 

Sobre a tragédia da menina e do seu bebé quero e prefiro acreditar que aquele conselho de sábios, de especialistas em ciência e ética, decidiram bem. Decidiram por uma vida por estar em causa outra vida. E não decidiram por uma vida por estar em causa um trauma (que jamais deixará de existir). Numa sociedade madura, confia–se que os seus sábios são mesmo pessoas de bem e que os seus juízos não se movem pela mesma emoção, nem têm a fragilidade moral que agita a rua. Pela saúde e pela vida das duas crianças só posso acreditar que foi assim que foi formulado o juízo e ditada a decisão. É esta a única opinião que se pode ter sobre este caso trágico de maldade e miséria humana. Pois se há tema que não pode nem deve ser objecto de julgamento popular, este é um deles.

Escreve ao sábado

As duas tragédias


A semana acabou com o trágico caso da menina de 12 anos violada pelo padrasto que está grávida de cinco meses.


A semana acabou com o trágico caso da menina de 12 anos violada pelo padrasto que está grávida de cinco meses. Uma monstruosidade que não deixa ninguém indiferente e que nos deixa todos incomodados. Este caso é emblemático não apenas pela própria monstruosidade mas por revelar friamente a sociedade em que vivemos e por dizer muito do moralismo da opinião pública. Revela assim duas tragédias: a da menina e do seu bebé e a de uma sociedade que não sabe lidar com os seus dilemas morais. 

Depois de se conhecer a primeira tragédia através da comunicação social – que como se sabe é orgulhosamente amoral e por isso se acha no direito de publicar seja o que for –, as redes sociais e as notícias agarram-se entusiasticamente a um debate abstracto: deve ou não deve ser permitido que a criança aborte? Esta discussão aconteceu apesar de não se conhecerem os contornos do caso, apenas os títulos.

O facto de a gravidez ter mais de cinco meses e a criança apenas 12 anos foi o motivo da discussão. Se fossem quatro os meses de gestação e se a mãe fosse uns anos mais velha não havia dúvidas. Vai daí assinaram-se petições a favor do aborto, manifestações contra o aborto e a menina de 12 anos e o seu bebé foram dissecados na rua sem qualquer pudor. Como se a rua tivesse voto na matéria. Como se a rua, a opinião pública, eu ou qualquer outra pessoa tivéssemos a autoridade moral, o discernimento ou o direito de ter uma opinião sobre um caso tão sensível e do qual desconhecemos os pormenores. Mas percebeu-se que a rua acha que pode, as redes sociais também e os autores das petições idem. Sim, somos livres de ter a nossa opinião, mas devíamos ter vergonha de a dar em alguns casos. E este é um deles. 

A simplicidade do debate, o à-vontade com que se defendeu o aborto e a certeza dos que foram contra o aborto, revelam que os princípios morais da nossa sociedade são circunstanciais. Que a moralidade das massas é uma espécie de espuma que desaparece com um sopro. Na rua é assim que se discute, daí que tenha sido mais uma discussão de arruaceiros. É esta a segunda tragédia revelada.

Enquanto a rua se agitava, no Hospital de Santa Maria um conselho de especialistas reuniu-se. Tendo em conta todos os pormenores do caso, que só eles conhecem, discutiram para decidir qual o destino do bebé da criança de 12 anos. Decidiu-se, e bem, que as conclusões não seriam reveladas, que o caso é demasiado sensível para ser tornado ainda mais público. Mas nem um dia passou e foi anunciada na capa de um jornal (dito de referência) a conclusão a que tinha chegado o dito conselho de especialistas. Os ânimos arrefeceram e as opiniões públicas calaram-se. Já não há mais nada que berrar. Na próxima semana ninguém se vai lembrar da menina de 12 anos e do seu bebé. O julgamento do padrasto terá com sorte direito a uma notícia em página par no canto esquerdo e as petições vão ganhar pó. 

Sobre a tragédia da menina e do seu bebé quero e prefiro acreditar que aquele conselho de sábios, de especialistas em ciência e ética, decidiram bem. Decidiram por uma vida por estar em causa outra vida. E não decidiram por uma vida por estar em causa um trauma (que jamais deixará de existir). Numa sociedade madura, confia–se que os seus sábios são mesmo pessoas de bem e que os seus juízos não se movem pela mesma emoção, nem têm a fragilidade moral que agita a rua. Pela saúde e pela vida das duas crianças só posso acreditar que foi assim que foi formulado o juízo e ditada a decisão. É esta a única opinião que se pode ter sobre este caso trágico de maldade e miséria humana. Pois se há tema que não pode nem deve ser objecto de julgamento popular, este é um deles.

Escreve ao sábado