A humilhação de todos os dias


Somos todos imigrantes sem direitos porque o futuro de uma sociedade é definido pelo grau de democracia e de solidariedade que tem para com os seus membros mais desprotegidos


O título deste escrito é tirado de um texto do filósofo francês Alain Badiou acerca da vida do seu filho adotivo e sobre o que significa ser negro ou ter ar de estrangeiro em França.

“Tenho um filho adotivo de 16 anos que é negro. Chamemo-lo Gérard. Ele não está incluído nas ‘explicações’ sociológicas e miserabilistas habituais. A sua história passa-se simplesmente em Paris. Não consigo contar as vezes que foi controlado na rua. Inumeráveis, não há outra palavra. As detenções: seis! Em 18 meses… Eu chamo ‘detenções’ quando o levam algemado à esquadra de polícia, quando o insultam, quando o amarram a um banco, quando fica assim durante horas, algumas vezes detido um ou dois dias. Para nada.” Badiou acrescenta como o pior da perseguição são os pormenores e como foi a última vez que detiveram o filho sob uma falsa acusação. Simplesmente porque o amigo era francês de origem árabe, e ele negro. E todos tinham a cor que normalmente têm os pobres. Nessa ocasião, os polícias anunciaram-lhes devidamente o que lhes iam fazer: “Dois dos ocupantes lançam-se sobre Gérard e Kemal, atiram-nos ao chão, algemam-nos com as mãos atrás das costas, depois empurram-nos contra uma parede. Insultam-nos e ameaçam-nos: ‘Paneleiros de merda! Idiotas!’ Os nossos dois heróis perguntam-lhes o que fizeram. ‘Vocês sabem muito bem! Virem-se imediatamente (colocam-nos, sempre algemados, de frente para as pessoas que passam na rua), para que todo o mundo possa ver quem vocês são e o que fizeram!’. Reinvenção do pelourinho medieval (uma meia hora de exposição), mas, novidade, antes de qualquer julgamento, e mesmo de toda a acusação, vem na carrinha. ‘Vão ver o que é levar na tromba, quando estiverem sós’. ‘Gostam de cães?’ ‘Na esquadra não haverá ninguém para vos ajudar.’”

Não gosto de ter de explicar com dados lógicos que o racismo e o sentimento anti-imigrante são prejudiciais, para uma imensa maioria das pessoas, do ponto de vista económico e social. Não porque não haja explicações que sustentem as evidências, mas porque mesmo que não as houvesse, este tipo de situações não deixariam de ser totalmente injustos e intoleráveis. É verdade que estudos da OCDE, elaborados em 2014, que se debruçaram sobre as previsões económicas até 2060, concluíram que se a Europa e os EUA não absorverem, cada uma, 50 milhões de imigrantes, não será possível manter o crescimento económico e ter gente suficiente para coletar e garantir as despesas do Estado. Nessa altura os Estados da Europa entrarão em falência. Apesar destes dados económicos, o velho continente não consegue receber um milhão de refugiados sem que, em clima de crise política e económica, cresça a xenofobia e se instale o pânico generalizado.

É óbvio que o racismo e a xenofobia são drogas duras que servem para disfarçar a situação existente deixando tudo exatamente na mesma. Os Trumps desta vida não pretendem democratizar o planeta e combater as desigualdades crescentes. O que eles querem é garantir o poder e o dinheiro para os si. Repetindo com novas roupagens aquilo que tem sucedido até agora. A única forma de combater a sua ascensão é, combatendo o poder político existente, garantir dar mais poder a todas as pessoas que vivem e trabalham na Europa. Só uma agenda que dê direitos de cidadania a toda a gente pode combater de uma forma eficiente a deriva ditatorial do capitalismo.

Muitos estudos económicos preveem que atingiremos um ponto de crise e de rutura por volta de 2050. O poder das atuais elites e as alternativas, no seu seio, de extrema-direita que se estão a apresentar apenas vão criar a catástrofe. “Em ambos os cenários, os graves impactos das alterações climáticas, o envelhecimento demográfico e o crescimento da população atingirão o seu ponto crítico por volta do ano 2050. Se não conseguirmos criarmos uma ordem global sustentável nem restaurarmos o dinamismo económico, as décadas que se seguirem serão caóticas.”, afirma o politólogo Paul Mason, no seu “Pós-Capitalismo”. O crescimento das desigualdades, a destruição ecológica do planeta e o aquecimento global, a privatização do genoma humano e da vida, o aumento da apropriação privada do conhecimento e os maiores entraves à sua livre utilização, tornam urgentes a existência de uma alternativa. Qualquer novo caminho só passará por dar poder e direitos a todas as pessoas, independentemente da sua origem e cor de pele. Só poderá haver uma alternativa política que combata o racismo e a xenofobia. Não haverá nenhuma mudança para uma sociedade mais justa que seja feita a partir da discriminação. Impedir o crescimento dos populismos antidemocráticos e que pretendem manter as desigualdades não será feito pela adoção da agenda racista. É preciso separar o trigo do joio, separar a verdadeira contestação de um sistema de desigualdades, da retórica dos seus falsos oponentes fascistas. Eles são mais do que a outra face de uma mesma moeda. Eles são a continuação dos poderosos do costume por outros meios. Como escrevia Badiou na sua carta: “Um Estado para o qual o que se chama de ordem pública não é mais do que a junção da proteção da riqueza privada e dos cães lançados sobre as origens operárias ou sobre os provenientes do estrangeiro é pura e simplesmente desprezível.”

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Somos todos imigrantes sem direitos porque o futuro de uma sociedade é definido pelo grau de democracia e de solidariedade que tem para com os seus membros mais desprotegidos


O título deste escrito é tirado de um texto do filósofo francês Alain Badiou acerca da vida do seu filho adotivo e sobre o que significa ser negro ou ter ar de estrangeiro em França.

“Tenho um filho adotivo de 16 anos que é negro. Chamemo-lo Gérard. Ele não está incluído nas ‘explicações’ sociológicas e miserabilistas habituais. A sua história passa-se simplesmente em Paris. Não consigo contar as vezes que foi controlado na rua. Inumeráveis, não há outra palavra. As detenções: seis! Em 18 meses… Eu chamo ‘detenções’ quando o levam algemado à esquadra de polícia, quando o insultam, quando o amarram a um banco, quando fica assim durante horas, algumas vezes detido um ou dois dias. Para nada.” Badiou acrescenta como o pior da perseguição são os pormenores e como foi a última vez que detiveram o filho sob uma falsa acusação. Simplesmente porque o amigo era francês de origem árabe, e ele negro. E todos tinham a cor que normalmente têm os pobres. Nessa ocasião, os polícias anunciaram-lhes devidamente o que lhes iam fazer: “Dois dos ocupantes lançam-se sobre Gérard e Kemal, atiram-nos ao chão, algemam-nos com as mãos atrás das costas, depois empurram-nos contra uma parede. Insultam-nos e ameaçam-nos: ‘Paneleiros de merda! Idiotas!’ Os nossos dois heróis perguntam-lhes o que fizeram. ‘Vocês sabem muito bem! Virem-se imediatamente (colocam-nos, sempre algemados, de frente para as pessoas que passam na rua), para que todo o mundo possa ver quem vocês são e o que fizeram!’. Reinvenção do pelourinho medieval (uma meia hora de exposição), mas, novidade, antes de qualquer julgamento, e mesmo de toda a acusação, vem na carrinha. ‘Vão ver o que é levar na tromba, quando estiverem sós’. ‘Gostam de cães?’ ‘Na esquadra não haverá ninguém para vos ajudar.’”

Não gosto de ter de explicar com dados lógicos que o racismo e o sentimento anti-imigrante são prejudiciais, para uma imensa maioria das pessoas, do ponto de vista económico e social. Não porque não haja explicações que sustentem as evidências, mas porque mesmo que não as houvesse, este tipo de situações não deixariam de ser totalmente injustos e intoleráveis. É verdade que estudos da OCDE, elaborados em 2014, que se debruçaram sobre as previsões económicas até 2060, concluíram que se a Europa e os EUA não absorverem, cada uma, 50 milhões de imigrantes, não será possível manter o crescimento económico e ter gente suficiente para coletar e garantir as despesas do Estado. Nessa altura os Estados da Europa entrarão em falência. Apesar destes dados económicos, o velho continente não consegue receber um milhão de refugiados sem que, em clima de crise política e económica, cresça a xenofobia e se instale o pânico generalizado.

É óbvio que o racismo e a xenofobia são drogas duras que servem para disfarçar a situação existente deixando tudo exatamente na mesma. Os Trumps desta vida não pretendem democratizar o planeta e combater as desigualdades crescentes. O que eles querem é garantir o poder e o dinheiro para os si. Repetindo com novas roupagens aquilo que tem sucedido até agora. A única forma de combater a sua ascensão é, combatendo o poder político existente, garantir dar mais poder a todas as pessoas que vivem e trabalham na Europa. Só uma agenda que dê direitos de cidadania a toda a gente pode combater de uma forma eficiente a deriva ditatorial do capitalismo.

Muitos estudos económicos preveem que atingiremos um ponto de crise e de rutura por volta de 2050. O poder das atuais elites e as alternativas, no seu seio, de extrema-direita que se estão a apresentar apenas vão criar a catástrofe. “Em ambos os cenários, os graves impactos das alterações climáticas, o envelhecimento demográfico e o crescimento da população atingirão o seu ponto crítico por volta do ano 2050. Se não conseguirmos criarmos uma ordem global sustentável nem restaurarmos o dinamismo económico, as décadas que se seguirem serão caóticas.”, afirma o politólogo Paul Mason, no seu “Pós-Capitalismo”. O crescimento das desigualdades, a destruição ecológica do planeta e o aquecimento global, a privatização do genoma humano e da vida, o aumento da apropriação privada do conhecimento e os maiores entraves à sua livre utilização, tornam urgentes a existência de uma alternativa. Qualquer novo caminho só passará por dar poder e direitos a todas as pessoas, independentemente da sua origem e cor de pele. Só poderá haver uma alternativa política que combata o racismo e a xenofobia. Não haverá nenhuma mudança para uma sociedade mais justa que seja feita a partir da discriminação. Impedir o crescimento dos populismos antidemocráticos e que pretendem manter as desigualdades não será feito pela adoção da agenda racista. É preciso separar o trigo do joio, separar a verdadeira contestação de um sistema de desigualdades, da retórica dos seus falsos oponentes fascistas. Eles são mais do que a outra face de uma mesma moeda. Eles são a continuação dos poderosos do costume por outros meios. Como escrevia Badiou na sua carta: “Um Estado para o qual o que se chama de ordem pública não é mais do que a junção da proteção da riqueza privada e dos cães lançados sobre as origens operárias ou sobre os provenientes do estrangeiro é pura e simplesmente desprezível.”

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