Vila Real. Pé a fundo ao volante de uma tradição


Pilotos de fatos impecáveis que se passeavam pelas ruas em tons garridos, correrias loucas para chegar o mais perto possível da pista, ruído dos motores, gritos, palmas. Naquele tempo, nos chamados anos de ouro, era uma cidade pequena, com poucos habitantes, que na altura das corridas era tomada de grande animação. Nos anos 60 e…


Pilotos de fatos impecáveis que se passeavam pelas ruas em tons garridos, correrias loucas para chegar o mais perto possível da pista, ruído dos motores, gritos, palmas. Naquele tempo, nos chamados anos de ouro, era uma cidade pequena, com poucos habitantes, que na altura das corridas era tomada de grande animação. Nos anos 60 e 70, portugueses e estrangeiros acorriam a Vila Real para vibrarem, ao vivo e a cores, com os pilotos nacionais e estrangeiros de renome ao volante dos automóveis mais espectaculares. Festa, euforia, entusiasmo, são algumas das palavras usadas pelos intervenientes para descrever o evento. Hoje o circuito internacional regressa à cidade e a avalanche de memórias vem à boleia.

Criado nos anos 30, o circuito teve vários intervalos mas o novo milénio trouxe boas novas. Em 2007 deu-se a primeira tentativa de recuperar a tradição, em 2010 a segunda e por fim, este ano, espera-se que o ditado “à terceira é de vez” se aplique. “Queremos que regresse para ficar porque as interrupções são o pior, perdem- -se contactos e toda a máquina que está em movimento pára”, a voz do outro lado é de Francisco Vieira e Brito, da Associação Promotora do Circuito Internacional de Vila Real. É juntamente com a Câmara Municipal e vários patrocinadores que se monta o evento, que exige pelo menos um ano de preparação. É um circuito citadino, relembra Francisco, o que quer dizer que a logística é mais complicada, mexe verdadeiramente com a cidade e a sua dinâmica.

Os hotéis da região estão esgotados já há algum tempo, para as diferentes provas contam-se 200 pilotos de visita à cidade. Ultrapassar os 100 mil visitantes não será difícil, garante o elemento da associação, “ou mesmo chegar aos 200 mil”.

Do talho para as corridas Regressemos ao início do século XX, para um arranque da história em beleza. Um grupo de pessoas reunia-se para tornar a coisa oficial e inaugurar o circuito da cidade: Aureliano Barrigas, um apaixonado por automobilismo, foi um dos principais responsáveis mas toda a população deu o seu contributo. Para a primeira edição, de 1931, o preço da carne subiu. Era um imposto destinado a financiar o grande evento.

O circuito, com pouco mais de 7 quilómetros, foi crescendo nos anos que se seguiram e recebendo caras conhecidas, como o realizador português Manoel de Oliveira, em 1936. A Segunda Guerra Mundial obrigou a uma interrupção das competições (aqui como em todo o país), mas nos anos 50 regressaram em força com a presença de pilotos de Fórmula 1, como o português Nicha Cabral ou o britânico Stirling Moss. A verdadeira euforia com as corridas dar-se-ia nas décadas seguintes com pilotos e máquinas a ficarem para a história: Mike D”Udy no seu Lola T70 ou David Piper no Ferrari 330 P3/4 são apenas dois entre os muitos exemplos. Com a Revolução dos Cravos surge outra pausa; a última edição aconteceu em 1991., Por fim, os vila-realenses esperaram 16 anos para que o circuito renascesse.

Entre as boas recordações, a euforia e velocidade também deram origem a episódios trágicos. Conta-se a morte de um colaborador, colhido num despiste de automóvel, um piloto que perde a vida numa curva e, mais recentemente, em 1991, quatro espectadores que morreram, culpa de um automóvel despistado que passou por cima das redes. Hoje a segurança é diferente, mas “não podemos garantir que os acidentes não acontecem”, avisa Francisco Vieira e Brito, que assegura que grande parte da responsabilidade está do lado do público. “As condições são muitíssimo boas mas as pessoas têm de colaborar.” Respeitar as zonas interditas e não ficar demasiado próximo das redes (para prevenir o efeito ricochete) são os principais cuidados a ter em conta.

Na memória Francisco tem 50 anos e é professor universitário. Nasceu e cresceu em Lisboa mas foi a viver no Porto que teve a oportunidade de se aproximar da febre do automobilismo em Trás-os-Montes. Era ainda adolescente quando esteve presente no evento pela primeira vez. “Lembro-me do entusiasmo, da exigência do traçado e da verdadeira loucura por um piloto que estava a despontar naquela altura e que era um ídolo da cidade, o Manuel Fernandes.”

O piloto, que a cidade homenageou dando o seu nome a uma das ruas da cidade, morreu em 2005 mas a sua presença atrás do volante continua a ser recordada. “Tenho muitas memórias, ele fazia festas grandes em casa, vinham os pilotos todos ao fim-de-semana passar lá o tempo.” O filho do piloto, Manuel Pedro Fernandes, de 38 anos, confessa que herdou o gosto do pai e continua a marcar presença no circuito. Desde pequenino que tinha a atenção virada para a pista sinuosa e das bancadas guarda várias imagens: “Das celebrações no pódio à socialização com os pilotos até à corrida que o meu pai ganhou numa Starlet, ao Pêquêpê.” Pedro Queiroz Pereira era uma espécie de arqui-rival de Manuel Fernandes, uma relação que fazia as delícias de quem acompanhava o frente-a-frente na pista, ideal para apimentar a competição. Os dois proporcionaram também um dos acidentes mais aparatosos na memória de Manuel Pedro. “Soube que tinha havido um acidente. Não havia câmaras nem maneira de comunicar, só se ouvia as pessoas a gritar “Eles morreram!” Fiquei com bastante medo, até ver o meu pai passado pouco tempo a caminhar.”

O empresário, que entretanto se afastou das corridas, continua a não conseguir dizer não às da terra. “É sempre uma festa e este circuito é diferente, muito rápido e complicado, e que cria bastante emoção a quem corre.” De mãos apoiadas no volante, sente-se tudo à flor da pele e o medo, esse é inevitável. “Quem disser que não tem não está a dizer a verdade.”

O receio alia-se à boa disposição, à boémia. Ernesto Neves, de 68 anos, recorda as noitadas entre pilotos na cidade, quando às três e cinco da manhã os automóveis saíam do mecânico para serem testados na pista – “acordávamos a cidade”. Há ainda quem diga, sem medos, que naquela época ir para Vila Real era entrar noutro mundo. “A estrada era uma coisa horrorosa, aquele Marão e as curvas todas. E quando íamos ficávamos lá, cercados por aquele entusiasmo, o povo que nos adorava e nos fazia festa, as assinaturas… aquelas coisas que não têm importância mas que são do coração.” A recordação é de Carlos Gaspar, de 71 anos, formado em Engenharia Mecânica e que vive no Porto. Nesses tempos (entre 1966 e 1973) correu o circuito da cidade transmontana, era piloto por paixão, um gosto que lhe passou o pai. Na altura não se fazia do asfalto profissão, relembra: “Era o chamado gentleman driver, um homem que gosta daquilo, um entusiasta, que tem mais ou menos jeito para a coisa.” Entretanto meteu-se a Revolução e os compromissos profissionais e deixou de correr. Das boas recordações guarda o recorde que bateu no circuito antigo de Vila Real – 2 minutos e 19 segundos a uma média de 178, 173 km/h para completar uma volta que nessa altura tinha cerca de 7 km. “Ainda hoje me dizem: “Foi a corrida da tua vida.”” Uma exclamação em tom de elogio que continua a ouvir mais de quarenta anos depois.

Regressar a essa época é sentir a euforia do público e até a mão cansada de dar autógrafos, conta, entre risos. Pede–nos perdão antes de retomar o discurso – não tem de quê – “aquilo [as corridas] era como uma religião. Tinha a ver com a terra, com a cidade, com o que se tinha feito até então. Ao contrário do circuito de Vila do Conde, por exemplo, havia aquele sentido de “as corridas são nossas””. Hoje, quando vai de fim-de- -semana, Carlos faz os desvios que for preciso para passar por Vila Real. E passar é mesmo isso, sobre rodas, tempo para dar uma volta ao circuito.