Leonel Pontes. “Fugia de casa para jogar futebol”


Foi adjunto de Paulo Bento uma década antes de aceitar o convite do Marítimo para ser treinador principal. Acompanhou miúdos como Ronaldo ou Moutinho na formação do Sporting e depois orientou-os na selecção A. E muito mais…   Trabalhou 10 anos ao lado de Paulo Bento. Um convite de Carlos Pereira levou-o a uma emancipação…


Foi adjunto de Paulo Bento uma década antes de aceitar o convite do Marítimo para ser treinador principal. Acompanhou miúdos como Ronaldo ou Moutinho na formação do Sporting e depois orientou-os na selecção A. E muito mais…

 

Trabalhou 10 anos ao lado de Paulo Bento. Um convite de Carlos Pereira levou-o a uma emancipação que não planeara; não tinha ainda pensado em ser treinador principal. Para Leonel Pontes, é um orgulho fazê-lo no Marítimo, o “clube mais representativo” da sua terra. Quase tudo lhe surgiu de forma inesperada na carreira, desde o primeiro convite para orientar uma equipa universitária. Se o perfil de Paulo Bento é bastante conhecido, Leonel Pontes foi-se mantendo na sombra. Mas vale a pena ouvir o treinador do Marítimo. À hora marcada, Leonel diz que tem um reforço a chegar e pede para falarmos mais tarde. A conversa telefónica acontece já noite dentro. Quando o assunto é futebol e o interlocutor sabe o que diz, facilmente os 20 minutos planeados para a conversa se transformam numa hora sem darmos conta. Vamos a isso.

 

O facto de o convite ser de um clube madeirense pesou na decisão de assumir um cargo de treinador principal?

Não tinha pensado nisto de uma forma objectiva. Pensava que um dia poderia ser treinador principal mas não estava nos meus horizontes, sentia-me bem nas minhas funções. Estava inserido numa equipa de trabalho com grandes objectivos e a selecção é um grande orgulho. Surgiu a oportunidade no Marítimo, quem sabe até podia ser outro clube a demonstrar confiança que eu podia fazer um bom trabalho. Sendo o Marítimo uma equipa com ambição no futebol português, e o facto de ser madeirense, tudo se conjugou para aceitar o desafio.

O Marítimo é um clube formador; o seu antecessor, Pedro Martins, lançou 30 jovens da equipa B. Sendo um treinador que vem do futebol jovem, qual é a importância disso para si?

Se olharmos para trás, o Marítimo foi o único em Portugal a manter a equipa B. Neste momento é o único a ter também uma equipa C. Em Espanha a maior parte dos grandes clubes tem equipas em vários escalões. Cá, o Marítimo é pioneiro neste tipo de organização. Dá valor e acredita que o recrutamento de jovens para essas equipas lhes dará o espaço competitivo para um dia atingirem outro patamar. Houve muitos jogadores de alto nível que passaram por este trajecto, como o Pepe, o Danny, o Alan ou o Sami. Neste momento, mais de 50% de jogadores da equipa A passaram pela B. O Sá, o Gegé, o Bauer, o Diogo, o Ruben Ferreira, o Briguel, o Olim, o Alex Soares, o Fransérgio, foram todos jogadores que iniciaram o processo na B e jogam com regularidade na A. Foi um trabalho de mérito, o Pedro aproveitou muito bem os recursos da equipa B para potenciá-los e eu tenho a mesma perspectiva.

Passou em várias equipas da Madeira mas curiosamente nunca jogou pelo Marítimo. Fale-nos um pouco do seu percurso de jogador, que é pouco conhecido.

Comecei a jogar aos oito anos e fui sempre federado. Comecei no Porto da Cruz, depois Machico (único ano em que foi campeão regional), regressei ao P. da Cruz e depois fiz três anos no U. Madeira, como juvenil e júnior Estive um ano emprestado ao Choupana e depois entrei para a universidade em Lisboa. Nessa altura estudava e jogava, passei pelo Oeiras, Carcavelos e Atlético até ter uma lesão no joelho. Após dois anos fiz mais uma época mas na altura já treinava no Sporting e deixei de jogar com 23 ou 24 anos, já tinha o desafio do treino. Mas sempre foi uma paixão enorme jogar futebol, fugia de casa para jogar, fazia tudo o que era possível para não falhar um treino, sempre fui um atleta aplicado. Comecei a defesa esquerdo, depois passei a médio e extremo, era um jogador rápido e com alguma habilidade.

Quando vem tirar o curso de Ciências do Desporto já tinha a ideia de ser treinador?

Nunca pensei ser treinador, no fundo não sabia o que queria fazer no futuro. Tinha uma paixão pelo futebol, na altura queria jogar e quando me lesionei um colega perguntou-me se queria treinar a equipa da faculdade. Eu estava a acabar o 3º ano. Pensei, ‘olha, por que não?’ Montei uma equipa de pessoal amigo, participámos no campeonato universitário. No final desse ano, em 94, fomos a um torneio europeu em Eindhoven e ganhámos. Uma semana depois, veio um professor falar comigo e propor se eu queria ser treinador nos escalões de formação no Sporting. E foi aí que começou o bichinho pelo treino, nem pensava ainda muito numa perspectiva futura. Revelava alguma imaturidade, não sabia ao certo o que queria ser. As coisas não foram pensadas.

Como foi esse salto tão repentino, de uma equipa universitária para a melhor formação em Portugal?

Quando lá entrei senti que era leigo naquilo que ia fazer. Entrei com um conjunto de conhecimentos mas sentia uma diferença grande no que sabia e em ter de ensinar jovens. O que é um bom atleta de 12 anos? E um de 14? Se olharmos para o passado de jogadores de topo, todos se diferenciavam aos 8, 9 ou 10 anos. Nós muitas vezes precisamos de referências… Lembro-me do primeiro treino, com o senhor Osvaldo Silva, treinador de infantis, em Algés. Acompanhei o grupo na camioneta e ele disse-me ‘hoje vais ver o treino’. Sentei-me na bancada e vi. Foi composto por duas equipas e fiquei maravilhado, miúdos com muita qualidade. No final do treino falei com ele e disse-lhe ‘sô Osvaldo, tem ali três ou quatro miúdos muito bons’. Ele olhou para mim ‘você está bobo? Não viu os nossos’. ‘Os nossos?’. ‘Claro, isto são miúdos que estão à experiência’. No dia seguinte vou para o primeiro treino dos infantis e decidi que nessa semana só ia observar. Depois de ver os miúdos do Sporting, percebi que nenhum dos que tinha visto naquele treino tinha espaço naquela equipa. E comecei a perceber o que é um jogador do Sporting. Nessa equipa estava o Quaresma e diferenciava-se dos demais. Não é fácil entrar num clube desta dimensão sem experiência. No fundo eu fui estagiar e um clube grande deve receber treinadores que tenham demonstrado competências.

Ronaldo, Quaresma, Hugo Viana… Que jogadores da formação do Sporting o marcaram mais?

É difícil. Tive o privilégio de trabalhar com grandes jogadores. Por exemplo, o Zezinando, era capitão e foi um gosto trabalhar com ele. O Semedo, que está no Charlton. O João Moutinho, que foi sempre um miúdo extraordinário na entrega, qualidade e facilidade com que trabalhava. A nível de grande talento, o Ronaldo, o Nani, o Miguel Veloso, o Quaresma, o Varela, o Miguel, o Rui Patrício, o Adrien… foram muitos. Foi uma grande aprendizagem para mim. E melhor ainda foi conhecê-los com 12, 13 anos e trabalhar com eles aos 20, 21 e perceber o que de bom e de mau foi feito. Acertámos nalgumas coisas e falhámos noutras, mas é interessante ver a evolução e ter trabalhado com eles na selecção.

Quando Ronaldo chega ao Sporting fica encarregue de o acompanhar. Sentiu logo que era um miúdo diferente?

Todos me diziam que nunca tinham visto um miúdo igual na Madeira, com um talento extraordinário. Ele acabou por ir ao Sporting para ser observado mas eu estava a trabalhar com os iniciados e não vi o treino dele nos infantis. O sinal que me deram foi que os próprios colegas disseram “este miúdo joga muito”. Ele não deixou dúvidas a ninguém. Não precisava de ser um expert para perceber que estava ali um miúdo com grande talento. A partir daí começa-se a ver um miúdo com impertinência, pêlo na venta, sabia o que queria, escolhia os amigos, sabia estar. E mais do que isso foi o reconhecimento de todos os miúdos, os colegas e os mais velhos, que o apadrinharam logo. Tinha uma versatilidade desportiva muito grande. Jogava ping-pong como ninguém, matrecos, snooker… nas peladas no pavilhão mostrava capacidades que os outros não tinham. Isso diferenciava-o dos outros. Foram os primeiros sinais mas naturalmente nunca imaginávamos que ele atingisse este nível.

Deu-lhe muitas dores de cabeça?

Era um miúdo irreverente, como outros. Tinha uma personalidade um pouco mais vincada, sabia o que queria, não era um cordeiro. Tudo o que ele fez foi sendo exacerbado pela qualidade que apresentava. Fui encarregado de educação até aos 15 anos; teve uma proposta de contrato profissional nessa idade, fui acompanhá-lo à SAD do Sporting. Começou a treinar abdominais e braços um pouco às escondidas mas levava os treinos muito a sério. Gostava muito da parte física e já não tanto da parte táctica.

Como começou a trabalhar com o Paulo Bento?

Em 2003/04 estava na equipa B e no final da época esse projecto acabou. Nesse período o Paulo acabou a carreira e foi convidado para treinar os juniores e convidou-me para trabalhar com ele. Foi o início da aventura. Já não éramos campeões desde 95/96 e conseguimos vencer o campeonato. Em 2005/06 iniciámos a época nos juniores mas em Outubro o José Peseiro foi despedido, o Paulo foi convidado para assumir o cargo e convida-me para ir com ele.

Como foi a passagem repentina da formação para o futebol profissional?

Enquanto fui treinador da formação, o futebol sénior estava a uma distância muito grande. Parecia que não havia passagem, só de jogadores, mas nunca de treinadores. Nem imaginava que um dia podia ser treinador daquela equipa. De repente apareceu este desafio e foi uma mudança radical. Há uma grande diferença para o futebol jovem: a exigência, o mediatismo, a lógica de liderança e de tratamento de jogadores. Ali o que conta é ganhar, não há outro caminho.

Uns anos mais tarde está na selecção…

Foi mais um desafio que nunca sonhei. De repente foi-nos feito o convite para a selecção e foi um orgulho enorme. Temos a sorte de trabalhar com os melhores e escolher os jogadores para dar resposta aos desafios. Trabalhar com jogadores que querem estar ali, têm um prazer enorme de representar a selecção. Isso é uma coisa que nem sempre existe nos clubes. Depois, a metodologia é diferente. Estamos pontualmente com os atletas e o espaço de treino antes dos jogos tem de ser muito bem aproveitado. O tempo é muito curto, temos de criar um modelo para que cada vez que eles lá vão sintam que as coisas têm uma lógica. Foram quatro anos de muita aprendizagem.

Na selecção a pressão é maior do que, por exemplo, no Sporting?

A responsabilidade é grande, seja num clube ou na selecção. Mas quando representamos um país, é maior porque temos todos a ver-nos, a puxar, a cobrar. As emoções de um jogo de selecção são enormes; é ter os melhores, é jogar com outros países, é o orgulho de ser português, porque é maior do que o orgulho de representar um clube. Toda a logística à volta da equipa, que é de um profissionalismo e qualidade enormes, as condições de trabalho são extraordinárias, tudo isso é altamente diferenciado. Sinto que a competição diária nos alimenta como treinadores, neste momento estou a sentir isso. Ali temos dois jogos e depois passamos um mês sem competição, a preparar e ver jogadores. Quando se perde um jogo é um martírio porque nunca mais chega o próximo. Há diferenças significativas ao nível das emoções e da responsabilidade.

O Mundial não correu bem a Portugal. Olhando para trás, mudaria alguma coisa?

Fomos para o Brasil com grande expectativa. Em relação à participação, depois deste tempo todo e como integrante da equipa técnica, não vou fazer considerações. Não conseguimos chegar onde se esperava, mas toda a análise já foi feita pelos responsáveis da Federação.

Quais as grandes diferenças do Leonel para o Paulo enquanto treinadores principais?

Há uma diferença brutal entre um adjunto e um treinador principal. E isso sente-se a toda a hora. Eu comecei nesta função há sete meses e ainda estou numa fase de criar a minha própria metodologia e o meu perfil de treinador porque isso não se ganha de um momento para o outro. Vou ajustando a minha liderança à minha realidade, ao grupo de jogadores que tenho. Aprendi muito com o Paulo, retirei tudo de bom que ele me transmitiu e que partilhámos. Tem sido muito importante o conjunto de referências que ganhei, o Paulo vinha do topo do futebol profissional com referências de grandes treinadores. Passou essa forma de estar para nós e eu aprendi muito. Mas ainda me estou a ajustar, aprendo todos os dias com os jogadores. Eles são os grandes professores, porque estão sempre a pôr-nos à prova, a exigir a nossa melhor decisão. Estou a caminhar mas de certeza que esta experiência me está a fazer crescer como homem e profissional. Ao longo do tempo vou conseguir chegar aquilo que é o treinador Leonel Pontes.

Vem aí o Benfica de Jorge Jesus, um dos mais experientes técnicos nacionais. Quais são as suas referências de treinadores?

Trabalhei com o Paulo e, não tenho dúvida, ele é a minha grande referência de liderança de uma equipa. Existem grandes treinadores que tenho em consideração, o Jesus é um deles. Tem a capacidade de ensinar o seu jogo e a equipa tem uma identidade muito própria. Nós vemos uma equipa dele e sem o ver sabemos que é uma equipa do JJ, organizada, competitiva, que sabe o que fazer nos vários momentos do jogo. O Mourinho, que por onde passa consegue adaptar o seu futebol e com resultados. O Ancelotti, pela forma como apaziguou um clube como o Real e os jogadores apreciam-no muito. O Ferguson, que tive oportunidade de conhecer. Conseguiu impor a sua liderança e reunir um conjunto de jogadores que fez do United uma das equipas mais temidas da Europa. O Capello foi campeão em muitas equipas e tem uma presença que revela o seu carisma como treinador.