George Orwell. Contar ovos enquanto se tenta mudar o mundo


O facto é que não se consegue deixar de viver da maneira conforme ao nosso ordenado, e de desenvolver a ideologia igualmente adequada a ele.” A análise parece certeira e poderá explicar muitas das mudanças políticas a que se assiste, mas a crítica não é nossa e sim de George Orwell. O jornalista explicava no…


O facto é que não se consegue deixar de viver da maneira conforme ao nosso ordenado, e de desenvolver a ideologia igualmente adequada a ele.” A análise parece certeira e poderá explicar muitas das mudanças políticas a que se assiste, mas a crítica não é nossa e sim de George Orwell. O jornalista explicava no seu diário em Fevereiro de 1936 esta ideia com um exemplo concreto. Quando estava hospedado na casa de Meade, funcionário do sindicato, reparou que apesar de pertencer à classe trabalhadora na família se respirava “classe média”. “Fico mais uma vez espantado ao constatar que, assim que um operário arranja um lugar oficial num sindicato, ou se mete na política trabalhista, passa logo a pertencer à classe média, quer queira quer não, ou seja, ao lutar contra os burgueses transforma-se também num deles.” Crítica dura numa das muitas reflexões políticas de um homem que se dizia de esquerda mas preferia ficar “livre de etiquetas partidárias” e que tinha como hobby contar ovos. Já explicamos melhor a parte dos ovos.

Orwell defendia as classes baixas, era contra a opressão e o totalitarismo e alertava para os seus perigos, mas não era propriamente uma figura consensual. Fazia comentários contra os homossexuais, as feministas, defendeu que o humanitarismo não passava de hipocrisia e num episódio relatado no livro “The Road to Wigan Pier” (1937) conta que sentiu “horror” ao partilhar uma garrafa de cerveja com trabalhadores. Nada disto ensombra o legado do autor da distopia “1984” e de “O Triunfo dos Porcos”. Eric Arthur Blair nasceu na Índia britânica em 1903. Herdou um título da nobreza, mas a fortuna terá ficado pelo caminho. Estudou Arte e Cultura Clássica, Inglês e História na universidade com a ajuda de uma bolsa e teve várias profissões. A mais estranha – já que despreza a autoridade – foi a de polícia na Birmânia. Com um legado intemporal, não é de estranhar que um livro que reúna os 11 diários de George Orwell (o pseudónimo que criou para escrever) crie interesse. Mas não espere uma referência directa às obras que publicou. Aqui analisa-se tudo com pinças à procura de pistas. Saímos com poucas, mas ficamos a conhecer melhor Eric.

As entradas típicas de diário – hábito que se perdeu num tempo em que convém chegar rapidamente ao busílis da questão e não se gastam linhas a falar do mau tempo – muitas vezes parecem boletins agrícolas com descrições de plantações, sementeiras, tudo prova de que, de facto, a seguir a escrever, do que Orwell gostava era de jardinagem. E não estranhe a recorrente obsessão de contar o número de ovos que as galinhas produzem. Aficionado da vida campestre, são várias as dezenas de ovos de que fala e que quase transformam o diário num inventário. “Total da semana: 56 ovos.”

De um diário doméstico também se passa para os acontecimentos que levaram à Segunda Guerra Mundial. No segundo diário do tempo de guerra (1942), Orwell já está na BBC e é aqui que partilha a maioria das suas opiniões sobre o conflito. Mais tarde pensou em publicar estes diários, mas o seu editor desaconselhou-o devido às suas afirmações polémicas. Apesar de ser um patriota e de preferir morrer pela Inglaterra a ser preso, muitas das entradas do diário expressam a sua antipatia pela autoridade, chegando a sugerir que Churchill devia ser demitido.

“Diários” é uma viagem à vida íntima de um homem que foi trabalhador de uma quinta, jornalista e escritor e que retrata como os ingleses viveram o seu dia-a-dia durante a guerra. Até alerta para a forma despreocupada como o barbeiro continuava o seu trabalho apesar dos bombardeamentos, desabafava que um dia até há-de cortar alguém. Também fala da sua viagem a Marrocos e dos métodos de pesca que aí usavam e da forma como “abusam horrivelmente dos burros” – “trabalham 9-10 horas por dia, carregando pesos que muitas vezes devem ultrapassar bem os 90 kg”. Um empirista, que olha para as coisas de forma simples. Dizia-se um socialista antiutópico, pragmático, contrário a todo o tipo de ismos: fascismo, comunismo, nacionalismo.

Nas últimas entradas do seu diário já está internado no sanatório. Revela-se aí um homem mais debilitado mas que não perde a capacidade crítica. Escreve no final: “No Hospital Hairmyres, por exemplo, só ouvia literalmente um sotaque “erudito” quando tinha visitas. É como se estivesse a ouvir esta maneira de falar pela primeira vez. […] Uma espécie de tom de quem tem tudo na vida, até de mais, uma autoconfiança fátua, um riso balofo a propósito de tudo e de nada, acima de tudo uma espécie de peso e de riqueza combinados com uma má vontade fundamental. […] Não admira que toda a gente nos odeie tanto.”