Escrever sobre uma festa onde nunca estivemos é sempre ingrato. A memória que temos de Notting Hill é a de um bairro pacato, tipicamente londrino, que ganhou projecção graças ao filme com o mesmo nome com Hugh Grant e Julia Roberts (em 1999, há quanto tempo) e ao mercado de velharias que aos sábados invade Portobello Road, um dos maiores do mundo dentro do género.
Há 50 anos que em Agosto as velharias são trocadas por plumas, tambores, confetti e bebidas espirituosas dentro de garrafas de água para tentar enganar a polícia (é proibido beber álcool na rua). Em Londres, o Carnaval só chega em Agosto – e ainda bem. O que seria dançar em trajes menores em Fevereiro, com as ruas cobertas de neve! (Talvez Torres Vedras possa aprender alguma coisa e evitar Carnavais com a maquilhagem borrada e fatos ensopados da chuva).
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O Carnaval de Notting Hill, a maior festa de rua da Europa, celebrou no fim-de–semana passado o seu 50.o aniversário com um milhão de pessoas a assistir à parada que há vários anos virou atracção turística. Um aparato de cores, dança, música e polícia, claro. Este ano foram mobilizados 6 mil agentes para o bairro e no final da festa 261 pessoas foram detidas. Um verdadeiro Carnaval. Ainda assim, sem grandes tragédias a comparar com anos anteriores, já que desde 1987 cinco pessoas foram assassinadas durante os festejos – a última em 2004.
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Se em Portugal o Carnaval dura três dias, aqui são só dois, até porque há que trabalhar no dia seguinte (o Carnaval coincide com o feriado de Agosto em Inglaterra, o Summer Bank Holiday, como é conhecido). Este ano, a parada começou às nove da manhã de domingo – “o dia das crianças”, definiu a organização – e prolongou-se até ao fim da tarde de segunda-feira – “o dia dos adultos” e presume-se que o mais “hardcore”.
Fazer um Carnaval no calor de Agosto não é uma ideia descabida, mas os motivos não se prendem com o clima. O Carnaval começou por ser uma festa das comunidades imigrantes vindas de ilhas das Caraíbas como a Jamaica, a Antígua ou Trinidad e Tobago e aos poucos foi- -se tornando um dos eventos mais famosos em Inglaterra.
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“Hoje em dia as pessoas pensam que o Carnaval é uma grande festa – e também é – mas começou por razões políticas e sociais e muita gente se esquece disso”, relembrou o realizador Don Letts num especial da BBC Radio 6 sobre a ocasião. Diz-se que na origem do Carnaval londrino está o homicídio do imigrante da Antígua Kelso Cochrane, de 32 anos, por vários jovens brancos em 1959, mas ninguém parece lembrar-se disso.
Na altura, em sua homenagem, Claudia Jones, considerada a “mãe do Carnaval de Notting Hill”, sublinha o britânico “Guardian”, decidiu organizar um Carnaval dentro das portas da Câmara Municipal de St. Pancras (agora chamada Camden Town) para alegrar a comunidade que já tinha sido vítima de ataques racistas nos anos anteriores.
Claro que como em tudo nestas coisas nunca há certezas quanto às datas e as versões divergem, mas nos registos da polícia municipal, o primeiro Carnaval de rua aconteceu em 1964, há precisamente 50 anos.
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Nesse ano organizava-se uma festa infantil para “promover a unidade cultural”, continua o mesmo jornal, mas que depressa se transformou numa parada onde se descarregavam frustrações da discriminação racial e da vida no “gueto”.
Os organizadores do evento que se tornou anual começaram a encontrar-se no Mangrove, um restaurante gerido por um defensor dos direitos civis oriundo da Trinidad, que começou a chamar as atenções da polícia. Entre Janeiro de 1969 e Julho de 1970, estima-se que a polícia tenha entrado doze vezes no restaurante e chegou mesmo a prender nove pessoas durante um protesto chamado “hands off the Mangrove” (“tirem as mãos do Mangrove”).
A partir daí é difícil falar do Carnaval de Notting Hill sem falar da polícia. Em 1976, três mil agentes eram chamados para a parada, dez vezes mais que em anos anteriores. Durante os festejos, desse ano, quando a polícia tentava prender um carteirista, foi surpreendida por uma multidão que o defendia. Resultado: 100 agentes feridos e mais 60 pessoas no hospital.
Aos poucos, o Carnaval foi perdendo o seu carácter tradicional das Caraíbas. Mais ainda quando as pequenas bandas de reggae e calipso foram substituídas por colunas gigantes que tornam a parada numa “mega rave”. Hoje em dia, as lutas em Notting Hill não são tanto raciais, mas mais sonoras. Os vizinhos (agora o bairro é um dos mais caros de Londres) queixam-se do barulho e cada vez é mais difícil conseguir uma licença para passar som na festa.