A variável “importância” é tudo menos inquestionável. Olha-se para a folha de salários, o número de golos, o discurso fluente ou crítico, os ensaios publicados, enfim, olha-se para tudo quanto é coisa que importe, que seja importante. José Rentes de Carvalho nunca figurou naquelas famosas listas da “Forbes”, mas para António-Pedro Vasconcelos é dos portugueses mais importantes da história do século xx. Esse é apenas um dos nomes de uma lista que o realizador entregou à RTP numa proposta feita há três anos, “para que fique um registo da história de portugueses importantes”, diz, antes de acrescentar: “Começou-se por fazer um levantamento dos portugueses que já foram alvo de um documentário do género e fazer, em primeiro lugar, aqueles que estão vivos, ou, eventualmente, aqueles que tendo já morrido, deixaram pessoas que podem dar um testemunho vivo.”
Dessa lista saíram quatro nomes: Cottinelli Telmo, Eduardo Gageiro, Moniz Pereira e Rentes de Carvalho. Exemplos de gente com linhas a menos nos jornais e no ideal de conterrâneo de sucesso para os portugueses. Daí que sejam os objectos de quatro documentários de 50 minutos realizados por António-Pedro Vasconcelos e Leandro Ferreira. “J. Rentes de Carvalho – Tempo Contado” é um dos episódios de “Memórias do Século XX”, para ver hoje às 23h25 na RTP2.
E embora – para as nossas contas – não haja ninguém que suplante a importância de outro no que toca a estes quatro, mas também a todos os restantes candidatos passíveis de integrar a tal lista, decidimos centrar-nos em José Rentes de Carvalho, já que é afinal o documentário a ser visto logo à noite. Ponte que se estabeleceu facilmente entre os realizadores e o autor, episódio que nos leva a entrar na cápsula do tempo e a recuar. “A editora, a Quetzal, tinha-me pedido que apresentasse um livro dele, “O Rebate”, há três anos. Foi aí que o conheci, na apresentação do livro. Criámos desde logo uma empatia, uma amizade, que tornou mais fácil realizar o documentário”, conta António Pedro Vasconcelos.
No caso de Rentes de Carvalho, o desconhecimento nacional pode assumir contornos exacerbados, já que este há muito largou Portugal – desde o Estado o Novo – e andou pelo Brasil, por Nova Iorque e Paris, até se estabelecer, para a vida, em Amesterdão. Actualmente divide-se entre a Holanda e a sua aldeia em Trás-os-Montes – viagem de carro que faz quatro vezes por ano, para ficar três meses em cada lugar -, circunstância que não facilitou o desenvolver do documentário. “Gerou uma dificuldade suplementar, sobretudo de orçamento. Todos os outros [Gageiro, Moniz Pereira e Cottinelli Telmo] são de Lisboa e eram, desse ponto de vista, mais fáceis de alcançar. Em relação ao Rentes de Carvalho tive de ir a Amesterdão, a Trás-os-Montes, e é evidente que isso gera uma autenticidade diferente no documentário. E foi um pretexto extraordinário para conhecer um autor magnífico e um homem com uma vida um pouco original”, confessa.
Porém, o principal muro entre a dupla de realização e o objecto final deste “Memórias do Século XX” foi outro. “A grande dificuldade de retratar uma vida tão rica como é esta, como foi o Gageiro, o Cottinelli e o Moniz Pereira, é dar–se 50 e tal minutos de uma vida inteira, dá-lo a conhecer, e ao mesmo tempo interessar o espectador como se de um filme de ficção se tratasse”, avisa AntónioPedro Vasconcelos.
Mas deixemo-nos de entraves e desculpas que ninguém tem tempo – nem muita paciência – para tal coisa. Como nos outros exemplos, este filme centra-se no depoimento do escritor, uma espécie de entrevista de vida filmada, com espaço, no entanto, para outras divagações. “O filme assenta no depoimento do autor, isso é certo. Mas também na cidade de Amesterdão, nos locais onde começou a trabalhar, na editora holandesa, na portuguesa. Já em Trás-os-Montes fui à aldeia onde vive parte do ano. O resto são depoimentos de pessoas próximas, nomeadamente do seu editor, Francisco José Viegas”, diz, sem esquecer os restantes documentados: “Em todos os casos, estava perante pessoas pelas quais tenho uma enorme admiração e curiosidade até de conhecer ou conhecer melhor.”
Daqui para a frente espera-se que mais quatro – ou mais 50 – personalidades sejam alvo de uma proposta do género. “Gostaria que a RTP continuasse esta linha, e não tenho de ser eu a fazer, o que não falta é gente para fazer documentários. Tal como não falta gente que merece um documentário. Estou, por exemplo, a lembrar-me do professor Eduardo Lourenço, do professor José-Augusto França. Parece-me possível que a RTP siga este caminho, sobretudo com esta nova administração. E repito: não tenho de ser eu.” Dito e feito.