Passou de regional a mundialmente premiada a marca do moscatel feito no Norte do país. Maria Espírito Santo visitou a Adega Cooperativa de Favaios e entre a linha de montagem, o descarregamento de uvas e o trabalho de laboratório descobriu um percurso feito de história e tradição. Ainda provou o néctar e trouxe dicas. Ricardo Castelo fotografou todo o trajecto
Nem grande nem pequeno, atentemos no tamanho médio do bago. Continuamos com o estudo da cor: confirma-se uma pele que parece ter listas, num todo que é em tons verdes ou dourados. Por fim apura-se o aroma intenso e floral numa trinca. Com apenas algumas dicas é possível tirar a prova dos nove para a uva de moscatel. Pode saborear–se bago a bago mas não a encontrará em qualquer banca de supermercado – há décadas que alguém entendeu que para lhe tirar melhor proveito é preciso aguardar pacientemente que chegue ao copo em forma de vinho. Seria uma inquietação para Baco acompanhar o ritmo alucinante a que atracam camiões de caixa aberta carregados de uvas à Adega Cooperativa de Favaios. São litros de néctar em constante produção naquela que é a altura mais agitada do ano nesta paragem de Trás-os-Montes e Alto Douro.
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De popular a premium
As nuvens vão desaparecendo e o sol bate cada vez mais intenso à chegada. Na passagem pela vila a agitação é pouca pela manhã. Passam alguns carros e carrinhas, o sino toca na igreja, um cão passeia-se dengoso pelo passeio. Respira-se ar fresco a 630 metros de altitude, aquele que um dia foi um problema para os produtores de moscatel. Nos anos 30 ditavam as regras da Casa do Douro que o Favaios só podia ser produzido abaixo dos 500 metros de altitude, até que em 1952 um grupo de sócios se insurgiu e criou a Adega Cooperativa de Favaios para defender a tradição. O Favaios, homónimo da vila que o viu crescer, tem mais razões para comemorar os velhos ofícios depois de merecer mais uma série de prémios. São eles duplo ouro para o Moscatel de Favaios 1980, ouro para o Moscatel Favaios 10 anos e prata para o Moscatel Favaios Reserva, atribuídos pelo MUNDUS VINI Great International Wine Awards 2014 – evento que acontece na Alemanha desde 2001 e reúne vinhos de todo o mundo. A presença regular no MUNDUS VINI acontece em paralelo com reconhecimento de outros pontos do mundo, de Bruxelas ao Canadá ou à China.
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O produto que começou por ser uma iguaria regional cada vez mais se expande atraindo diferentes meios e grupos. “É uma moda construída, trabalhada pelos produtores, colocada no mercado para as pessoas começarem a apreciar, a entender a casta, a ver os modos de consumo que pode ter.” Quem nos adianta pormenores é Gina Francisco, de 45 anos, directora comercial da adega há três anos e meio. Garante-nos ainda que nos dias que correm já não faz sentido falar de um público-alvo, e cada vez menos se pode indicar um “apreciador disto ou daquilo”. É preferível apontar momentos e situações; o mesmo grupo pode fazer um churrasco de Verão com um branco, um jantar mais recatado com um tinto ou ainda beber Favaíto numa esplanada. Pode falar-se da democratização da bebida que hoje chega a todos: deixou de ser só para ocasiões especiais ou para os mais velhos. “Encontra Favaios na noite da moda em Lisboa, no Rock in Rio, na festa da aldeia, na queima das fitas, no Yeatman em Vila Nova de Gaia, do público mais top ao mais simples, popular.”
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Com um volume de vendas anuais à volta dos 22 milhões, o Favaíto é o grande favorito. Mas já há muito que a marca Favaios deixou de significar apenas moscatel. A adega produz vinhos brancos, tintos, vinho do Porto, colheitas tardias e até espumantes: o Moscatel Galego Branco Sparkling, um produto de monocasta, é uma das grandes novidades. Através de edições especiais ou premium (como o Favaios de 1980, que tem agora tem rótulo especial desenhado por Siza Vieira), as gamas de Favaios chegam a públicos cada vez mais específicos, que apreciam qualidade e design.
Virtudes da espera
O ruído de vidro parece alertar para algum descuido, mas a banda-sonora na linha de montagem é mesmo esta, todos os dias. As garrafas alinhadas e impecáveis no início da linha de montagem percorrem um caminho para encher, fechar, selar e rotular o Favaios – tudo é feito através de máquinas e em poucos minutos a garrafa está pronta para chegar à mesa. O início e o fim do processo, como empacotar e transportar, são assegurados por uma dezena de mulheres que trabalham aqui e no armazém. A justificação parece óbvia: “Somos mais fortes. Não vê que os homens não fazem nada?”, declara, apontando para um técnico que fala ao telemóvel. E contra provas não há argumentos.
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Estamos já na recta final e tudo parece relativamente simples à vista desarmada. É preciso passear-se um pouco na adega, em direcção à chegada dos camiões para perceber algo mais sobre o tempo real do processo. Estamos em época final de vindimas e a chegada das uvas, momento em que toneladas de uvas são brutalmente descarregadas, só parece preservar alguma magia a novos olhares – os nossos. Este é o momento em que se mede o álcool da uva e em que esta é dividida por diferentes grupos. Segue-se a chamada vinificação nas torres de fermentação: no caso do moscatel é um processo que pode demorar três dias com a ajuda da pele e da grainha, para que se apurem todos os sabores e aromas. Depois de se adicionar a aguardente, vem a fase de envelhecimento. Neste caso demorará cerca de três anos. Note-se que no moscatel clássico a idade média é de três, já que se misturam produções com dois, três e quatro anos. Mas o envelhecimento pode durar décadas, até 40 anos para moscatéis mais envelhecidos – é o caso de um dos premiados com medalha de ouro, o de 1980. Mas o trabalho não fica por aqui: ao longo dos anos o vinho é arejado e passado a limpo, já que vai acumulando depósito.
Resumo no copo
O controlo de qualidade e o estudo de evolução do vinho é garantido pelo laboratório à responsabilidade do enólogo Miguel Ferreira, de 37 anos. Aqui tratam-se todas as gamas, dos brancos e dos tintos aos espumantes, e segue-se com cuidado o desenvolvimento de cada uma. O enólogo fala de 2014 como um ano excelente para o moscatel, que teve a ajuda das chuvas e de temperaturas moderadas. “A casta desenvolveu-se com calma, a parte aromática da uva está muito exuberante e tem também acidez elevada, o que é importante, dá frescura.” Acidez. É a chave da diferença, grande, entre o moscatel de Favaios e o de Setúbal. Se o de Favaios é mais ácido, não é menos verdade que os aromas são diferentes, culpa do solo e das condições meteorológicas e até das técnicas de vinificação utilizadas em cada caso.
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Mas para entender realmente as diferenças é preciso passar à acção, provar. Só no último fim-de-semana a Adega Cooperativa de Favaios viu passar 800 visitantes; anualmente recebe cerca de 13 mil pessoas que querem conhecer toda a história e tradição. Através de marcação prévia na loja, é possível perceber o percurso dos vinhos e fazer uma sessão de prova com um especialista – a experiência fica na casa dos 5 euros por pessoa.
Quem nos convida à mesa para a experiência de provas é Miguel Ferreira, na ampla sala onde o vinho descansa – aqui há grandes dornas, que chegam aos 40 mil litros. O Favaios tradicional, o Favaios de 10 anos e um Favaios de 1980 são o trio que nos apresenta para traduzir a visita em cheiros e sabores. A evolução do jovem para o mais velho nota-se numa gradação da cor para uma tonalidade cada vez mais escura e intensa. Na boca, os sabores viajam dos aromas florais e frutados no Favaios tradicional para uma textura mais espessa e aromas de especiarias, cacau e mel no Favaios 10 anos. Para terminar, a sensação de torrefacção e o aroma fumado prevalecem no Moscatel de Favaios 1980. Não deve estar quente mas também não convém que se beba gelado. Se o primeiro serve mais como aperitivo, o segundo sabe melhor com uma sobremesa. O último é aconselhado assim mesmo, e nada mais. Basta uma boa companhia e uma conversa que adie o momento da despedida.