Alex Ferguson. Uma vida completa, com sotaque e sem GPS


lex Ferguson. O nome acompanha-nos há anos e anos. Mesmo um perfeito iletrado em futebol sabe quem ele é. É o homem de cara rosada, o senhor que masca furiosamente pastilha elástica, o veterano que festeja todos os golos como se fossem o primeiro da sua vida, o treinador do Manchester United. Sim, ele já…


lex Ferguson. O nome acompanha-nos há anos e anos. Mesmo um perfeito iletrado em futebol sabe quem ele é. É o homem de cara rosada, o senhor que masca furiosamente pastilha elástica, o veterano que festeja todos os golos como se fossem o primeiro da sua vida, o treinador do Manchester United. Sim, ele já não o é, mas who cares? Continua a sê–lo por direito próprio. É obra aguentar–se firme e hirto durante 26 anos e meio num trabalho, é obra, repetimo-nos. E a obra dele está escarrapachada numa autobiografia de 332 páginas. De leitura fácil, apaixonante. Tanto assim que está lida da noite para o dia.

É nossa obrigação tentar falar com ele, só para nos ajudar a esclarecer alguns pontos de vista. Vá, basta-nos um. Na zona de Manchester, onde vive desde Novembro de 1986, há três A. Ferguson, de acordo com a pesquisa nas páginas amarelas vá-pelos-seus-dedos. Um é de Downesway, Alderley Edge, SK9 7XB. A palavra chave é Sir. Se não o for, who cares? Ora bem, este senhor atende-nos num inglês impecável. Nãããã, não pode ser Sir Alex. Ele não é inglês, é escocês. Fala uma língua diferente, enrolada. As palavras agrupam-se umas nas outras e só entendo algumas delas. O início e o fim. Pelo meio, já nos perdemos. Ele não diz time, diz taaaaaime.

Vá pelos seus dedos. A. Ferguson, 71 Macclesfield Rd, Prestbury, Macclesfield, SK10 4BH. Será este? Cruuuu, cruuuu… cruuuu, cruuuu (ligar para Inglaterra implica ouvir um toque diferente). Cruuuu, cruuuu. Bom, ninguém atende.

Vamos para a terceira e última opção. Vá pelos seus dedos: A. Ferguson de Park Fm, Styal, Wilmslow, SK9 4HF. Cruuuu, cruuuu… cruuuu, cruuuu (ligar para Inglaterra implica ouvir um toque diferente). Cruuuu, cruuuu… cruuuu, click [o clique que denuncia alguém do outro lado]. É o Sir? No way. Este também é muito british e já o dissemos: o nosso Ferguson é scottish. Very scottish.

Só para verem, ouçam lá esta história: sempre que começa uma época, todo o staff do Manchester United recebe carros oferecidos por uma marca. Ora bem, uma vez, o carro não servia a Ferguson. Mas porquê? Porque Ferguson fala escocês e a menina do GPS não o entende. Cada ordem é como se fosse uma desordem. Ele irrita-se tanto que troca de carro. Para um sem GPS, obviously.

Vá pelos seus dedos, voltamos à segunda opção e ninguém nos atende. Sir Alex não é conversador, mas escreve pelos cotovelos. A autobiografia comprova-o.

Página 51: “Ouça os médicos. Faça análises. Preste atenção ao seu peso e àquilo que come. Sinto-me feliz por dizer que o simples acto de ler é uma maravilhoso alívio para as pressões do trabalho e da vida, mas nunca conseguirei considerar–me um especialista em vinhos. Conheço as boas colheitas e os bons vinhos. Sou capaz de provar um e distinguir as suas propriedades. Só. (…) Nunca fui um grande dorminhoco, mas garantia as minhas cinco ou seis horas de sono. Há pessoas que acordam e ficam deitadas na cama. Nunca consegui fazer isso. Desperto e salto para o chão de imediato. Estou pronto para ir a qualquer lado. Não fico estendido a desperdiçar o meu tempo.”

Página 110: “Fico aflito só de ver agulhas. No meu tempo de gerente de pubs, em Glasgow, estava a mudar um barril, certo domingo de manhã, quando uma ratazana saltou para o meu ombro. Dei um pulo para a frente e um espigão do barril entrou-me pela bochecha. Ainda é possível ver o implante de pele. Guiei os três quilómetros até ao hospital com medo de lhe mexer. A enfermeira tirou–mo e desmaiei mal me espetaram a agulha. Ela: “Este é que é o grande avançado do Rangers?”

Página 118: “Nos treinos, os jogadores eram bons com ele [Ronaldo]. A princípio, de cada vez que era carregado, soltava um grito terrível “aaahhhhh!”. Os colegas troçavam dele. Depressa deixou de fazer esse tipo de algazarra. A sua inteligência ajudava. A partir do momento em que percebeu que, nos treinos, não tinha uma boa audiência para os seus gritos e para o seu teatro amador, parou com isso.”

Página 137: “Roy [Keane] é um indivíduo inteligente. Apanhei-o a ler alguns livros verdadeiramente interessantes. É um bom conversador e uma boa companhia, quando está para aí virado. Os fisioterapeutas costumavam entrar no meu gabinete e perguntavam: “Como está hoje a disposição do Roy?”, porque isso determina o ambiente de todo o balneário. A parte mais dura do corpo de Roy é a língua. Pode debilitar a pessoa mais confiante do mundo em segundos com a língua. Um dia, começámos a discutir, e notei que os olhos dele começaram a ficar finos, dois riscos negros. Foi assustador. E eu sou de Glasgow.”

Página 145: “O assassínio de John Kennedy, em Dallas, em 1963, deixou-me uma marca desde o momento em que ouvi as notícias. Ao longo do tempo, de-senvolvi um interesse forense em relação à forma como ele morreu, às mãos de quem e porquê. Recordo-me desse dia que chocou o mundo. Era uma sexta-feira à noite, eu estava frente ao espelho, barbeando-me, no quarto de banho, preparando-me para ir ao baile com os meus amigos. Meia hora antes, as notícias rebentaram. Ele tinha sido levado para o Hospital de Parklands. Vou lembrar-me, para sempre, no baile, no Flamingo, perto de Govan, de ouvir a canção que chegou aos tops “Do You Like to Swing on a Star?”. O ambiente estava soturno. Em vez de dançarmos, fomos para o andar de cima falar sobre o assassínio.”

Página 157: “Estava em casa numa noite de neve em Janeiro de 2010 quando o meu telemóvel apitou com uma mensagem. “Não sei se se lembra de mim”, começava, “mas precisava de falar consigo.” Ruud van Nistelrooy. Respondi-lhe okay e ele ligou. Primeiro, conversa de chacha, blá blá blá. Depois saiu-se com esta: “Quero pedir desculpa pelo meu comportamento no meu último ano no United.” Gosto de pessoas que conseguem pedir desculpa. Sempre admirei isso. Nesta cultura moderna de auto-absorção, esquecemo-nos que existe a palavra “desculpa”. É bom encontrar um que seja capaz de pegar no telefone mais tarde e dizer: “Estava errado, peço desculpa.””

Página 175: “Vidic gostava. Adorava o desafio de estar lá no meio [de um jogo de futebol]. Vidic é um tipo obstinado, intratável. Um sérvio orgulhoso. Em 2009, veio dizer-me que talvez pudesse vir a ser chamado. “Que queres dizer com isso, chamado?”, alarmei-me. “Kosovo. Vou para lá”, respondeu. “É o meu dever.” Li a decisão nos seus olhos.”

Página 225: “Para um homem com 35 anos, a sua disponibilidade para escutar os treinadores era espantosa. Queria ouvir as leituras tácticas feitas pelo Carlos [Queiroz] e embrenhava-se em tudo o que fazíamos. Henrik Larsson era soberbo nos treinos: os seus movimentos, o seu jogo posicional. No seu último jogo, estávamos a perder em Middlesbrough quando o meti em campo. Deu o litro e um quartilho. No seu regresso às cabinas, todos os jogadores se reuniram para o aplaudir e o resto do staff juntou-se- -lhes. É preciso ser um grande jogador para criar tal impressão em tão-só dois meses.”

Página 228: “Fui ver pessoalmente Nani. O que me atraiu foi o seu ritmo, força e jogo aéreo. Tinha dois belos pés. Todas as qualidades individuais estavam lá, o que levava à velha questão: que tipo de rapaz é ele? Resposta: boa índole, sossegado, sabia falar inglês razoavelmente, nunca causou qualquer problema no Sporting, gostava de treinar. Mantinha–se em forma. Era bem ginasticado. Puro material em bruto. Era imaturo, inconsistente, mas com um fantástico instinto para o futebol. Conseguia controlar a bola com qualquer dos pés, cabecear e era um poço de força física.”

Página 251: “Um dia, nos anos 90, Johan Cruijff disse-me “Vocês nunca hão-de ganhar a Taça dos Campeões!”. Espantei-me: “Porquê?” A resposta pronta: “Não jogam sujo e não compram árbitros.””

Página 277: “Uma vez fui ver um jogo a Itália entre o Milan e o Inter. Um dirigente do Inter disse-me isto: “Sabe qual a diferença entre ingleses e italianos? Em Inglaterra, não vos passa pela cabeça que um jogo possa ser comprado. Em Itália, não nos passa pela cabeça que um jogo não possa ser comprado.”

Página 288: “Conseguem imaginar-me no cargo de seleccionador inglês? Eu, um escocês? Sempre disse, na brincadeira, que, se fosse treinador da Inglaterra, faria com que baixasse para o 150.º lugar do ranking da FIFA, com a Escócia em 149.º. Não, nunca me senti tentado a deitar-me nessa cama de pregos.”