Brett Morgen. “Descobri o que nunca ninguém viu. Por exemplo: o Kurt romântico”

Brett Morgen. “Descobri o que nunca ninguém viu. Por exemplo: o Kurt romântico”


Falámos com o realizador do mais ambicioso documentário sobre Kurt Cobain. O filme vai estar esta semana nas salas portuguesas


O primeiro documentário autorizado sobre Kurt Cobain desde a morte do músico é este: “Montage of Heck”, realizado por Brett Morgen, sobre a vida do vocalista dos Nirvana, um dos maiores ídolos da cultura popular. Em 2007, Courtney Love decidiu disponibilizar todo o arquivo do marido, material que estava intacto num armazém de Los Angeles. Morgen foi o escolhido para concretizar o trabalho, sem mais colaborações por parte de Courtney, mas com a produção da filha do casal, Frances Bean Cobain. “Montage of Heck” vai ser exibido esta semana – amanhã, sexta e sábado – nas salas NOS, às 21h30. Na segunda-feira está à venda em DVD na Amazon e em Maio chega o livro.

Fazer mais e melhor que aquilo que já tinha sido feito foi uma das prioridades para este “Montage of Heck”?

Em parte, sim. Achei que havia uma falha nas anteriores histórias sobre o Kurt Cobain, fossem livros ou filmes. Houve tentativas muito bem sucedidas mas, no caso dos livros, frequentemente são muito analíticos e isso dificulta a nossa aproximação ao que mais gostamos no Kurt, ao que sempre quisemos saber e a uma forma de, de alguma maneira, ficarmos mais próximos dele, mesmo que fisicamente isso não seja possível. E, claro, depois há os documentários. Mas, para esses, nunca ninguém teve acesso à música, e isso sempre representou uma limitação para o resultado final e até para o sucesso ou o reconhecimento que poderiam ter. Senti que fui colocado na posição mais privilegiada que alguma vez passou pelas mãos de um biógrafo do Kurt Cobain ou de quem quer que fosse que procurou contar a sua história, porque consegui acesso a materiais que nunca ninguém tinha visto, incluindo quase todos os membros da família ou os amigos mais próximos.

E como é que o resultado final tem chegado aos fãs? Tem conseguido cumprir esse efeito inesperado?

A reacção ao filme tem sido para lá de gratificante. Mas não se trata de ver as pessoas nas salas de cinema a atirarem–se para o chão e a espalharem high fives pelos amigos, não é nada disso, não se trata de um momento de celebração. Acho que o filme celebra a vida do Kurt, claro que sim, mas não como se se tratasse de um testemunho, não é um momento para idolatrar uma figura. Durante todo este processo senti-me completamente esgotado a nível emocional. Acho que ainda estou a recuperar. Quando decidi mostrar o filme ao mundo, senti que não era capaz de fazer mais, tudo o que tinha, toda a minha entrega ficou com esta história. Tem sido emotivo, mas tenho tido as recompensas necessárias. A minha maior satisfação é conseguir perceber que algumas pessoas saem da sala de cinema a sentir que ficaram a conhecer melhor o Kurt. Aliás, que o conheceram naquela ocasião, finalmente. E quanto mais o conhecem, mais gostam dele.

Teve acesso a tudo o que foi de Kurt Cobain, a material que nunca ninguém viu ou ouviu antes. Inevitavelmente, isso ditou a forma como decidiu fazer o filme. Mostrar essa informação foi a prioridade, não?

Tinha de o fazer. Quando comecei a investigar o material que tinha à minha disposição, ou quando toda esta informação começou a tomar conta de mim, sabia que tinha de mostrar isto ao mundo, era a única coisa sensata a fazer. Quando ouvi o Kurt a tocar canções dos Beatles, só pensava “meu Deus, as pessoas têm de ouvir isto”. E durante anos fui o único que ouviu aquelas 108 cassetes, o único. Não é fácil carregar com isso. Tive a oportunidade de rever tudo o que saiu na comunicação social sobre o Kurt. Oitenta e cinco por cento deste filme é constituído por material nunca antes visto, ou visto numa ocasião ou outra, muito rara. É uma percentagem enorme. E atenção, porque também eu, quando me meti nisto, pensei: “O que mais podemos nós fazer e mostrar sobre o Kurt, o que ainda não sabemos, sobre o que é que podemos trabalhar?” Era uma preocupação muito grande, mas depois percebi que havia muito mais a discutir, muito mais a saber. E para alguém tão icónico como o Kurt, fiquei surpreendido por se saber tão pouco sobre ele. Ainda que ele tenha morrido com 27 anos, isso não significa que não tenha ficado muito por contar. Ficou e esta é a prova.

Quer isso dizer que o fã clássico de Nirvana e de Kurt Cobain vai mudar de ideias?

O filme representa um desafio para as verdades e as revelações que o próprio Kurt fez sobre si mesmo ao mundo. E, por ser assim, acaba por tornar a relação com ele muito maior e mais forte, e foi isso que tentei fazer, porque percebi que com o material que tinha à minha disposição isso era possível. Porque, de repente, descobri o que nunca ninguém viu.

Como, por exemplo?

Posso dar um lado muito objectivo: o Kurt romântico. Ora aqui estão duas palavras que a maior parte das pessoas nunca se lembraria de associar. Já tínhamos visto sinais de um sentido de humor muito apurado – basta recordar o teledisco de “In Bloom”, em concertos ao vivo ou na actuação que fizeram no “Top of the Pops”. Agora, em relação ao Kurt caloroso e à sua relação com Courtney, esse foi um lado muito pouco assumido em público, uma gentileza que não nos passava pela ideia. E consegui descobrir isso não só graças a imagens e gravações em vídeo, mas também através de canções e letras que ele escreveu, música que nunca ninguém ouviu. Juntei alguns desses momentos quando ele fala sobre a Frances.

Entrevistou familiares e amigos que nunca tinham falado em público sobre Kurt Cobain. Conseguiu perceber de que forma as pessoas que lhe eram mais próximas viveram estes 20 anos depois da morte do músico?

Foi a primeira vez que a família dele aceitou colaborar com algo do género, que aceitou fazer depoimentos para as câmaras. Uma das principais reservas de Kim Cobain [a irmã de Kurt] para participar neste filme teve a ver com o facto de, durante todos estes anos, ela ter conseguido manter o anonimato. Nunca foi assediada, nunca esteve nas notícias nem ninguém a perseguiu. Ao fazer parte deste projecto, ela receou que isso pudesse mudar, mas acabou por aceitar. Até ao momento em que os Nirvana entraram para o Rock’n’roll Hall of Fame [faz agora um ano], era difícil encontrar uma foto da Kim Cobain no Google. E o mesmo pode ser dito de Wendy [O’Connor, a mãe de Kurt], também ela estava preocupada com esse lado mediático. E ambas levaram sempre uma vida normal. Há o aspecto do apelido: Cobain não é o nome mais habitual, mas essa seria a única excepção. Mas só com elas é que este filme poderia ter sido feito. Depois de remexer aquele armazém com todo aquele arquivo, percebi que a família era fundamental para contar esta história.

Nunca receou que o resultado final não correspondesse à informação a que teve acesso, que de alguma forma ficasse aquém ou não contasse a história certa?

Quando te metes numa missão destas, tens de ter consciência de que não podes contar tudo, não podes recordar todos os momentos. É um filme, tem de ter selecção. E não podes deixar que o material te intimide, isso não se pode intrometer no caminho do trabalho que há para fazer.
É preciso aplicar mais ou menos o mesmo método que se usa quando fazemos algo com celebridades. Em 2012 fiz o filme “Crossfire Hurricane” sobre os Rolling Stones. Quando estamos sentados com o Mick Jagger temos, claro, um momento em que pensamos algo como “é o Mick Jagger, aqui à minha frente”. Mas rapidamente sabemos que ele tem de tornar-se Michael Philip Jagger, não pode ser de outra maneira. Há um trabalho a fazer e no fim aparece lá o meu nome, por isso não posso ir por esse caminho. Não posso perder tempo a pensar “vou fazer merda”. Ainda que existam momentos desses. Sobretudo quando é assim tão pessoal.

Quando é um fã a trabalhar sobre um dos seus ídolos…

Isso. Aí, isto deixa de ser trabalho. Não se tratou, nem de longe, de uma missão feita por dinheiro. Passei a maior parte da minha vida profissional a fazer filmes sobre pessoas mais velhas, dos Stones ao Robert Evans. Esta foi a primeira vez que fiz um documentário sobre alguém da minha geração, da minha idade, com quem partilhei ambientes culturais e sociais. Essa parte, sim, tornou as coisas mais exigentes a um nível pessoal. Se costumo trabalhar a 100%, talvez aqui tenha ido até aos 120%, esgotei tudo, não ficou nada para trás. Pelo Kurt, por mim e pela Frances. Queria dar-lhe a experiência que ela nunca teve ou, pelo menos, chegar o mais perto possível disso, dar-lhe duas horas com o pai.

Montage of Heck” passa nos cinemas NOS Colombo, Norteshopping, Fórum Algarve, Marshopping, Vasco da Gama, Oeiras Parque, Dolce Vita Coimbra, Braga Parque, Glicínias e Arena Shopping, amanhã, sexta e sábado. No cinema Monumental, em Lisboa, o documentário terá duas sessões diárias, a partir de amanhã e até ao dia 29 (às 19h30 e às 22h15).