Fuzileiros. Cuidado, há lodo no cais e malta enterrada até ao joelho


Está escuro, abafado e apertado. Rastejo, pois nem de gatas lá caibo. Ouço vozes longínquas e cheira a terra húmida. Chego a uma bifurcação sem ver um palmo. Por vezes, as vozes parecem dizer o meu nome, mas nem por isso me guiam. Escolho o caminho da direita, mas a minha testa informa-me que estou…


Está escuro, abafado e apertado. Rastejo, pois nem de gatas lá caibo. Ouço vozes longínquas e cheira a terra húmida. Chego a uma bifurcação sem ver um palmo. Por vezes, as vozes parecem dizer o meu nome, mas nem por isso me guiam. Escolho o caminho da direita, mas a minha testa informa-me que estou num beco sem saída. Não há espaço para dar a volta e vai ter de ser o meu rabo a guiar- -me, algo que nunca na vida me lembrei que podia ter de acontecer. Viro à esquerda e, finalmente, acerto na direcção a seguir. Pouco depois vejo luz e respiro ar fresco: cumpri o temível túnel da Escola dos Fuzileiros, com jornalistas e militares a congratular a minha chegada. Não que me adorem ou sintam saudades, mas sou o último e já estamos atrasados, algo que provoca comichão a qualquer oficial militar.

Sinto-me responsável por parte do atraso. É que à hora combinada entre os jornalistas e a organização desta visita ao Vale do Zebro para brincar aos “tropas”, eu ainda estava a tentar estacionar o carro – que depois até acabou rebocado, pois é sabido que a pressa é inimiga da qualidade. Já no caminho, sem passar dos 90 km/h, os três jipes perderam-se. E após as boas-vindas do comandante da escola, para desespero do oficial responsável pelas operações, pedi um café sob o argumento oficial de que “ah, sempre ouvi dizer que a bica dos fuzas é muito boa”. O argumento não era lá muito convincente , mas o café estava óptimo e os “fuzas” são boa companhia, mesmo quando não apreciam o termo “fuzas” e fiquem num incómodo silêncio a ver-nos tomar o café. Com esta minha entrada, o dia tinha tudo para correr bem.

Qualquer actor sabe que o figurino é uma ajuda preciosa ao papel, e nem isso faltou. A prova das fardas foi digna de um Zebro fashion, com os jornalistas (eles e elas) a exibir calças XXL, T-shirts justas e botas de tamanho único à medida que saíam das camaratas. Nem descrevo a luta que foi atinar com o cinto, por um triz não me atrasei mais.

Depois foi só acção. Divididos em dois pelotões, calhou-me o pelotão Bravo, partilhando esta “guerra” com o “Jornal de Notícias”, as revistas “GQ”, “Maxim” ou mesmo a “Ana” (não, lamento, não era a “Ana + Atrevida”).

liderança O primeiro exercício era um trabalho em equipa, sob os auspícios organizacionais de John Adair, um senhor das ciências sociais que eu desconhecia em absoluto, mas que norteia, e muito, a abordagem das instituições militares à questão da liderança. Até criaram, em 1993, o Departamento de Formação em Comportamento Organizacional, agora liderado pelo comandante Lourenço Afonso – que, por acaso, foi um dos militares que naquela manhã me fuzilou com o olhar por liderar a revolta protocolar do café e contribuir para o atraso.

Teorismos à parte, que a malta está aqui para se divertir, a tarefa consistia em organizar o pelotão de forma a apagar um incêndio num hospital. Para tal, tínhamos de atravessar um perigoso rio, improvisando um caminho de tábuas a colocar nos pilares que restavam da ponte original que, como devem imaginar, fora “destruída por fogo inimigo”. Tudo isto, claro, no reino do faz-de-conta: o perigoso rio era a caruma dos pinheiros sob os nossos pés e os pilares eram uns minitroncos de madeira aleatoriamente dispostos. Até os extintores estavam vazios.

Depois de escolhido o “comandante” entre nós, tivemos 16 minutos para levar a cabo a tarefa, com o objectivo primordial de sermos organizados. A surpresa foi que, aqui, os jornalistas não se atropelaram uns aos outros nem trocaram entre si teorias aborrecidas sobre a crise europeia; e nem sequer discutiram como se deve chamar o segundo filho de Luciana e Djaló (Djalyanó?).

Seguiu-se uma marcha, caótica para os padrões castrenses, finalizada com dois exercícios: a paliçada e a rede de abordagem. A paliçada, uma espécie de protecção de madeira, foi ultrapassada sem dificuldades. Mas se em linguagem civil a expressão “rede de abordagem” remete para engates e afins, em linguagem militar não é assim tão diferente: significa trepar seis metros de uma rede que não pára quieta, atentos a onde se põe os pés e, no auge do jogo de cintura, manter o equilíbrio sem esmagar nada que nos seja precioso. Aconteceu a alguns, coitados.

Que lodo de cena Mas o prato forte ainda estava para vir. Aliás, aquilo era mais uma travessa, para usar a proporção certa. É a mítica pista de lodo, “o tratamento da pele”, como lhe chamam os fuzileiros: meio quilómetro de descampado em tons de verde-pasto à mistura com o castanho do barro, sedutor e repulsivo. E o cheiro, senhores, o cheiro…

A entrada faz-se por uma tábua comprida e estreita em que ficamos a cerca de dois metros de altura de um charco cuja profundidade é ditada pela maré. Verificadas as condições de segurança, a ordem era saltar e mergulhar na água turva até à cabeça. Passado o charco e o choque, com a farda a pingar água castanha, iniciou-se a minha mais bizarra experiência pedestre. Estão a ver as imagens infelizes dos derrames de petróleo no mar que, quando chegam à costa, deixam tudo viscoso e negro, inclusive gaivotas? Ali fomos nós as gaivotas.

Caminhar no lodo, ou melhor, tentar manter uma passada coerente quando as pernas se enterram até aos joelhos é obra. Os pés afundam-se de tal forma que, antes de entrar, foi-nos recomendado apertar bem as botas, sob pena de elas serem tragadas por uma pasta de água e terra que parece ter prazer em puxar-nos para baixo. Em vários momentos, até os braços enterramos, pois o equilíbrio no lodo é uma dança que não se aprende à primeira. E juro que a terra faz barulhos intestinais por cada pé que arrancamos ao lodo.

Não fizemos qualquer dos dispositivos montados ao longo do percurso, por nítida falta de aptidão física. O lodo já nos dava porrada suficiente. Um dos fuzileiros conta que os recrutas demoram cerca de hora e meia a cumprir a pista de lodo e que, por vezes, fazem-na de madrugada, sob um qualquer castigo.

Quando se chega ao fim respira-se de alívio, mas os fuzileiros são uma caixinha de surpresas. É que lama e camaratas não conjugam bem, sobretudo para quem as limpa, pelo que todos passámos pelo chuveiro de água gelada, de forma a tirar o “crude” de cima de nós.

Claro que depois nos foram concedidos um indescritível banho de água quente e as nossas roupas. Seguiu-se um vol–au-vent de camarão e um arroz de pato, fechando com parfait de nozes, servido na messe dos oficiais. Não é só o café que ali é bom. Quanto ao cheiro, ficou agarrado à pele.

No regresso, até os jipes pareciam confortáveis. Ao todo chegámos a Lisboa com três horas de atraso. Um pouco antes e teria chegado a tempo de evitar que a PSP levasse o meu carro. Que lodo.