A mandíbula de Dalí


Sempre se pode perguntar o que pesou mais na corrida à Bastilha, se as cabeças cheias com a Enciclopédia de D’Alembert e Diderot ou se as barrigas vazias. Quanto valem Voltaire e Rousseau e quanto vale um estômago colado às costas?


Não vivi a infância e a adolescência numa redoma e “descobri” a pobreza bem antes da idade em que Maria Filomena Mónica o fez (veja-se “Os Pobres”). Mas foi preciso chegar à idade adulta para compreender todos os defeitos da desvalorização da pobreza ou da sua redução a uma inevitabilidade. Mesmo para quem não tenha um pingo de abordagem humana, ética e/ou social da vida, mesmo para quem apenas se fique por uma perspetiva “utilitária”, a pobreza tem que merecer atenção e preocupação. Preocupa-se com a pobreza quem quer mudança, mas é um erro dos que a não querem pensar que não se devem preocupar com ela. A pobreza pode ser o pior inimigo do statu quo. É bem melhor que seja combatida por outras razões, mas exorto todos os que não forem capazes de abraçar essas razões a colocarem esforços no combate – e cada qual da forma que for capaz, sendo que o primeiro passo é cumprir direitinho as suas obrigações.

Façam-no quanto mais não seja para preservar o modo de vida que conhecem e querem. Se julgam – como tanta gente julga hoje, encandeada pelos néons – que as coisas são como são e que há adquiridos que não voltam atrás, olhem que não é assim, pois tudo é frágil e a mudança está sempre na fila, à espera, e a pobreza ajuda muito à chegada da sua vez. Desenganem-se, por exemplo, os que tendem a ver nas revoluções uma supremacia das causas políticas ou filosóficas. Essas são importantes, mas as causas económicas e sociais são-no também, e amiúde a faísca que acende o fogo da revolta que alimenta revoluções. O “tumulto do pão” não é a Revolução Francesa, mas não sabemos se ela teria ocorrido sem ele. Sempre se pode perguntar o que pesou mais na corrida à Bastilha, se as cabeças cheias com a Enciclopédia de D’Alembert e Diderot ou se as barrigas vazias. Quanto valem Voltaire e Rousseau e quanto vale um estômago colado às costas? E teria havido Revolução na Rússia de 1917 com outras condições de vida de grande parte da população? “Todo o poder aos sovietes” é um grito de fome, e não apenas de fome ideológica. E podíamos ficar aqui mais tempo a alinhar outros exemplos – o tempo de várias refeições, reais ou imaginárias.

Como escreveu Salvador Dalí, a mandíbula é a nossa melhor ferramenta para compreender o conhecimento filosófico. Se calhar ele não queria dizer o mesmo que eu digo aqui (que sabemos nós sobre o que quer um surrealista dizer?). Mas a frase serve-me bem para ilustrar a realidade: atentai na pobreza, e não julgueis que a metafísica vem antes da física. Esta vem sempre antes daquela, e ao seu lado, a preceder a metafísica (e a fazer revoluções), estão também a biologia, a química e a fisiologia. Se têm medo de revoluções e prezam ter a cabeça no lugar, olho atento na pobreza e façam alguma coisa contra ela. Tanto mais que hoje ser pobre não é apenas não ter o que comer. Ser pobre é sempre não ter o que se considera o mínimo essencial, e hoje o que se considera o mínimo essencial é muito mais do que no tempo de outras revoluções.