As aldeias estão vazias, os mais jovens vão-se embora, procuram novas vidas. Num passeio de todo-o-terreno pela Beira Interior, Mónica Menezes conta as histórias das poucas pessoas com quem se cruzou. À falta de gente na rua, António Pedro Santos fotografou a co-piloto
\r\nA ideia do carro-vassoura é ser o último, certo? Varrer os concorrentes que ficam para trás, varrer os que desistem, varrer as provas de que seres humanos passaram por aqueles trilhos. Pois, mas houve um fim- -de-semana em que um piloto e uma co-piloto mudaram o significado de anos e anos de um conceito. O carro-vassoura é aquele que vai à frente do último concorrente, se esse concorrente, claro, for um fotógrafo que pára de 200 em 200 metros só porque a luz está bonita, só porque está um senhor a apanhar couves, só porque as cabras ficam mesmo bem na fotografia. Foi isso que aconteceu. O carro-vassoura já nem esperava por nós. Ia passando pelos postos de controlo e dizia aos colegas da organização: “Falta o 31? Não faz mal, eles não se perdem.” Tão crente o João, tão crente nas nossas capacidades de ler o road book. Mas é verdade, desta vez só nos perdemos umas cinco vezes, vá, sete, bem, se calhar dez.
\r\nNo último dia da Aventura Dacia 4×2/ Aldeias Históricas, orgulhosos por não sermos os últimos a sair do hotel, convictos de que já éramos uns profissionais do todo–o-terreno, conseguimos o feito de em cinco postos de controlo termos assinado… um! O último. A culpa, claro, não é de quem escreve este texto, a culpa, claro, é de quem fez desvios com o carro só para apanhar o melhor ângulo para a foto. Naturalmente, o anda para trás e para a frente faz com que os quilómetros avancem e a contagem do vira à direita aos 500 metros torna-se um pouco mais difícil.
\r\nQueixinhas feitas e dedo apontado ao culpado, avançamos para a história do passeio organizado pelo Clube Escape Livre. A ideia era visitar várias aldeias históricas da Beira Interior de Portugal sempre por percursos fora de estrada. É essa, aliás, a emoção deste tipo de passeio. Belmonte, por exemplo, pode estar ali ao virar da esquina, mas entre trilhos mais ou menos esburacados leva-se duas horas a chegar a um destino a que se podia chegar em 20 minutos. O prazer de sair da rotina, de testar as habilidades do carro, as paragens para apreciar a paisagem ou beber uma ginjinha, as conversas sobre os cinco golos que a Espanha sofreu da Holanda (na altura ainda não se sabia que Portugal ia sofrer quatro da Alemanha, que o Pepe ia dar uma cabeçada no adversário, que o Fábio Coentrão ia ver o resto do Mundial em casa e que a selecção campeã do mundo também ia perder com o Chile e os oitavos-de-final estavam, afinal, reservados a chilenos e holandeses) fizeram destes dois dias uma verdadeira pausa nos sempre acelerados dias passados dentro de quatro portas.
\r\nNum país sem reis nem rainhas, ou princesas adormecidas à espera de um beijo do príncipe encantado, as visitas fizeram–se por algumas aldeias rodeadas de muralhas e torres que contam parte da história de Portugal. À porta de Castelo Mendo, três dos poucos habitantes que ainda há nesta aldeia olham intrigados para o frenesim criado à chegada dos jeeps. São, aliás, os autocolantes de marcas colados nos automóveis que chamam mais a atenção. “Isto tudo é por causa da bola lá no Brasil?” Não, D. Eugénia, não é. 80 anos sentados à sombra, ansiosa por meter conversa. “E vêm de onde?” Lisboa. “Ah, já lá estive uma ou duas vezes, mas aquilo faz-me impressão. É tão grande!”
Na aldeia seguinte, Castelo Bom, são cinco os habitantes que nos recebem. Metade da população. O carteiro, reformado há meia dúzia de anos depois de uma vida inteira a trabalhar nos correios, está ansioso por dois minutos de conversa. É ele quem conta que são apenas dez os que vivem nesta aldeia. “Vão-se todos embora para as cidades ou lá para fora”, explica num largo sorriso desdentado. “Aqui também não há nada para fazer. As pessoas estão todas velhas e quando morrerem isto fica ao abandono.” Há excepções, claro. A casa junto ao miradouro está a ser recuperada por alemães, “querem fazer um turismo rural”. Não se sabe como descobrem estes lugares, mas são alemães, belgas e franceses que têm comprado e recuperado algumas das casas desta aldeia.
\r\nNa paragem seguinte começa a busca pela bomba de gasolina. Passamos por uma. Abandonada. Outra. Fechada para almoço. Tudo bem, almoçamos nós também.
\r\nA refeição repleta de bons enchidos, queijos da região e suculentas cerejas do Fundão deixa-nos naquele estado de sonolência em que só apetece encostar o banco para trás, descobrir a sombra de uma árvore qualquer e dormir a sesta. Mas ainda há muito caminho para fazer e seria um exagero chegarmos duas horas depois do carro-vassoura.
\r\nNo último dia do passeio, aquele em que falhámos quase todos os postos de controlo, chegámos a Marmeleiro. Atrasados, claro. Tínhamos ficado para trás a falar com o senhor Alberto, pastor. Faz o resumo da sua vida em três minutos: sempre trabalhou na terra, até que um dia começou com umas dores nas mãos. Ficaram paralisadas nem sabe porquê. Deixou de ir conversar com as couves, de mimar as árvores de fruta e envelheceu 100 anos em poucos meses. Cansado de estar a olhar para o nada, arranjou uma cabrada. A mulher prepara-lhe o farnel e fica o dia inteiro com as cabras de um lado para o outro. As mãos, essas, começaram a mexer quase da noite para o dia e o senhor Alberto recuperou a alegria e a idade que tinha perdido com a doença sem nome. Uns quilómetros mais à frente, no meio de uma grande plantação agrícola, um homem vestido de preto dos pés à cabeça vai apanhando alguns molhos. Ao pedido de ser fotografado esconde o meio sorriso que tinha feito à chegada e vira-se de costas para, poucos segundos depois, partir a resmungar. Acenamos.
Com todos os participantes do passeio já em passo acelerado para entrar no carro, nós em contramão para ainda ir visitar o forno comunitário. São quatro as mulheres que nos recebem naquele espaço reduzido que já só funciona em dias de festa, como foi aquele. O pão já está amassado e dentro do forno. A porta tapada com uma peça de metal, presa com paus e ferros, não assegura o melhor aquecimento. “O forno foi todo recuperado, mas não sei porquê não arranjaram a porta”, conta uma das senhoras. Outra garante que a presidente da junta disse que a ia arranjar, “mas já sabe como são os políticos e as promessas”. Risada geral. Sai mais uma fornada. A nova receita foi posta à prova e correu bastante bem: pão com marmelada. “Como vivemos em Marmeleiro, achei que ficava bem misturar a marmelada na massa e levar tudo ao forno.”
\r\nContado assim até parece que nos cruzámos com muitas pessoas pelos sítios por onde andámos. Mas não. Casas fechadas, casas abandonadas, ruas sem pessoas, sem carros, sem vida. A destoar, parado no meio do vazio do caminho está João, o condutor do carro-vassoura, ar divertido, mas ansioso: “Vá, agora não podem demorar mais porque vai haver um espectáculo em Belmonte e não podemos chegar atrasados.” Ainda parámos para mais uma foto, ainda nos perdemos duas vezes, mas, surpresa das surpresas, chegámos a tempo do espectáculo em pleno castelo de Belmonte. Visitámos a aldeia, o Museu Judaico, e fomos dos primeiros a chegar ao restaurante para almoçar. O carro-vassoura? Ficou lá para trás à espera de alguns atrasados…
\r\nO i viajou a convite do clube Escape Livre