Guia das praias. A banhos com Ramalho Ortigão


A contenda entre norte e sul vem de longe, a léguas de distância do florescimento das estâncias algarvias. Em 1872, os portuenses pedem touros, “muitos touros”, temendo inferioridade burguesa face à então moda alfacinha. A resposta dos vizinhos do Douro à tradição para as bandas do Tejo saldou–se na construção de duas praças e no…


A contenda entre norte e sul vem de longe, a léguas de distância do florescimento das estâncias algarvias. Em 1872, os portuenses pedem touros, “muitos touros”, temendo inferioridade burguesa face à então moda alfacinha. A resposta dos vizinhos do Douro à tradição para as bandas do Tejo saldou–se na construção de duas praças e no começo das touradas, insuficientes para os magotes de aficionados. Ao cabo de dois anos, a excitação esmorece “Mas Lisboa tinha recebido uma lição terrível! O Porto tinha-lhe mostrado que, se quisesse gostar de touros, ninguém gostaria mais. O portuense é o homem mais dedicado, mais serviçal, mais bom homem”.

Considerações de um distinto filho da terra, José Ramalho Ortigão, que em 1876, um ano depois de “Banhos de Caldas e Águas Minerais”, publica o “Guia do Banhista e do Viajante”, obra ilustrada com desenhos de Emílio Pimentel, agora reeditada pela Quetzal. Um roteiro em jeito de folhetim pelas praias portuguesas então na berra, com descrições das respectivas faunas e ambientes, dicas práticas sobre alojamento, motivos de interesse cultural, e actividades de lazer para lá dos areais, como as descritas corridas.

A viagem começa em casa, demora-se pelo Noroeste do país e estende-se até Setúbal. Pelo meio, o autor advoga as virtudes do banho frio e oferece um leque de pistas destinadas às mães. Reserva ainda um capítulo ao socorro dos afogados, a fim de prevenir apoplexias cerebrais, e às precauções higiénicas. Não esquece uma série de paragens mais recônditas na agenda do banhista, como o Furadouro, a Costa Nova, Santa Cruz ou S. Pedro de Moel, tratadas na secção “Praias Obscuras”, e na versão original partilha com os seus leitores os horários dos comboios, esse prodígio da circulação que aproxima os centros urbanos dos ares da costa e abre caminho à massificação de uma prática primeiramente ensaiada pelas elites.

A linha do Norte liga Gaia em 1864 às linhas do Minho e da Póvoa, que funcionam a partir de 1875. Por esta data, Ramalho leva já quase 40 anos de vida e velhas memórias das romarias à beira mar. O professor de Eça de Queirós, com quem haveria de escrever um dos primeiros policiais da literatura portuguesa, “O Mistério da Estrada de Sintra”, foi criado por uma avó no seio de uma família burguesa abastada. Pela sua mão, seguia de bibe e chapéu de palha para a Foz, saudosa Foz da infância, “grave, simples, burguesa”, onde apanhava conchinhas na costa. “As casas alugam-se ao mês ou pela temporada. As rendas orçam pelas de Lisboa. Os meses mais baratos são os de Junho e Agosto. A grande afluência realiza-se em Setembro e Outubro.” Por um escudo e vinte por dia, encontra-se alternativa nas hospedarias de Mary Castro, com a sua cozinha inglesa. No Louvre servem–se iguarias portuguesas e francesas. Os carroções facilitam as deslocações para a praia. No interior seguem pão, laranjas e perna de vitela, que chegam ao destino “picados”, em virtude dos solavancos.

As soirées femininas, cujos penteados se dividem entre o género desdém e o género esmero, são “animadíssimas” e não faltam breves apontamentos de escândalo protagonizados pelos cavalheiros mais afoitos. “Eu mesmo vi um dia sair da Foz uma burricada em que um dos cavaleiros ia de ceroulas, com as chinelas de ter no quarto, levava aos ombros um lençol, e na cabeça, enfiada pelo cano, uma enorme bota de montar.”

De Cascais chegam outras ameaças aos bons costumes. Com os veraneantes a acorrer cada vez mais à Costa do Estoril, não tarda que o negócio da prostituição floresça. “Assim como pela manhã se pergunta para o banho – “há maré?” – assim à noite se pergunta para o baile – “há espanholas?””, descreve o escritor sobre uma tendência saneada por volta de 1892 pela rainha D. Amélia, disposta a travar as escapadelas do marido. Se é forte o mar que bate as rochas nortenhas, as praias do Tejo, como as de Pedrouços, Dafundo e Paço d”Arcos, são “as mais propícias à constituição dos valetudinários e dos anémicos”. Ortigão louva as virtudes da natação e censura o incómodo excesso de roupa das senhoras, ao contrário do que se verifica nas mais progressistas praias do Norte da Europa. De resto, na Alemanha existem mesmo praias privativas para as mulheres, com ingresso proibido aos homens. Em caso de transgressão, aplica-se uma multa de duas libras, coima que segundo o autor valeria a falência dos cavalheiros lusos. “Em Portugal, seria para cada um a ruína: tantas vezes a multa seria paga!”

Depois de Cascais, a Granja é “a mais aristocrática das praias do litoral do país”, a única a ficar deserta durante o ano, uma pérola impulsionada pelo comerciante do Porto Frutuoso Ayres. Leça é a predilecta da colónia inglesa, que aproveitou a boleia do transporte sobre carris para trocar a buliçosa praia dos Ingleses, na Foz do Douro, pelo sossego deste destino próximo.

Diversificada, a Póvoa de Varzim é o palco de lavradores, morgados rurais, presidentes de câmara das comarcas. Espinho, a “piscina consagrada da magistratura”, onde a morada do industrial José de Sá Couto coabita com “choças de pescadores”. Três cafés, hotéis e salões de bilhar servem os banhistas, unidos pelo mar, “o primeiro guia da humanidade”, merecedor de redobrada atenção durante as horas de tédio nos areais. “A curiosidade tanto descobre a má criação quando se espreita pelo buraco da fechadura como nos leva a descobrir a América. O grande mal da nossa educação portuguesa é o atrofiamento da curiosidade.”