Prémio José Saramago em 2011 com “Os Malaquias”,Andréa Del Fuego regressa com um livro muito diferente.“As Miniaturas” fala do que acontece antes dos sonhos e de como um equívoco burocrático nos pode mudar a vida. Vanda Marques conversou por telefone com a escritora em dia de Brasil-Alemanha, antes do trágico resultado e sem presságios por perto
O sonho visto antes de acontecer, com direito a um edifício burocrático que sugere a quem lá vai o que poderá sonhar. Este é o ponto de partida do novo romance de Andréa Del Fuego, escritora brasileira de 38 anos. Tempo para falar de como a autora se sente de pés bem assentes no realismo mágico e de como gostava de brincar a interpretar os sonhos dos amigos quando ficava “um pouco bêbada”. A conversa aconteceu antes de a Copa terminar e apesar de Andréa Del Fuego não ter tido nenhum sonho premonitório a tensão no ar parecia apontar para um resultado negativo. O 7-1 da Alemanha ainda estava para acontecer, mas a escritora contava que nas ruas de São Paulo era como “se soubéssemos que vai passar um avião derramando um vírus mortal”. Mas comecemos pela literatura.
Como foi voltar a escrever depois do sucesso de “Os Malaquias”?
Foi difícil. Há uma pressão maior, o prémio veio em 2011, este livro começou a ser escrito em 2009/10 e já era uma experiência diferente de “Os Malaquias”, não sai da mesma fonte, que era uma homenagem aos meus ancestrais. Com “As Miniaturas” tive um distanciamento maior, é muito mais racional.
Partiu de que ideia?
No momento em que comecei a escrever estava a ler um grego do século ii, Artemidoro, que escreveu o livro “Sobre a Interpretação dos Sonhos”. Ele era um homem que interpretava sonhos e escreveu o livro como manual para o filho. Os sonhos eram vistos quase como uma função fisiológica, sem muita transcendência. Gostei muito dessa interpretação. Tive a ideia de escrever um livro que tratasse do pré- -sonho. Criei um lugar burocrático, um edifício que sugere sonhos a quem lá vai. Só que as pessoas que fazem a sugestão não têm acesso ao resultado dela. Em vez de ser esse edifício a alterar os sonhos das pessoas, são as pessoas que alteram a vida do edifício.
Como descreveria este livro?
Bem, “Os Malaquias” são um filme, “As Miniaturas” são uma fotografia. É um livro que não tem resposta para nada, nem vê de forma poética esse assombro do mecanismo do sonho. “As Miniaturas” é uma pergunta, “Os Malaquias” era uma oferta aos deuses.
Qual é a pergunta?
Onde estamos quando sonhamos?
Não é difícil tirar o lado poético dos sonhos?
Sempre tive vontade de sondar o sonho, mas não o vendo como algo místico, nem como algo que desse respostas, mas como algo pelo qual somos obrigados a passar, como a digestão. O sonho seria como a digestão fisiológica. Escolhi não usar o lado do narrador, da terceira pessoa, porque o narrador penetra muito mais no que é a vida dessas pessoas, que neste caso é muito encarcerada, sem horizontes. Aqui ouvimos cada um deles.
Alguma vez leu livros de interpretação de sonhos, acredita em segundos sentidos?
Pessoalmente acho que todo o sonho tem uma mensagem do outro lado. Mas o que é interessante na literatura é o exercício de escrever o que eu não acho, de brincar com isso. Acredito que os sonhos têm uma digestão do presente e gosto de acreditar que há uma comunicação com outro lado.
Já lhe aconteceu sonhar algo e isso acontecer?
Sim, sim. Lembro-me de um sonho em que eu causaria um dano material a um amigo. E dois dias depois bati no carro dele. E muitos outros. Sonhar com os mortos é uma coisa que me agrada demais porque mato saudade deles. São sonhos em que abraço, converso. É incrível.
Tem sonhos muito estranhos?
Sim. Uma vez sonhei que estava na Idade Média indo para uma festa num castelo e cada sapato meu tinha uma boca e mascava um chiclete. Antes de entrar no castelo, a boca gritava que era preciso que eu trocasse o chiclete para um com sabor de canela. Eu tirava daquele traje medieval a chiclete de canela e jogava para boquinha que pegava e fazia bola. Chegava com aquilo fazendo ploc, ploc. Nunca esqueci. [Risos.] O nosso cérebro não dorme nunca e a imaginação está em processo 24 horas, quando temos sorte de nos lembrar dos sonhos é um brinde.
Alguma vez quis ir a um psicanalista ou que alguém lhe interpretasse os sonhos?
Pelo contrário, eu é que costumo interpretar os sonhos dos meus amigos, quando saímos para beber e estou assim um pouco mais bêbeda. Alguns amigos ainda me consultam, mas eu sou uma charlatã assumida. Não me levo a sério, mas acho interessante.
No livro temos os “oneiros”, que sugerem os sonhos, e os “sonhantes”. Como se vê?
Como escritora sou mais uma oneira. Damos alguma coisa para que os outros interpretem. O que escrevemos é livre e não temos acesso ao que o público pensa.
É um tributo a Freud?
Não, não. Consultei Freud mas não é uma homenagem, é mais às cartomantes, às ciganas, a essas mulheres que lêem o futuro, vivem disso. Tem um pouco de charlatanismo nisso tudo, para não levar muito a sério. Mas pode ter uma mensagem lá. É interessante.
Sempre se interessou por sonhos?
Sempre. Minha mãe é uma pessoa simples, de leituras, mas a imaginação dela era muito interessante. Queria sempre saber o que eu sonhava.
No início do livro há um equívoco burocrático que desencadeia a acção, quando um oneiro passa a atender mãe e filho – algo que é proibido. Acha que a maior parte dos equívocos burocráticos tem bons resultados como este ou não?
Acho que a burocracia tomou conta da vida. Ela não surgiu do nada e invadiu o planeta. Precisamos de uma certa organização das coisas. Mas a vida escapa da organização o tempo inteiro. Não há organização possível para a vida. Tentamos organizar um calendário das férias, trabalho, mas ele não é seguro.
No seu trabalho é muito organizada?
Sim, procuro. Agora tenho uma criança pequena, ainda mais. Mas já era organizada, tinha uma disciplina de escrita. Agora estou a escrever um pequeno livro infantil e já comecei o próximo romance.
Pode dizer sobre o que é?
Estou fazendo uma pesquisa sobre artes marciais. É muito próximo de mim, porque o meu marido é professor. Todos os dias sei um pouco mais sobre artes marciais. É um universo que me interessa.
Tem horários fixos para escrever?
Adoro acordar com uma vontade louca de escrever, tomar um café e começar. Muitas vezes sem lavar os dentes, nem pentear o cabelo. Vou para mais longe pela manhã. Mas cada livro é diferente e tenho sempre de encontrar a melhor forma de como escrevê-lo.
Sente-se hoje representante do realismo mágico?
Como leitora gosto muito de escritores hiper-realistas, acho um primor. Mas há um autor brasileiro que é uma grande influência: Murilo Rubião, um contista dos anos 50. O realismo mágico dele é ligado ao quotidiano. As coisas irrompiam o quotidiano como se nada fossem. Aquilo não era um absurdo, era a verdade. Sempre volto ao Murilo. Mas não é uma coisa fechada. Gosto dos latino-americanos, Bolaño influenciou bastante com a forma cínica como trata os personagens. Acho que os escritores podem ter uma experiência cada vez mais profunda porque as influências vão se adensado. Mas não faço esforço para cair no realismo mágico, ele acontece.
É uma escritora diferente depois de ter sido mãe?
É a questão do tempo. O tempo de escrita ficou menor e ninguém pode ser a mesma pessoa depois de parir. A experiência de uma gestação, de um parto, de amamentar o filho com o seu corpo, esse amor que é das vísceras, não é normal. É um absurdo. A maternidade me deu uma presença física, então é uma digestão lenta que vai influenciar os próximos livros. A força do parto já está na experiência vivida e pode ajudar a descrever outras forças.
Os seus livros dão sempre conta da vida brasileira, como está a ser viver a Copa?
Não há um brasileiro que não esteja pego de assalto, impressionado. Imaginávamos que não houvesse água no hotel, voos cancelados, mas nada disso está acontecendo. Há uma festa nacional acontecendo e serviu até aqui como férias. Porque no pós-copa começamos a eleição e voltamos à realidade.
O que vai acontecer?
Acho que o governo deve continuar, como um programa de continuação de rede de protecção social. Com a pressão de uma oposição mais constituída irá fazer os ajustes que deve.
E vão ganhar a Copa?
Ah… Olha, hoje de manhã – porque daqui a umas horas vai ter Brasil-Alemanha – fui ao supermercado, andei pelas ruas e as pessoas estão preocupadas como se à tarde soubéssemos que vai passar um avião derramando um vírus mortal. Tudo muito tenso. Pessoas que não estão comendo direito, não estão dormindo…
Não teve nenhum sonho premonitório quanto ao resultado?
Não tive. [Risos] Ai… O Brasil vive o futebol de forma visceral. O meu filho, com dois anos, por conta da Copa agora quando vê a bandeira do Brasil grita “Golo”. Associou a bandeira do Brasil ao futebol.