Freitas da Costa. “Dizer que, ou se pirateia ou não se tem acesso à cultura é um falso dilema”


  Numa altura em que se discute o combate aos crimes cibernéticos e mais concretamente à pirataria de obras, como livros, filmes ou videojogos, o i esteve à conversa com Miguel Freitas da Costa, secretário-geral da APEL e membro da Associação para a Gestão da Cópia Privada, para perceber os efeitos dos downloads ilegais, quando Portugal continua…


 

Numa altura em que se discute o combate aos crimes cibernéticos e mais concretamente à pirataria de obras, como livros, filmes ou videojogos, o i esteve à conversa com Miguel Freitas da Costa, secretário-geral da APEL e membro da Associação para a Gestão da Cópia Privada, para perceber os efeitos dos downloads ilegais, quando Portugal continua a ter uma sociedade pouco sensibilizada para estes crimes, as autoridades estão mal formadas e a lei está desactualizada.

A actual situação do país favorece a impunidade na pirataria de obras?

Este crime afecta toda a gente, desde autores a editores. Pergunta-me se dadas as dificuldades económicas há mais pessoas a recorrer a estas ilegalidades e se os problemas actuais do país contribuem para estes casos. Penso que sim, mas gostaria de começar por realçar a falta de sensibilização das pessoas para este assunto. Num mundo perfeito, as pessoas que fazem downloads ilegais perceberiam que se estão a prejudicar a si próprias e a causar danos a todos os envolvidos na produção da obra, até mesmo aos autores. Portanto estão a ser injustos, porque desfrutam de coisas muito importantes à custa do suor de outras pessoas e podem condenar essas pessoas à fome.

É, portanto, um crime que não é visto como tal pela sociedade. É isso?

Exactamente. Esta é uma questão que já se coloca desde o tempo de Balzac – um dos principais impulsionadores da sociedade de autores em França. Ele comparava a reprovação da sociedade a quem roubava uma carcaça, à satisfação com que assistia à espoliação de um escritor.

Porque não são bens materiais?

Sim, não se consegue perceber que o bem intelectual tem valor patrimonial e que quem o produz tem de ter uma recompensa. É fácil pedir para escrever um texto sem se pensar num pagamento, mas ninguém pede a um sapateiro que lhe dê sapatos de borla. Há uma noção diferente das pessoas no que se refere a bens materiais e à produção intelectual.

A sensibilização pode passar por pôr a nu esse contraste. Lembro-me de uma publicidade nos cinemas no início dos filmes… Esse é o caminho?

Talvez. Acho, porém, que é preciso ter cuidados com os choques. Como os praticantes não têm consciência de que estão a fazer uma coisa assim tão má, a sensibilização que os compara a um ladrão comum pode criar uma repulsa e não passar a mensagem. No fundo, a pessoa pode ficar demasiadamente ofendida por aquilo que julga não ter feito.

Então como deve ser essa sensibilização?

Era importante ver o assunto do ponto de vista mais positivo. Mostrar que é preciso estimular quem produz as obras e que para estimular essas pessoas é preciso serem recompensadas. Tem de se perceber que para piratearem é porque há obras e que no limite pode deixar de haver.

Sente que nos últimos anos esta questão tem sido posta de lado pelas autoridades?

Não consigo fazer essa avaliação. Aliás nunca fui crítico sobre o facto de a cultura deixar de ter um ministério, não acho relevante. Porém, reconheço que não tem havido uma evolução, pelo menos em termos recentes. Há coisas que se discutem há muitos anos e que não têm sido alvo de alterações nos últimos anos. Tem havido até um retrocesso no que se refere à mentalidade das pessoas. Independentemente da actuação das autoridades, corremos o risco de se generalizar o conceito de inocência em relação a práticas que são criminosas.

Mas qual é a importância deste sector para a economia nacional?

Do ponto de vista económico, a produção cultural representa uma parcela quase tão significativa como a do turismo. Talvez a exportação da produção intelectual não tenha é o mesmo peso que tem noutros países, como em França. Neste país, apesar de não ter o domínio cultural que outrora teve, a percentagem dos rendimentos da indústria do livro que são provenientes dos direitos vendidos para o estrangeiro são muito importantes. E em Portugal podem ainda crescer muito.

Deve-se à “ausência” de entidades como o Instituto Camões?

Evidentemente que sim. Mas sublinho também que isto depende de uma certa massa crítica da notoriedade do país e de outros elementos. Hoje em dia essa massa crítica pode encontrar-se no português do Brasil, de Angola, etc…

Voltando um pouco atrás, onde começa, para si, o crime cibernético?

Percebo o que me pergunta. A fronteira do crime depende da lei, mas podemos é discutir se está ou não bem feita. E não há dúvidas que privar editores e autores do fruto do seu trabalho é algo que só pode ser criminoso. São muitas pessoas que perdem com a divulgação e partilha ilegal de obras, basta ver, por exemplo, a ficha técnica de um filme…

Mas essa actividade prejudica apenas os autores ou a qualidade da cultura em geral?

Como esta produção é também construção da cultura nacional, estamos também a lesar a pátria. Estamos a minar o futuro de uma série de actividades que fazem parte da nossa cultura, da nossa identidade. Isso não pode ser bom. Aliás, o direito de autor está incluído nos direitos do homem, é um direito fundamental e que é aceite há muitos anos. O autor é que decide como é que quer exercer esse direito. Podem até produzir para oferecer se assim o desejarem. Não posso é ser eu a roubar–lhes o que eles fizeram e de que querem ser recompensados.

Tendo em conta a sua experiência e os últimos casos denunciados de pirataria informática, as autoridades nacionais estão preparadas para lidar com este tipo de fenómenos?

É uma questão de crença própria dos agentes: a sociedade continua a não estar sensibilizada e essa sociedade inclui toda a gente. As autoridades têm de ter consciência do que é que está em jogo para poderem agir e muitas vezes são os próprios executores da lei que a desvalorizam e que por isso acabam por quebrá-la. Acham tudo isto um assunto menor e por isso é que defendo a sensibilização de todos. Inclusivamente a das autoridades.

Falta sensibilização, ou também formação?

As duas coisas. Esta não é uma matéria simples, tem havido já algumas iniciativas para pôr fim a estes problemas. Actualmente, ninguém ignora que há matérias que são difíceis de perceber e interiorizar neste campo. Estes fenómenos massificaram-se e apesar de aqui há uns anos não serem um problema, hoje são-no.

Como assim, só é grave quando passam a ser muitos a fazer?

Sim, é tal e qual o consumo de drogas. Só passou a ser um problema social quando passou a ser massificado. Quando havia uma pessoa ou duas que pirateavam obras estávamos bem. O problema é que isso se generalizou.

A divulgação de dados de maçons ou árbitros por hackers têm merecido sempre a atenção da polícia. Já a partilha ilegal de obras nem sempre é investigada. Os crimes informáticos não deviam ser todos tratados com o mesmo rigor?

Admito que as autoridades tenham estado mais atentas a outros fenómenos que não o da pirataria, talvez pela urgência de cada um dos casos. Porém, acho é que tem de haver consequências para todos os crimes: quer para os hackers, quer para quem coloca ilegalmente obras na net.

Mas também sente essa diferença no tratamento dos diversos crimes, por parte das autoridades?

Em Portugal a pirataria é já uma realidade de massas?

De certo modo, sim. A Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) encomendou um estudo ao Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), há pouco tempo, em que 90 e tal por cento dos inquiridos garantiam que pirateavam e fotocopiavam obras…

E não haverá uma ligação entre esses crimes e as condições socioeconómicas de quem o faz?

Penso que não. É evidente que quem tem mais dificuldades tem mais desculpa para o fazer, mas quem tem recursos também o faz. Se podem ter uma obra sem pagar e sem serem censurados, para quê pagar?!

É preferível uma sociedade privada da cultura, a uma que precisa de fotocopiar e piratear para aceder à cultura?

Dizer que, ou se pirateia, ou não se tem acesso à cultura é um falso dilema. Neste momento há dezenas de milhar de obras grátis à disposição de quem as quiser ler. Há bibliotecas, há projectos na internet que põem à disposição das pessoas obras de domínio público e transcritas em formato digital. Posso não ter dinheiro para comprar todos os livros que me apetece, mas não significa que não tenha acesso à cultura. Tenho à minha disposição Aristóteles, autores do século XIX. Posso ir a museus, ver programas de televisão, etc…

No que respeita aos livros escolares há quem opte por fotocópias. Aí uma criança não pode levar obras de Aristóteles, que são grátis, em vez do seu manual…

Concordo, mas nesses casos há entidades que distribuem, que ajudam famílias que não podem comprar livros. Não sei se chegam a todo o lado, mas têm-se procurado soluções. O que não é solução é fazer fotocópias, porque isso é matar a indústria dos livros escolares, já para não dizer que as fotocópias não são a mesma coisa. Não se deve tentar resolver tudo à custa dos autores, ou seja, tentando matar a galinha dos ovos de ouro… A solução tem de ser encontrada a jusante e não a montante.

Um agente pode agir se num centro de cópias verificar que está a ser copiada integralmente uma obra?

Pode. Aliás, houve ainda há poucos dias uma apreensão em Lisboa numa loja de fotocópias que tinha várias obras fotocopiadas na íntegra.

E ao cidadão que se dirigiu à loja para fazer fotocópias, o que lhe pode acontecer?

É um crime, mas neste caso iria mais pelo enriquecimento ilícito do centro de cópias – que se está a apropriar de uma propriedade intelectual para fazer negócio.

Mas o cliente não está também a cometer um crime?

É diferente. O acto do cidadão pode ser considerado como um crime por inadvertência. A culpa é desses estabelecimentos que sabem o que não podem fazer…

Mas fazem-no, até em centros de cópias de universidades. Não é um contra-senso?

É. E estamos a tentar fazer com que isso deixe de acontecer. Os reitores estão aliás já sensibilizados e espero que venham a tomar medidas nesse sentido.

O que Portugal precisa para se aproximar dos parceiros europeus no que respeita ao combate a estes crimes?

Alguma vez fez um download ilegal da internet?

Por acaso não!