Portugal 3933. Não é um endereço GPS nem sequer um código com uma mensagem escondida, mas um corpo rochoso com órbita à volta do Sol. Dá pelo nome de asteróide e é o ponto de partida para a viagem alucinante. Um “suponhamos que este Portugal 3933 estivesse em rota de colisão com a Terra”. O que acontece a seguir? O português Miguel Gonçalves Mendes pegou na câmara enquanto Tatiana Salem Levy e João Paulo Cuenca alcançaram os cadernos para dar resposta à pergunta. O resultado foi a série documental “Nada Tenho de Meu”, que estreia dia 20 de Dezembro na RTP2.
A primeira edição do festival literário Rota das Letras juntou-os em Macau. Uma vez no Oriente, pensaram porque não estender a visita e juntar esforços para um novo projecto? “Como íamos fazer essa viagem mítica, inspirámo-nos nos cadernos de viagem do século xix. Eu, como realizador, captava a realidade e eles, enquanto escritores, escreveram do seu ponto de vista aquilo que íamos vivenciando.”
Da China para o Vietname, o Camboja e a Tailândia, viajamos com o Miguel, a Tatiana e o João, que depressa viram personagens da própria trama. Entretanto surgem outras caras, como o escritor chinês Su Tong ou a tailandesa Lolita Hu. Reconhecemos ainda a actriz portuguesa Margarida Vila-Nova e o marido, realizador – amigos de longa data, adianta Miguel. Entramos na sua loja de produtos portugueses em Macau. Há razão para as intromissões mais que bem-vindas: “Dentro deste exercício ficcional convidámos as pessoas a participar. Para dar o seu contributo para esta pequena grande mentira.”
Falemos de mentiras. Nos episódios moram pedaços de conferências, imagens dos três a passear e outras de mercados, do peixe, de arquivo e, no final de cada aventura, imagens a preto-e-branco dos autores em miúdos. Uma mistura que nos deixa num limbo entre a realidade e a ficção. Um limbo que não é desconfortável. “Talvez se perceba que aquilo que consideramos mentira seja mais importante que a verdade. E que provavelmente diz mais sobre nós. As construções ficcionais podem reflectir mais verdade do que a verdade em si”. A média de dez minutos por cada episódio não deixa de repetir a mensagem nas entrelinhas.
os últimos dias Olhar para a realidade como se da verdade se tratasse é o cerne da questão, um problema que mora entre todos nós. “Há sempre manipulação”, garante o realizador do outro lado da linha. “A maneira como nos apresentamos no Facebook, o modo como falamos com determinada pessoa ou com outra. Somos sempre uma espécie de construções identitárias de nós mesmos.” Uma lógica que se pode estender aos povos e que é óbvio que no caso de Macau continua. Uma região que é espectáculo, luzes, que é global mas também antiga, com uma memória da presença portuguesa que teima em não desaparecer. Essa memória foi um dos critérios para assinalar as paragens nesta viagem. As imagens reflectem o próprio país e se Miguel é fruto de um Portugal em queda, Tatiana e João são filhos de um Brasil em ascensão. Assim se fazem os cara a cara que dão origem a diálogos, tão falados quanto operados pela própria imagem em movimento: “Um confronto entre o que fomos, o que somos e o que provavelmente seremos.”
A ideia inicial era ir filmando e enviando os vídeos para Portugal, para serem publicados online. Mas para garantir a qualidade do projecto esta logística não era a melhor, daí a chegada à televisão. Os episódios já passaram pelo Canal Brasil e foram vistos por um milhão de pessoas; agora é a estreia no pequeno ecrã português.
Até ver, a recepção tem sido boa. Miguel culpa a crise e o ambiente existencialista da série. Tudo se resume a uma pergunta muito simples: como viveria cada um de nós os últimos dias na Terra? “Dizemos que isto não faz sentido e que o mundo é injusto, mas a verdade é que estamos vivos e queremos estar vivos. É tentar perceber o que nos move. As pessoas não têm de tirar a mesma conclusão que eu mas acho que vives para viver. Pode parecer estúpido mas acho que o nosso objectivo máximo é sermos felizes e na nossa morte não nos arrependermos de nada ou pensarmos que teríamos feito as coisas de outra forma.”
modo Guerrilha Às vezes real, palpável, ora narrada em versos, ora pensada numa mesa em tom de debate, a história assume um corpo camaleónico. Mas não há que ter medo. Miguel resume “Nada Tenho de Meu” em poucas palavras: “Um texto em construção, um exercício poético, que tem uma base real e é um jogo com o espectador.”
Para o realizador português, foi uma oportunidade de transição. O autor do retrato da vida de Saramago em “José e Pilar” (2010) continuou o exercício de construir uma narrativa clássica com a ajuda da realidade. Pomos o assunto em cima da mesa: “Utilizo o real como se fossem milhares de peças de um gigantesco puzzle que vou construindo e estabeleço uma ordem.”
A viver em São Paulo, está a trabalhar num novo filme, “O Sentido da Vida”, que mete os Monty Python ao barulho e mais não dizemos. Está a colaborar com Fernando Meirelles (realizador de “Cidade de Deus”) já pela segunda vez. Falta dizer que para esta série não houve financiamento, é um projecto de guerrilha: “Quando se fala da crise e da falta de dinheiro, isto é uma prova de que ainda é possível fazer coisas. O que é preciso é não desistir.”
Sexta-feira, dia 20 de Dezembro, às 21h45 na RTP2. Também nos canais Sapo (Angola, Moçambique, Cabo Verde e Timor) e Meo Kanal.