Segunda guerra. Os aliados do combate aos maus costumes


Na mesma década em que J. Howard Miller criava o cartaz “We Can Do It!” e  trazia a força feminina para a linha da frente, em pleno conflito mundial, surgiu o reverso da medalha. “Protect Yourself” reúne os posters que alertavam para o outro grande inimigo no cenário de batalha: as doenças venéreas. Maria Ramos…


Na mesma década em que J. Howard Miller criava o cartaz “We Can Do It!” e  trazia a força feminina para a linha da frente, em pleno conflito mundial, surgiu o reverso da medalha. “Protect Yourself” reúne os posters que alertavam para o outro grande inimigo no cenário de batalha: as doenças venéreas. Maria Ramos Silva recua ao tempo em que elas estavam debaixo de fogo

 

De um lado a irmã boa, do outro a má. Gémeas verdadeiras separadas à nascença em tempos dolorosos. Ambas mu-lheres de armas, uma capaz de arrumar e proteger a casa (e de lançar um destemido “manguito” aos alemães), outra disposta a atacá-la. Em 1943, o artista gráfico J. Howard Miller (1918-2004) criava uma das imagens mais icónicas da propaganda americana do segundo grande conflito mundial. Mas não tardaria a surgir o outro lado da moeda do poster “We Can Do It!”, essa injecção de confiança no esforço de guerra e na moral dos trabalhadores.

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A “Bag of Trouble Girl”, ou como uma miúda pode transformar-se num monte de ralações e arruinar a vida de um soldado, ganhou lugar na sociedade americana, para instalar as mesmas doses de apelo sexual e de receio. O cartaz, com a imagem de uma sedutora personagem feminina, com um cigarro entre os lábios escarlate e as sobrancelhas impecáveis, alertava as hostes masculinas para um perigo iminente: “sífilis-gonorreia”, o inimigo escondido, foco de uma campanha que acompanhou a era, e que agora é fixada em livro: “Protect Yourself: Venereal Disease Posters of World War II”.

Com o carimbo da Boyo Press (boyopress.com), a obra é uma das ramificações de um trabalho mais alargado desenvolvido por Ryan Mungia, dedicado à Segunda Guerra Mundial, “Shore Leave”, e que percorre fotos e documentos dignos da secção de memorabilia.

Mungia resgatou as imagens que há vários anos circulavam já pela net, de repositórios como os Arquivos Nacionais ou a Biblioteca Nacional de Medicina, e ainda da colecção pessoal do historiador de design gráfico Jim Heimann, que assina um ensaio para o livro. A “She May Be a Bag of Trouble”, cartaz então assinado por “Christian”, recebe as honras de capa, lançando o seu olhar cínico.

A criatividade dos desenhos encontra–se com a luxúria e as ameaças latentes numa partilha de cama, para deleite artístico e pânico generalizado numa sociedade a meças com os fantasmas da prostituição – actividade tão preocupante quanto os planos maquiavélicos de Hitler, Mussolini e Tojo.

O que começou como justificada profilaxia no âmbito da saúde pública e da educação sexual, depressa adquiriu uma feição moralista, inclinada à ignorância e à misoginia. Mensagens moderadas como “Expôs-se à sífilis? Contacte já o seu médico e faça um exame”, cederam espaço a violentas manipulações dos sentimentos de culpa e vergonha – “As doenças venéreas podem ser tratadas, mas não há cura para o arrependimento”.

No coração da ameaça, as mulheres, adversárias do Estado e dos bons preceitos da humanidade. A personificação das doenças sexualmente transmissíveis como a arma secreta das más companhias femininas alastrou pelos trabalhos gráficos. Conselhos que visavam as senhoras de má fama, como “Todos estes homens têm sífilis – senhoras, mantenham-se afastadas dos clubes de dança”, alargaram o seu espectro de influência a adoráveis adolescentes com semblante angelical. “Podes pensar que ela é a tua miúda, mas ela pode ser a miúda de todos”, ou “ela pode parecer limpa… mas”, foram algumas das hesitações que contemplavam até o perfil da namorada fiel.

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Às sugestões mais discretas – domínio é autopreservação”; “A doença disfarça–se. Não brinque com as doenças venéreas” – somaram-se advertências de impensável elaboração gráfica – “Levo um preservativo para todo o lado onde levo o meu pénis”. “Podes ser um homem livre, ou acorrentado” – às doenças – lê–se num cartaz com a imagem de umas grilhetas, um dos muitos que alinharam as DST com o mesmo grau de preocupação que o Eixo convocava na sociedade do Tio Sam.

Se os trabalhos mais famosos datam da década de 40, o tema da saúde público é uma batalha tão antiga como a Primeira Guerra Mundial. Depois de 1918, com o regresso a casa das tropas americanas e os festejos com o público feminino no horizonte, faltava cumprir uma missão de alto relevo: ajudar a combater as doenças venéreas. À semelhança da maioria das imagens apresentadas em “Protect Yourself”, é difícil identificar o ano específico da criação de cada um dos posters, mas a organização desta espécie de colectânea permite traçar a evolução da agenda do departamento de propaganda e a sua articulação com os militares.

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Muitos poderiam encaixar-se como luva nas sóbrias páginas da revista “Fortune” ou do “Saturday Evening Post”, pela qualidade do grafismo, um dos pontos altos deste pico de alarmismo, que não se ficou pelo outro lado do Atlântico. Nomes como Salvador Dalí deixaram a sua marca na criação de desenhos dentro deste registo. Sem falar do ilustrador e cartoonista de origem polaca Arthur Szyk, que viveu no Reino Unido e se radicou nos EUA em 1940 para retratar os poderes do Eixo em inúmeros desenhos.