No dia 24 de Abril de 1974, andou a montar as transmissões no Quartel da Pontinha. Esperou pelo fim da tarde, levava consigo os rádios que tinha roubado no depósito do material de transmissões. Garcia dos Santos tinha, na altura, 38 anos – era mais velho que o comum dos capitães do MFA. Depois, foi secretário de Estado, chefe da Casa Militar do Presidente da República (Ramalho Eanes) e o seu último cargo público foi o de presidente da Junta Autónoma das Estradas, no tempo do governo Guterres, onde denunciou uma teia de corrupção. Hoje, acha que não há uma classe política capaz, que vivemos ainda com a pesada herança do passado, quando o “paizinho” (Salazar) “tratava de tudo”. Nenhuma geração ainda “aprendeu” a viver em democracia. “O meu pai não aprendeu, eu não aprendi, eu não sei nada, não vou ensinar nada aos meus filhos”. E “são três gerações”
Foi um dos operacionais do golpe do 25 de Abril. Como é que lá foi parar? Lembra-se de como chegou à conspiração?
Lembro-me de tudo perfeitamente. Foi assim: eu sou de engenharia, fiz a minha vida militar nas transmissões. Na altura as transmissões pertenciam à engenharia. Hoje estão separadas. Estava na Escola Prática de Engenharia em Tancos em 1961 quando fui mobilizado para a Guiné. Quando vim, fui para uma unidade que há ali em cima em Sapadores, na Graça, que na altura era o batalhão de telegrafistas. E fiz aí toda a minha vida. Enquanto estive ali, fiz uma especialidade em guerra electrónica. Fiz essa especialidade na Itália, depois estive na Inglaterra, na Bélgica, na Alemanha. Estive nessa unidade durante 12 anos e a dada altura, já estava cansado daquela vida, que era muito dura. Veja que no tempo da guerra colonial o essencial para nós era termos ligação com as forças que estavam em Macau, Timor, na Índia, Angola, Guiné, Moçambique. Era ali que se concentravam todas as transmissões, imagine o trabalho. A certa altura disse: “Estou farto disto”. E concorri a professor na Academia Militar. E estava na Academia Militar quando se começou a criar o chamado movimento das Forças Armadas. Eu já era um bocadinho mais velho do que essa rapaziada toda…
Mas não muito…
Eu tinha nessa altura 38 anos. Eles eram rapazes dos vinte e muitos, trinta e muito poucos… Começaram lá com aquelas reivindicações salariais e a partir de certa altura entraram na conspiração política. Naquela altura era também professor na Academia Militar um oficial de engenharia chamado Fisher Lopes Pires. É mais velho do que eu três ou quatro anos. Esse rapaz – rapaz, na altura – tinha uma relação próxima com os capitães que estavam a congeminar o golpe. A certa altura, eles chegaram à conclusão que lhes faltava alguém das transmissões. E falaram ao Lopes Pires se arranjava alguém. Eu disse sim senhor, é para já. Eu tinha um passado, não digo de carácter político, mas de oposição ao anterior regime. O meu pai, mãe, tios, a minha família era toda da oposição ao regime anterior. E eu desde miúdo assistia àquelas tertúlias que eles faziam – também não passava disso – às discussões que tinham… fui educado nesse meio. Quando me falaram nisso, alinhei. Depois, quando a certa altura comecei a participar nas reuniões que eles faziam. A dada altura, decidiu-se passar à acção armada e o Otelo é que tomou conta da parte operacional. Como eu também conhecia bem o Otelo, que também era professor na Academia Militar nessa altura, falou-me para preparar a parte das transmissões do golpe militar. Eu disse “está bem, faço”. Era a minha especialidade, eu era professor dessas coisas.
E quando foi essa conversa com o Otelo?
Passa-se tudo já depois do golpe das Caldas que deu para o torto…
E o golpe das Caldas não era um teste?
Não, não. Há quem tenha essa tese, mas não foi. Foi uma tentativa de avançar com o golpe que não foi devidamente preparada. A partir daí resolveu-se fazer as coisas como deve ser e o Otelo foi encarregado de preparar a ordem de operações. Isto passa-se entre 16 de Março e princípio de Abril. A partir da ordem de operações de Otelo, eu delineei as transmissões. Tive que ver quem tinha o material, o que era preciso, etc… E uma das coisas que era preciso fazer era saber onde é que se ia instalar o posto de comando que iria dirigir toda a operação. Aquilo foi uma coisa feita com cabeça, tronco e membros. E então decidiu-se que o posto de comando iria para o Regimento de Engenharia, na Pontinha. E isso porquê? Porque fazia parte do nosso grupo um rapaz que era o Luís Macedo, capitão de engenharia, que conhecia muito bem o sítio, que era óptimo porque tinha espaço suficiente, o comandante era uma pessoa também, chamemos-lhe assim, do reviralho, como se dizia na altura, mas não sabia nada do que se estava a passar. E portanto quando foi o dia 24 de Abril, foi quando se começou a instalar lá o posto de comando. Havia lá um barracão pré-fabricado num dos espaços disponíveis e foi para aí que a gente foi. No dia 24 à tarde fui lá montar as antenas e levei para lá os postos de rádio que eram precisos que roubei do depósito de material de transmissões. Depois vim para casa. Fui para lá à paisana.
Já era casado na altura?
Já.
Mas não disseram nada às mulheres…
Nada, nada, nada. A ninguém.
Como é que conseguiu esconder da sua mulher durante meses…
Sabe que estas coisas… A vida dos quartéis são vinte e quatro horas por dia. E então na minha área tínhamos de estar a postos 24 horas por dia. E portanto não levantou suspeitas nenhumas. No dia 24 montou-se lá aquilo tudo, que foi rápido de montar, à tarde, depois do chamado toque de ordem, que é quando o quartel acaba o serviço, por volta das cinco da tarde, quando sai o pessoal todo que vai jantar fora. É uma espécie de recolher. E quando o quartel fica só com o pessoal que está de guarda e de sentinela. Montámos aquilo tudo, sem que ninguém desse por nada, evidentemente, depois ainda vim para casa tranquilamente, fardei-me, e depois só saí depois daquela canção do Paulo de Carvalho.
E como vê a democracia hoje?
Ainda convivemos com a pesada herança do passado. Nós tínhamos antigamente o paizinho que tratava de tudo…
Quem era o paizinho?
Era o Salazar! O antigo regime era o Salazar que tratava de tudo, que concentrava tudo na sua pessoa e na sua elite. E ninguém fazia nada. Isso dá como consequência o quê? Primeiro, não há preparação nenhuma, não há uma classe política capaz. Antigamente, havia os velhinhos da oposição ao regime que de facto eram pessoas intelectualmente e culturalmente capazes. Essa geração desapareceu. E o que é que nós temos hoje? Zero! A minha geração não aprendeu, a geração dos meus pais não aprendeu, eu não sei nada, não vou ensinar aos meus filhos. Isso são três gerações…
Não aprendeu o quê? Não aprendeu a democracia?
Nada! Não aprendi a democracia, não aprendi a gerir nada, não aprendi a consciência política que é das coisas essenciais para um cidadão. Nada disso existe.
Não havia consciência política no anterior regime e continua a não haver?
A pouco e pouco vai-se criando essa consciência política. Por necessidade, alguns vão trazendo lá de fora alguns conhecimentos… Mas até que se tape esse buraco vai demorar um certo tempo. São três gerações, pelo menos. Por isso, os nossos políticos, a nossa classe política são uns garotos, nunca fizeram nada na vida…
Está a falar de Pedro Passos Coelho, António José Seguro?
Todos eles, todos eles! Responda-me só a isto: quem é que vê, no nosso horizonte político, capaz de deitar a mão a isto e pôr isto a funcionar como deve ser? Não há! Eu não vejo ninguém. Tenho perguntado isto a dezenas de pessoas e ninguém me diz “o salvador da pátria é…”. Salvador com as devidas cautelas, não estou a falar em ditaduras, não é essa de forma nenhuma a minha ideia. Agora, uma democracia exige disciplina, rigor, planeamento e nós não temos nada disso!
Mas o actual Presidente da República…
Não me fale desse gajo! Não me fale nesse gajo!
Mas houve uma altura em que houve pessoas que acreditaram que ele podia ser esse salvador…
Mas quem é que acredita nesse senhor?
Alguns desses valores costumam ser associados a Cavaco Silva…
As falhas! As falhas! Ele acabou com as pescas, acabou com o mar, acabou com a agricultura! E agora é o defensor dessas coisas todas. Veja a contradição da pessoa! É licenciado em economia, foi ministro, foi primeiro-ministro. E o que é que ele fez? Destruiu tudo isto! Toda a situação em que estamos hoje nasce com ele. E ele nesta altura em que devia ter uma atitude firme, dar dois murros na mesa, dizer “o país está primeiro que tudo o resto, acabaram as querelas partidárias, vamos pôr o país a funcionar”. Que é que ele faz? Zero! Julgo que ninguém tem argumentos para contrapor a isto que eu estou a dizer. O Presidente da República é o primeiro responsável por isto tudo e não faz nada para que isto se corrija.
Mas o Presidente não tem muitos poderes…
Tem todos os poderes! Tem a bomba atómica, que é a dissolução da Assembleia da República, mas não é preciso ir aí. Fui cinco anos chefe da Casa Militar do Presidente da República, sei muito bem como era o ambiente naquela casa e como se viviam estas coisas todas. Se fosse preciso dar dois murros em cima da mesa, o Eanes dava. E punha o dedo no nariz daquela gente! Este gajo não põe, de certeza absoluta! E ainda por cima é um pateta que tem medo de tudo.
Uma coisa é não conseguir parar determinados fenómenos, outra é beneficiar deles. Quando critica Cavaco Silva é por não ter conseguido enfrentar determinadas situações?
Claro! Não conseguiu porque não é capaz.
O senhor general continua a ter uma relação muito próxima do general Ramalho Eanes?
Mais ou menos. Digo mais ou menos porque o Eanes, ao contrário do que fazia sempre quando tinha que exonerar alguém de qualquer cargo, antes de assinar o decreto da exoneração perguntava sempre ao governo: e o que é que fazem a este gajo? E a mim não fez. Não sei se se pode dizer que me deixou cair ou não, se se esqueceu. Nunca discuti isso com ele nem quero discutir.
Mas ainda são amigos, encontram-se?
Sim. Não é uma relação tão próxima como já foi, mas é uma relação razoável, se assim se pode dizer.
Mas Eanes é dos políticos do pós-25 de Abril com que mais se identificou?
Claro! O 25 de Novembro foi feito com ele!
Mas como é que viu o surgimento do PRD (Partido Renovador Democrático criado à sombra de Ramalho Eanes)
Mal. Eu conheço o Eanes como a palma da minha mão. Ele tinha essa ideia de fazer um partido e eu tive discussões terríveis com ele. Disse-lhe: “Ó pá, não te metas nisso, porque tu não tens feitio para políticas de partido”. Ele não tem feitio para ser político num partido! Ele pode ter sido um excepcional Presidente da República, que foi, mas ser líder de um partido não é para ele. Tivemos discussões terríveis, longas, a passear naqueles jardins do Palácio de Belém. Ele a querer montar o partido político e eu a dizer-lhe que não. Mesmo assim, foi. E ainda por cima escolheu uma pessoa, o senhor Hermínio Martinho [primeiro líder do PRD] que é outra nódoa completa. Aquilo só podia dar buraco, como deu.
E o general Eanes saiu um bocado amachucado depois disso.
Completamente! E ainda por cima o Eanes tem uma característica muito pessoal: com aquela sua cara (faz um trejeito a explicar a dureza da face do general) não sabe dizer que não! E claro que isso não significa que ele não tenha sido um militar fora de série, cruz de guerra, falta-lhe um bocado de um pé, etc. etc. É um homem excepcional em termos militares. Mas como indivíduo para dirigir, não sabe dizer que não. E um homem que vai para a frente de qualquer coisa tem que dizer que não muitas vezes. E ele não é capaz!
Os meus colegas mais novos perguntam-me muitas vezes se o Eanes é de esquerda ou de direita. O que é que acha?
Eu acho que o Eanes é um homem de centro-esquerda.
Mas apoiou o Cavaco.
Claro! Eu disse-lhe n vezes… Não ligues a esse gajo! O Eanes é uma pessoa que quando é amiga de alguém, primeiro que desfaça a opinião sobre essa pessoa, é muito difícil.
Há muita gente que critica o facto de, depois da revolução, os militares terem demorado algum tempo a regressar aos quartéis… Acha que saíram no tempo certo, com a revisão constitucional de 1982, ou poderiam ter ficado mais algum tempo?
Uma das coisas que constava no programa do movimento das Forças Armadas era a entrega do poder à sociedade civil. Era um compromisso que os militares tinham assumido e que tinham que cumprir, como cumpriram. Se me perguntar se fizeram bem ou mal, eu digo-lhe: se calhar fizemos mal. Mas levanto uma ressalva: podíamos ter caído outra vez numa ditadura militar. E se alguns tinham consciência de que isso podia ter acontecido, outros podiam não ter. Uma coisa que às vezes passa pela cabeça das pessoas é a bebedeira do poder. O poder cega. Ao acontecer isso a determinadas pessoas, podíamos ter caído outra vez numa situação de ditadura. Acho muito bem que as coisas tenham sido feitas como foram. Provavelmente, foi entregue cedo demais. Talvez as coisas devessem ter levado mais algum tempo para que se pudesse pôr alguma disciplina nestas coisas. Mas os militares também não sabem nada de política! E podiam ter cometido erros muito graves! De todos os militares que passaram por aquelas fases, a única pessoa que tinha de facto um extraordinário conhecimento político era o Melo Antunes. No primeiro ano em que estivemos na escola do Exército na Amadora, a cama dele era ao lado da minha. Foi um ano inteiro que vivi com ele lado a lado, era da minha turma, comíamos na mesma mesa. Conheci o Melo Antunes como as minhas mãos. Era um homem extraordinário, com 18 anos tinha uma cultura política como eu nunca vi ninguém ter! Era um homem com uma cultura espantosa, ele nem queria ser militar, foi militar porque as necessidades da família o obrigaram. Era um homem fora de série.
Quando diz que havia pessoas dentro dos militares que poderiam ter decidido por uma ditadura está a pensar em quem?
Não estou a pensar em ninguém! Mas é a nossa maneira de ser: nós somos disciplinados por natureza, queremos que as coisas sejam rigorosas. E se há pessoas que têm uma certa contenção neste tipo de feitio, há outras que não têm. Vou fazer uma confissão que nunca fiz: eu já senti o que é a bebedeira do poder. Uma pessoa quando está a falar às massas, quando está perante uma plateia ou uma assembleia, às tantas sente que tem na sua mão todo o poder que passa por ali. . Eu já senti isso. E a certa altura disse: “Eh lá, onde é que tu vais”. É uma coisa que sobe à cabeça. Se um tipo não se domina, às tantas vai por aí fora.
Mas como é a bebedeira do poder? Pouca gente tem coragem de falar nisso…
Já senti isso uma ou duas vezes. É assim: quando a gente está a falar, há uma plateia com duzentas pessoas, e começa a entusiasmar-se… Às tantas uma pessoa começa a sentir-se rei e senhor daquilo tudo. É o tipo que manda, o tipo que faz. E isso nalgumas pessoas começa a dominar as suas personalidades. É preciso muito cuidado.
Há muita bebedeira do poder por aí?
É capaz de haver. Mas de uma total vacuidade. Que é que a gente vê hoje nos nossos políticos? É só garganta! Nunca fizeram nada na vida! Falam, falam, falam, mas mais nada. São completamente vazios. É por isso que eu digo que não vejo no horizonte ninguém capaz de pôr isto a funcionar como deve ser.
Mas estamos melhor do que há 38 anos…
Claro que sim! Mas vamos pagá-lo muito caro. Nós estamos a viver do dinheiro que vamos buscar lá fora. E depois como é que é? Como é que a gente o vai pagar? O que é a gente está a fazer para preparar o futuro? É que a gente não pode viver só do dinheiro que vai buscar lá fora. Temos que pensar o que vamos fazer, como é que está a nossa economia. Há alguma coisa que esteja a ser preparada no sentido de pôr a nossa economia a funcionar? Zero! Quer outro exemplo? As auto-estradas, as Scuts. Eu tive uma conversa com o engenheiro Cravinho em que ele me disse que ia pôr a funcionar as Scuts. Eu disse: “Ó senhor ministro isso é um tremendíssimo disparate!”. A Scut é uma invenção inglesa, ao fim de pouco tempo os ingleses puseram aquilo completamente de parte, por causa do buraco que era previsível. Mas disse-me que o assunto estava exaustivamente estudado sob todos os aspectos, técnico, financeiro. Está à vista o buraco que são as Scuts.
E as PPP?
É a mesma coisa.
Quando saiu da JAE denunciou uma situação generalizada de corrupção. Acha que as PPP também se integram nessa situação? O Tribunal de Contas diz que houve contratos que lesaram o interesse público…
Tem que se admitir a possibilidade de haver ali corrupção, e da forte. Como é que se atribui a uma determinada entidade certos privilégios que não seriam naturais? É porque se calhar há alguém que se locuptou com alguma coisa. Infelizmente, outra coisa que funciona mal no nosso país é a justiça. Nunca chega até ao fim.
Foi colega do eng. João Cravinho no Técnico…
Foi por isso que ele me chamou para ir para a Junta. Sabe o meu feitio e quis que eu limpasse a casa.
Mas o que é que aconteceu? O eng. João Cravinho chama-o para limpar a casa, o senhor limpa, e depois zangam-se. O que se passou?
Fomos colegas no Instituto Superior Técnico. Houve um jantar de curso e nesse jantar o Cravinho a certa altura chama-me de parte e diz: “Tens algum tempo livre?”. E eu disse: “Tenho, mas porquê?”; “Eu precisava de ti para uma empresa”; “Que empresa?”; “Agora não interessa, a gente daqui a uns tempos fala”. Passado uns tempos chamou-me e disse-me: “Eu quero que vás para a Junta Autónoma das Estradas, mas não digas a ninguém que o gajo que lá está [Maranha das Neves] nem sonha”. O Cravinho deu-me os 10 mandamentos do que eu precisava de fazer na Junta, limpar a casa, obras que era preciso fazer, etc. Entretanto, comecei a conhecer a casa, dei a volta ao país todo e um dia disse-lhe: “Há aqui uma série de coisas que é preciso fazer e há 11 fulanos que é preciso pôr na rua”. Ele retorceu-se, chamou-me daí a dois dias, disse que era muito complicado. O problema é que era através de uma das pessoas que eu queria pôr na rua que passava o dinheiro para o PS.