Siri Hustvedt. “Num momento dramático deitei fogo às minhas primeiras obras”


Lê quatro livros por semana, interessa-se por arte, literatura, neurociências e psiquiatria.Dá conferências no meio científico e até já expôs os seus desenhos.A norte-americana Siri Hustvedt esteve em Portugal para falar de “O Mundo Ardente”, um poderoso embuste no meio artístico nova-iorquino quando uma mulher se faz passar por homem. Vanda Marques conversou com a…


Lê quatro livros por semana, interessa-se por arte, literatura, neurociências e psiquiatria.Dá conferências no meio científico e até já expôs os seus desenhos.A norte-americana Siri Hustvedt esteve em Portugal para falar de “O Mundo Ardente”, um poderoso embuste no meio artístico nova-iorquino quando uma mulher se faz passar por homem. Vanda Marques conversou com a escritora e nem deu pelas horas a passar. Rodrigo Cabrita fotografou

\r\n

O texto perde para o vídeo e para a rádio quando queremos transmitir alguns detalhes. Como se explica o riso descontraído e a gargalhada sem restrições de uma mulher como Siri Hustvedt? Doutorada, escritora, especialista em arte e neurociências, a mulher de Paul Auster começou pelos poemas até chegar ao primeiro romance, em 1992, com “De Olhos Vendados”. Ávida de conhecimento, o que a faz devorar livros desde os 11 anos e passar horas seguidas a observar obras de arte até ver o que nem os académicos encontram. Resta-nos a frase de Siri para encontrar alento nas palavras impressas: “Lembramos os livros em imagens e sobretudo recordamos os sentimentos que tivemos ao lê-los.” Percepções de nós e do mundo, é disso que fala o novo romance de Siri Hustvedt, de 59 anos, filha de mãe norueguesa, Ester Vegan Hustvedt, e pai descendente de noruegueses, Lloyd Hustvedt. Em “O Mundo Ardente” destabiliza o leitor com uma ideia simples: uma pintora chamada Harry sente-se marginalizada e decide fazer uma experiência apresentando as suas obras usando homens jovens como seus autores. Uma mentira que é engolida por todos e que se transforma num sucesso. Porque a discriminação sexual existe e continua. Mas se o livro de Siri não se fica por uma imagem redutora desta questão, a nossa conversa também tinha de ir mais longe.

\r\n

Disse que o seu livro devia ser lido como um jogo e um puzzle. Porquê?

\r\n

Acho que foi tirado de contexto. O meu marido [Paul Auster] olhou para mim e disse: “Tu disseste isso?” É um jogo, mas de uma forma muito profunda. Não é um puzzle e não há solução. Nem é para ter uma mensagem, é para destabilizar o leitor. Normalmente não leio as críticas aos meus livros, mas neste caso é diferente.

\r\n

Porquê?

\r\n

No meu primeiro romance estava tão feliz que alguém falasse dele que li tudo o que escreveram. Depois reformei-me disso. Acabas sempre por saber se o “New York Times” disse se é bom ou mau, mas não precisas de ler os textos. Protejo-me. Com este livro considero as críticas proliferações da Harry. A forma como as pessoas vêem o livro faz parte do livro em si mesmo. Esta visão mantém-me protegida, quer as pessoas gostem quer não é da Harry. Quem gostou do livro embarcou na viagem. Os que ficam na defensiva acham que é uma personagem razoável. O livro é a aventura da percepção.

\r\n

Não foi feito para ser visto como um livro feminista, mas acaba por sê-lo?

\r\n

Não deve ser reduzido a uma fábula feminista, como diz a personagem Rosemary Lerner, no livro. Essa personagem é uma voz calma na obra e a primeira que desconfia que o trabalho dos homens era muito parecido com o de Harry. Mas este livro é demasiado complicado para se reduzir a uma mensagem. Só que é um facto que a arte feita por homens tem mais visibilidade. Não há dúvida. É apenas verdade, pura e dura. Colas o nome de um homem numa coisa e melhora na percepção cultural. E o inverso acontece. O que não quer dizer que não existiam mulheres de sucesso. Mas é mais difícil.

\r\n

Há números que revelam essas diferenças, as mulheres ganharem menos…

\r\n

Sim, 77 cêntimos de um dólar, nos EUA. Existe um efeito de intensificação masculina. A questão é: porque é que o mesmo trabalho feito por mulheres é considerado menos valioso? São inferências inconscientes porque a nossa percepção não é passiva. Criamos as nossas percepções, que são baseadas no nosso passado. Encontramos sentido no mundo segundo o nosso passado, logo são ideias conservadoras.

\r\n

Difíceis de combater?

\r\n

Um grande estudo com 165 professores universitários nos EUA revelou esses preconceitos. Enviaram uma carta igual a todos a pedir informações sobre um programa de doutoramento, a única diferença era o nome: um masculino, outro feminino e de outras etnias. O homem branco recebeu mais respostas, mais encorajamento que qualquer mulher ou latino ou asiático. Aqui temos professores universitários, com uma grande formação. Uso outro exemplo: estás numa festa e vês uma mulher linda, com um vestido justo e descobres que ela está a fazer o segundo pós–doutoramento no Centro Rockfeller em Biologia Molecular e ficas surpreendida. Porque não esperamos isso? A única forma de lutar contra isso é tornamo-nos conscientes disto e falar. Porque pensei que aquela mulher era burra? O que é interessante é que as discussões mais acesas sobre este tema acontecem na Escandinávia, onde as mulheres têm as melhores condições, onde há mais mulheres no governo. Isso faz sentido.

\r\n

Já sentiu essa discriminação?

\r\n

Todas as mulheres já sentiram. Pode ser disfarçada. Ter um doutoramento serve de armadura. Não evita tudo, mas ajuda. Por exemplo, a agressividade numa mulher é vista de outra forma. A Harry é muito agressiva, mas há a ideia de que as mulheres são, por natureza, passivas. Não é assim. Dei uma conferência numa universidade psicanalítica e ao jantar sentei-me ao lado de uma venerável analista que às tantas me diz uma coisa incrível: “Em todos estes anos com pacientes encontrei uma coisa que é verdade: quando as coisas correm mal os homens culpam o mundo e as mulheres culpam-se a si próprias.” [Risos.] Pensei uaauuuu. É isto. Tem de existir uma saída, tem de haver um meio de sair daí. O que somos internamente é o produto do exterior também. Todos os livros que leste, pessoas que conheceste, fazem parte de ti. William James tem uma bonita frase: a vida é um loop, o que entra é para sair, nos teus pés, nas mãos. Somos criaturas dinâmicas, que podem mudar.

\r\n

Como surgiu a ideia para este romance?

\r\n

Não é assim tão fácil encontrar a origem do livro. Pode começar com uma coisa tão simples como uma imagem mental. Por exemplo, o meu romance “Aquilo Que Eu Amava” foi uma imagem de uma mulher muito gorda deitada numa cama, morta. Para este livro foi a ideia de máscaras. No teatro grego a máscara não é um disfarce mas uma forma de revelação, um lugar onde a audiência pode projectar-se a si mesma. Sabia que queria escrever sobre percepção, a ideia de uma mulher a usar estas máscaras como experiência é muito interessante. Queria múltiplas vozes porque as perspectivas tinham de ir mudando. E queria um editor que reúne todas as opiniões sem sexo, para brincar com a ambiguidade.

\r\n

O romance está escrito como um conjunto de documentos de pessoas diferentes. Porque optou por esta forma?

\r\n

Chamo a este livro perturbação de personalidade múltipla. Quando acabava o texto de uma pessoa e mudava de voz – escrevi sequencialmente – havia sempre uma reentrada para a nova voz. Isso levava algum tempo. Mas foi maravilhoso viver nestas pessoas todas, homem/mulher, velho/novo, bondoso/maldoso. Foi mesmo divertido.

\r\n

Não se baralhava?

\r\n

Foi um desafio. Por exemplo o ponto de vista de Bruno [o companheiro da pintora no final da vida] é muito diferente do de Harry. Ele é um sexista, mas é bom. [Risos.] É uma espécie de sexismo que cai na benevolência, porque quer salvar a Harry dela mesma. O livro é escrito para que cada nova voz se sobreponha à anterior, é para ser um livro instável, para que a forma do livro espelhe estas emoções. Deve pôr o leitor a pensar na ambiguidade da percepção. Claro, também conta uma história sobre a cultura ocidental e também sobre a psicologia desta personagem central: a Harry.

\r\n

Como a descreve?

\r\n

As a piece of work. Conhece a expressão? [Complicada e difícil.] É psicologicamente complexa, tem um passado familiar complicado, e é um génio, cheia de energia e raiva, que segue em frente sem olhar para trás. Há prazer em ocupar essa zona. Apesar de ser triste, porque ela liberta-se e sabota-se ao mesmo tempo. Acho que quis ter no centro do livro uma grande personagem feminina, que se compara com um monstro. Ela é um como o “Frankenstein” de Mary Shelly, mas também encontra referências a Kierkegaard e aos seus pseudónimos.

\r\n

Descreve-a mesmo como uma mulher enorme. Isso era importante?

\r\n

Tem umas mamas gigantescas. Queria ela que tivesse um corpo feminino intimidante. Vejo-a depois de cabelo solto, selvagem, com um corpo voluptuoso e alta como uma torre. Tenho essa parte da altura, as outras não. Por isso queria que a feminilidade estivesse bem presente. Ela tem filhos, adora-os e lembra–se de amamentar com uma felicidade sensual. Queria-a muito feminina, para se perceber que ela não quer ser um homem. Ela quer o poder que a masculinidade representa e quer ver o que acontece quando ela desaparece e só vêem o seu trabalho. Não penso que seja uma fantasia feminina invulgar. Há uma história de mulheres a escrever com pseudónimos masculinos, George Elliot é um dos mais conhecidos.

\r\n

Em miúda imaginava-se escritora?

\r\n

Quando era muito pequena queria ser uma artista visual, desenhava e ainda desenho, por prazer. Mudei depois de ler romances.

\r\n

O que mudou?

\r\n

Estava a passar o Verão na Islândia e havia luz durante a noite toda. Nessa altura descobri que era capaz de ler livros com letrinhas pequenas. Ia à biblioteca em Reiquiavique e a minha mãe dizia: “Acho que vais gostar do “David Copperfield”, “Orgulho e Preconceito”, “Monte dos Vendavais”…” Tinha 11 ou 12 anos e passei o Verão a ler. Li um atrás do outro, estava tão entusiasmada que pensei: é isto que quero fazer.

\r\n

Começou pela poesia. Porquê?

\r\n

Era mais fácil de gerir. Lia muita poesia. Também escrevia histórias, mas a maioria não chegou a ver a luz do dia. Comecei um romance na universidade mas não sabia o que fazer com ele. Tinha um bonito começo mas…

\r\n

Ainda o tem?

\r\n

Não. Acho que num momento muito dramático deitei fogo a tudo. Fazia muitas imitações, sonetos, análises filosóficas, diferentes formas de escrita.

\r\n

Como foi ver o seu primeiro poema publicado, na “The Paris Review”?

\r\n

Foi o meu maior momento de edição. Foi o primeiro poema que considerei que era bom e enviei-o para o sítio mais importante de que me lembrei e eles aceitaram.

\r\n

Não conhecia ninguém na revista?

\r\n

Não. Recebi uma carta de volta e um cheque de 90 dólares. Lembro-me de pensar se não fosse tão pobre o emoldurava. Mas era pobre…

\r\n

Já estava a viver em Nova Iorque nessa altura. Li que teve muitos empregos. O que recorda desses tempos?

\r\n

Muitos. O mais estranho foi quando trabalhei para um historiador da medicina. Arranjei o emprego num daqueles placares na universidade de Columbia. Quando ele me entrevistou perguntou-me quantas línguas falava. Respondi inglês e norueguês, também estudei alemão e sei algum francês. E ele perguntou: “Fala persa?” Disse: “Não, lamento mas não.” Ao que ele respondeu: “Nem uma palavra?” Pagava-me 6 dólares à hora e enviava-me para a biblioteca de medicina com uma tarefa: procurar informação sobre a lepra. Passado pouco tempo percebi que ele não estava a fazer nada com aquilo. Fazia as fichas sobre doenças mas não havia um projecto. Tinha 82 anos e estava a divertir-se a dar-me estes trabalhos. Também fui empregada de mesa em vários sítios, ainda assistente de loja na Bloomingdales, o trabalho mais aborrecido que tive. Ia para a casa de banho ler. Fazia batota.

\r\n

Quando nasceu o seu interesse por psiquiatria e neurociências?

\r\n

Quando estava na faculdade e comecei a ler Freud, mas sempre fui muito determinada e uma leitora voraz. Actualmente leio três ou quatro livros por semana. O que faço agora é ler e escrever. Escrevo de manhã e à tarde, tento ler entre três e quatro horas. Mas, voltando atrás, interessei-me por misticismo cristão e descobri teorias neurológicas sobre experiência religiosa. Interessei-me por afasia e aí comecei a pesquisar sobre neurociências. Algures nos anos 90 trabalhei e trabalhei para compreender esta linguagem da biologia e da ciência. Depois publiquei o livro “The Shaking Woman or A History of My Nerves” [um dos seus livros mais autobiográficos sobre os seus problemas de saúde]. Não teve sucesso popular, mas no circulo neurológico teve. Comecei a ser convidada para falar em conferências.

\r\n

Numa conversa na Strand Books com o seu marido ele pergunta-lhe: “Romancista, ensaísta, crítica de arte, exploradora de psicanálise, neurociências, ciência. Como consegues gerir tudo?” Como faz?

\r\n

É só ler. É uma coisa interessante, percebo que uma das coisas vitais é talvez ler contra mim mesma. Se leres pontos de vista que não são naturalmente os teus, até coisas das quais discordas violentamente, entras na argumentação, na epistemologia, encontras um bom exercício. Aguça a mente.

\r\n

O seu interesse em arte começou cedo. Porque nunca pensou em expor o seu trabalho?

\r\n

Fui convidada por um curador do Musée d”Orsay – que estava a falar com escritores e artistas para analisar uma obra. Em vez de escrever, decidi desenhar. No meu caso era um quadro do Cézanne, um jarro. Era desenho e aguarela, tinha um lado muito humano. Respondi com uma mulher gordinha. Por isso já posso dizer que expus no Orsay. Também fui desafiada pelo “Wall Street Journal” a escrever sobre artistas plásticos e a juntar desenho. Fui aos meus cadernos e encontrei alguns destes desenhos com citações da Margaret Cavendish [filósofa, poeta, cientista e escritora inglesa do século xvii]. Fotografei com telefone e enviei. E já fiz o mesmo para a “Magazine Littéraire”. Fiquei surpreendida, acho que me tinha esquecido do que desenhava.

\r\n

É verdade que descobriu nos “Fuzilamentos do Três de Maio”, de Goya, a cara do pintor espanhol lá no meio?

\r\n

Simplesmente olhei para o quadro durante umas horas. No início achei que estava a alucinar. Fui buscar a minha filha, o meu marido e outro amigo que me tinham deixado há imenso tempo e pedi–lhes para olharem para o mesmo sítio que eu e eles também viram a cara do pintor. Voltei ao Museu do Prado, em Madrid, para mostrar ao curador de pintura do século xix. Ele não ficou muito feliz. É uma imagem fantasmagórica, que tem afinidades com os quadros negros. Também descobri um ovo na janela do quadro “Rapariga com Colar de Pérolas”, de Vermeer. Acho que significa que é um quadro de anunciação. Escrevi sobre isso e mudou a opinião dos académicos. Mas não ficam muito contentes com estas descobertas, ao contrário da comunidade científica. Mas deve ser porque os cientistas governam o mundo e os historiadores de arte não. A hierarquia é tão diferente que estão mais defensiva.

\r\n

Veio a Portugal e vai lançar o livro no ateliê da artista Joana Vasconcelos. O que pensa da obra dela?

\r\n

Admiro muito o seu trabalho. Acho que é um casamento perfeito. O trabalho dela é poderoso e tem grandiosidade. E fala do poder sempre de forma audaz. Avança para coisas grandes, materializa-as. Admiro isso muito. É uma heroína, uma heroína portuguesa.