Que vida tiveram os nossos avós, que de tanto trabalhar aos quinze anos estavam acabados e se não morriam acabavam na guerra?, perguntava Jacques Brel. Isabel Pedrome também quis saber e acompanhou alguns pela mão de Peter Englund, um historiador que escreveu um livro especial sobre a Grande Guerra
A 4 de Agosto de 1914, uma menina de 12 anos chamada Elfriede Kuhr assistia à passagem de um regimento mobilizado para a frente ocidental em Schneidemühl, perto da fronteira de então entre a Alemanha e a Rússia. Viu o desfile atravessar a cidade ao som da banda, dos aplausos e das canções patrióticas e por isso estranhou ainda mais a emoção dos poucos que pareciam perturbados. Sabemos isto em pormenor porque Elfriede escreveu um diário dos anos de guerra, que acabou já ela tinha sofrido o primeiro desgosto de amor.
É com base em diários, cartas e outros documentos na primeira pessoa que Peter Englund escreve uma “história íntima” da Grande Guerra, que acompanha duas dezenas de participantes e observadores dos acontecimentos de 1914-1918. São testemunhas variadas, não só dos acontecimentos na Europa, mas também no Médio Oriente e em África. Há homens e mulheres, uma criança (Elfriede), um intelectual que acompanha a guerra numa segurança relativa em Paris, um aventureiro que presencia massacres de arménios na Turquia e muitos militares de diferentes patentes e países que participam no conflito.
O livro do historiador sueco não é uma antologia. As perspectivas pessoais são reelaboradas e apresentadas em sequência cronológica, em capítulos de poucas páginas que dão voz ao que cada um sente, vê ou pensa nos quatro anos e meio que durou a Grande Guerra. Aqui e ali, as intervenções breves do autor esclarecem aspectos da vida tornados insólitos pelo passar do tempo.
A história económica, ao que tudo indica, nunca vai matar o interesse pelos protagonistas. São eles o sal dos livros, como são o condimento da televisão. Agora que todos os da guerra de 14-18 estão mortos, os documentários por ocasião do centenário terão de ser ficcionados para não dispensarem esse atractivo. Há vários em preparação, um da BBC com certo parentesco com “A Beleza e a Dor da Guerra”, que incluirá inclusivamente um episódio com base no diário de Elfriede – mas isto não desfazendo. Por melhor que seja a BBC em ficção de época, e apesar da afinidade do livro de Peter Englund com o molde televisivo do documentário, escrita e imagem são casos à parte.
Quando Elfriede Kuhr assiste ao desfile dos soldados alemães derrotados já viveu o Inverno dos nabos e viu bebés morrer de fome. Não estranha por isso que os poucos que estão suficientemente perturbados para gritar contra a capitulação por pouco não sejam linchados pelos mesmos que quatro anos antes teriam atacado os que se opunham à guerra. Os sentimentos chauvinistas que predominam em todos os quadrantes nestas experiências pessoais da guerra são aliás uma das aquisições desta leitura. As outras são tão ricas que é difícil escolher. Duas impressões fortes quase ao acaso: a perplexidade de Harvey Cushing, um cirurgião americano, com o que em português se chamou obusite, a epidemia de perturbações mentais surgidas na frente de batalha, e a melancolia com que na retaguarda Michel Corday, o intelectual lúcido, observa políticos e jornalistas caírem na “armadilha do ódio descontrolado da opinião pública”. A rematar, a guerra para acabar com todas as guerras é uma ideia que começa a aparecer só no último ano, quando já todos querem acabar pelo menos com aquela. Mas é preciso aguentar um pouco mais, tão importante é para a civilização sermos nós a ganhar.