A bíblia de Lôá. Novas histórias para velhas escrituras


Um dia Lôá decide pegar num livro e desenhar o mundo. Dulce Maria Cardoso escreveu a história desta menina deus e Vera Tavares ilustrou todas as constelações que ela criou. Carolina Pelicano Falcão entrou no mundo mágico dos livros infantis destas autoras e Eduardo Martins colocou-as em pose fotográfica\r\nAlguma vez viram a mãe pata a…


Um dia Lôá decide pegar num livro e desenhar o mundo. Dulce Maria Cardoso escreveu a história desta menina deus e Vera Tavares ilustrou todas as constelações que ela criou. Carolina Pelicano Falcão entrou no mundo mágico dos livros infantis destas autoras e Eduardo Martins colocou-as em pose fotográfica

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Alguma vez viram a mãe pata a ensinar a nadar? Se há algum patinho que se desvia da rota vai logo a mãe pata buscá-lo. O pai pato não sei o que está lá a fazer. A ser giro, só. Passei muito tempo a olhar para os patos quando estive numa residência na Alemanha. Tenho quase um doutoramento.” Isto nos conta Dulce Maria Cardoso quando cruzamos caminho com os patos que se passeiam livremente nos jardins da Gulbenkian, em Lisboa. E não é de todo casual que a tirada da escritora nos sirva para introduzir o tema que nos levou a conversar com ela e com a ilustradora Vera Tavares, criadoras de “A Bíblia de Lôá”, uma série de livros infantis recentemente editados pela Tinta da China.

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O olhar sobre a vida dos patos e o seu jeito de actuar, que Dulce Maria Cardoso graciosamente explica, põe-nos na rota fundamental destes livros infantis, que se propõem dar ferramentas aos mais pequenos, através da história e das ilustrações, para reparar o mundo, tentando afastá-lo de tudo o que são preconceitos. Como aqueles que no “Capuchinho Vermelho” criam medos desnecessários aos mais pequenos sobre lobos, explicam-nos Dulce e Vera. Apresentemos então a protagonista destas histórias: Lôá é um menina deus que um dia se pôs a desenhar no seu caderno e cria um mundo tão bonito que passa a viver dentro dele. O Sol, a Lua, as estrelas, as constelações e os planetas, todos os animais possíveis assim como as florestas, os rios e os mares e toda a restante fauna e flora que pudessem incorporar a criação ilimitada de vida. Assim nasce “Lôá e a Véspera do Primeiro Dia”, o início da aventura que apresenta a história do mundo contada de uma outra maneira. Dulce Maria Cardoso, habituada aos terrenos do romance e do conto para gente crescida, explica-nos como chegou a esta história, que começou por ser um desafio lançado pela RTP 2, que lhe pediu que escrevesse histórias para um programa infantil baseadas no Antigo ou no Novo Testamento. “Escolhi o Antigo porque é mais interessante em termos dramáticos e criativos. O mais difícil para mim foi perceber o que podia fazer com aquilo. Demorei muito tempo a perceber que a Bíblia, através das histórias que nos são contadas, nos faz viver neste caldo judaico-cristão que está cheio de preconceitos. Como isto era para crianças pensei: “Se conseguir identificar o preconceito em cada uma das histórias – o que não é difícil porque estão cheias deles -, talvez consiga equilibrar e dar outra visão aos mais pequeninos.””

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A personagem de Lôá como menina deus é disso o exemplo, invertendo precisamente o Antigo Testamento, onde a mulher é criada a partir de uma costela do homem. “Todas estas passagens bíblicas são terríveis para as questões de género. Como também é o episódio da Torre de Babel. Quando os homens se tornaram demasiado ambiciosos, Deus, para os desentender e castigar, pôs cada um a falar uma língua diferente. Evidentemente que ninguém acorda de manhã a pensar que os estrangeiros são maus porque isto é um castigo divino. Mas a ideia de estrangeiro passa a ser um coisa ameaçadora”, contextualiza Dulce. As passagens bíblicas como inspiração para estas histórias são, como nos diz Vera Tavares, “inesgotáveis” e continuarão a dar seguimento aos dois primeiros números: “Lôá e a Véspera do Primeiro Dia” e “Lôá Perdida no Paraíso”.

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Identificar preconceitos e combatê-los é coisa que exige atenção redobrada, precisamente por a infância se assemelhar a uma espécie de “esponja que tudo absorve”, diz Dulce Maria Cardoso. Atentemos por isso no título que inaugura esta série, “A Véspera do Primeiro Dia”, curioso e longe de ser inocente. “A nossa ideia é precisamente criar um estímulo de questionamento. Isso está muito presente nestes livros”, explica Vera. E Dulce acrescenta: “Claro que não há frases inocentes no livro. É um texto muito pequenino mas foi muito revisto. Exactamente para poder ter uma ideia, que é a que me agrada mais, de um futuro que eu acharia melhor e mais justo.”

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O bem e o mal. Mundo melhor e mais justo sim, mas o desejo está longe de querer esconder o deambular entre bem e mal próprios da vida, seja ele na infância ou na idade adulta. “Por exemplo, no segundo livro, já com a Lôá e o rapaz que ela cria, quando é criada a segunda mulher, as relações complicadas começam logo aí. Portanto, não é dourar o mundo, como se fosse uma mulher a criá-lo tornasse tudo perfeito. Não, está lá tudo: o ciúme, a insegurança, a ambição. Trata-se de criar um mundo com menos preconceito”, explica Dulce Maria Cardoso.

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Com as histórias infantis geralmente sujeitas ao binómio bem/mal, é importante que a moral mude de figura, não ultrapassando a falha, mas mostrando-a. “Essa é uma das coisas muito bonitas nestes livros. É que a Lôá falha muitas vezes, mas, por ela ser a menina deus, a coisa é invertida. Ou seja, ao invés de ser a criação a falhar, é o criador. Acho isso muito belo. Torna tudo muito humano, porque não se trata de um Deus distante”, conta Vera Tavares.

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Neste sentido, ambas as autoras acreditam que algumas ideias veiculadas nos livros infantis têm condenado gerações, da “Gata Borralheira”, ao “Bambi”, ao “Pinóquio” ou à “Branca de Neve”. “Todas estas histórias são portadoras de um mundo que não é o que interessa. É sempre muito o bom e o mau em confronto e tem de se escolher. Quando a vida, mesmo na infância, é feita de cinzentos. Nós vamos sendo bons e maus, vamos agindo bem e mal à vez. Não há ninguém completamente impoluto nem ninguém completamente perverso. E a Lôá é terrível, não é flor que se cheire”, graceja Dulce Maria Cardoso.

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Cinzentos assumidamente distribuídos entre o colorido das ilustrações de Vera Tavares, as páginas de “A Bíblia de Lôá” pretendem por isso abrir cada um dos seus pequenos leitores a todos os caminhos possíveis. “Crescer é ter vários caminhos. Crescer tem de ser ter várias alternativas e nenhuma impositiva”, acrescenta Dulce. Seja como for, as autoras não têm dúvida de que, doseando as tonalidades, há que encaminhar sempre para a luz.

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E por falar em questões impositivas, esta Bíblia pretende ainda contrariá-las de outra maneira. Duas palavras para isso: orvil e sipal. Não vale a pena procurar no dicionário. São, nada mais nada menos, que as inversões de “livro” e “lápis”, respectivamente. “Ser criança tem muito que ver com inventar palavras, que é uma coisa que vamos perdendo à medida que nos vão dizendo o que é ou não linguagem”, explica Dulce, presenteando-nos com um exemplo que bem poderia constar dos grandes sorvil reguladores. “Muitas das palavras que as crianças inventam são muito justas. Num dia de frio a minha sobrinha, que queria a manta, disse “amanta-me”. Achei que era uma palavra maravilhosa. E, mesmo que tente pô-la num livro, nunca fará parte do vocabulário. A linguagem é uma convenção, muito rígida e também muito preconceituosa.”