A Europa parece às vezes uma viúva à janela das suas memórias, entre um sofrimento sério, real, e outro algo fingido e teatral, o gosto de dar-se a fanicos. Foi assim que nos últimos dias se deixou inquietar pelos planos de um gangue de motards russos, ultranacionalistas, que esperavam recriar o percurso do Exército Vermelho que, há 70 anos, culminou na rendição da Alemanha nazi e no fim da Grande Guerra Patriótica, como é conhecida a Segunda Guerra Mundial na Rússia. Os Night Wolves – como o grupo se chama – estão a encontrar alguns percalços na sua tentativa de assinalar o aniversário com uma “volta vitoriosa”, que se iniciou no sábado em Moscovo e devia terminar no dia 9 de Maio em Berlim – na data da rendição. A rota passaria pela Bielorrússia, pela Polónia, pela República Checa, pela Eslováquia e pela Áustria, mas na segunda-feira uma dezena dos cerca de 30 lobos que saíram da capital russa foram impedidos de prosseguir por guardas fronteiriços polacos após um longo interrogatório. Isto não demoveu o grupo de alcançar Berlim.
A controvérsia que envolve os Night Wolves tem como pano de fundo o momento de tensão entre o Ocidente e a Rússia, com a homenagem que o grupo pretende fazer encarada como uma provocação e a ameaçar tornar-se um conflito diplomático. O clube conta com perto de 7 mil membros e, longe do ânimo desordeiro e de desafio à autoridade que é apanágio destes gangues, os lobos são apoiantes entusiásticos do presidente russo, Vladimir Putin. Não só isso como participaram na anexação da Crimeia o ano passado (alguns membros do grupo estiveram na península para apoiar a tomada dos principais edifícios por forças pró-Rússia) e também, mais tarde, na crise no Leste da Ucrânia. O seu líder, Alexander Zaldostanov, conhecido como “o Cirurgião”, tem 52 anos, e desde 2009, quando começou a amizade com Putin, veio a tornar-se uma das figuras mais destacadas no panteão de “patriotas” – as celebridades que participam na novela de valores tradicionais que tem o Kremlin no centro e que rejeitam fervorosamente os valores ocidentais. Ele e Putin desfilaram já lado a lado nas suas motos, mas o mais importante é que Zaldostanov é um dos fundadores do Anti-Maidan, um movimento russo que nasceu em Janeiro com o desígnio de esmagar as manifestações que, segundo os seus membros, pretendem reencenar em Moscovo a revolução que teve lugar em Kiev.
A primeira-ministra polaca, Ewa Kopacz, não hesitou em falar de “provocação” com vista a enervar os polacos. Foram muitos os que se insurgiram contra os planos do grupo, exigindo que estes fossem simplesmente impedidos de entrar no país. Ainda assim, houve alguns motards polacos que se solidarizaram com a marcha dos russos, que, de resto, está longe de ser uma novidade. Há dois anos, como notaram os lobos, a mesma data foi celebrada de modo muito similar. Muitos motards polacos planeavam mesmo escoltar os lobos na sua passeata através das estradas polacas. À volta de uma centena reuniram-se do lado polaco da fronteira e protestaram contra a atitude das autoridades com os lobos através de um buzinão.
O que fazem hoje os clubes de motards senão arranjar efemérides e outras desculpas para se fazerem à estrada em filinha? Passaram-se décadas desde os anos que fizeram destes gangues lendas intimidantes, que percorriam distâncias fenomenais nas majestosas Harleys, quais piratas das auto-estradas, barbas ao vento e blusões de cabedal. Foi uma era que, de certo modo, Hollywood mimou e imortalizou com a sua fita icónica “Easy Rider”. Os motards foram o twist moderno no papel clássico dos grandes aventureiros. À margem de todas as convenções, os duros rebeldes, desinteressados do jogo de afirmação possessiva consumista, deixavam tudo para trás e só tinham e defendiam a liberdade da viagem sem destino.
Foi um signo cultural que desde então praticamente se diluiu entre a miríade de extravagâncias que ficaram como testemunhos datados de eras ultrapassadas. A polícia e os media caíram sobre a cultura motard que ganhou fulgor naqueles anos na América doNorte, onde reinaram os Hells Angels, revelou que sob o charme daquele estilo de vida ganhou raízes uma cultura de crueldade, racista, sexista e criminosa. Nos dias de hoje, os motards passam por outro cliché, que fabrica a tentação de rebeldia nas sociedades controladoras em que vivemos.
Na Polónia, os Night Wolves são muitas vezes referidos como os Hells Angels do Kremlin, criminosos que contam com a benevolência das autoridades russas, úteis para intimidar os seus opositores. Os seus códigos e rituais alimentam o saudosismo em relação às conquistas do período soviético. É na leitura sobre a ofensiva que veio a derrotar o exército nazi em 1945 que as narrativas se tornam inconciliáveis. Para os países que vieram a libertar-se do senhor soviético – países que então estavam do lado de lá da chamada “Cortina de Ferro” e que hoje, com a Polónia à cabeça, são os primeiros a exigir que a UE trave o quanto antes a tentação expansionista do Kremlin –, a vitória sobre Hitler não significou o fim da tirania na Europa; a vitória do Exército Vermelho foi simplesmente o momento de transição, em que estes países da Europa Central e de Leste foram apanhados nas malhas repressivas de outro monstro, Estaline. Para os políticos de Varsóvia, 9 de Maio não passa por isso de um novo capítulo do mesmo livro.
Seja como for, alguns analistas têm sublinhado que não há grande sentido em que os governos se deixem contagiar pela indignação popular, respondendo às provocações de um bando de motards. Se nem quando estes clubes estavam no auge, há 40 anos, assumiam qualquer protagonismo no plano geopolítico, o que justifica que mereçam hoje proibições como as que Varsóvia e mesmo Berlim estão a impor aos Night Wolves. Nas últimas semanas, o grupo dominou os ciclos noticiosos na Polónia, com um forte clamor nas redes sociais pressionando o governo a impedir o avanço dos motards. “Não os deixaremos entrar. Trata-se de uma forma de violência simbólica, que conduz à violência real”, afirmou num canal televisivo o político polaco Pawel Kowal.
Rotas alternativas Entretanto foi a vez do Ministério dos Negócios Estrangeiros russo de entrar na polémica para acusar Varsóvia de embarcar numa “mentira completa”, enquanto os organizadores da marcha classificaram a recusa polaca como uma manifestação da “histeria anti-Rússia”. Já o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão, Martin Schaefer, disse à Reuters que “não havia nada de ilegal em relação à marcha por si só”. “Temos toda a estima pela liberdade de expressão e de reunião na Alemanha, mas concluímos que alguns dos líderes dos Night Wolves não perseguem metas legítimas com estes planos”, disse, acrescentando que a forma como apoiaram a anexação da Crimeia era a prova disso.
“Haverá outras pessoas que não se vão identificar como lobos e que irão buscar rotas alternativas para concluir esta missão”, assegurou Zaldostanov à agência russa LifeNews. O certo é que depois disto um gangue pouco conhecido fora da Rússia está a viver o seu momento de glória.