Só uma mudança profunda na cultura política nos permitirá resolvermos os problemas que se arrastam há anos e voltarmos a ter, duradouramente, orgulho na política, gosto pela política. Não é exasperante este não passarmos da cepa torta? Não chega já de estarmos sempre a ouvir falar dos mesmos problemas sem nunca os vermos resolvidos? Não satura sermos, em áreas cruciais, um país adiado? O que gera este quadro de faz-que-anda-mas-não-anda é uma cultura política medíocre.
Um dos aspetos mais negativos no nosso sistema político é o espírito e a atitude na generalidade da classe dirigente. A degradação que critico não decorre de defeitos intrínsecos das pessoas, mas do modo de operação do sistema, que favorece os defeitos em lugar de os combater. Não somos um sistema de excelência, mas um sistema de decadência: as coisas evoluem para pior.
Acredito que só a mudança do sistema segundo as linhas preconizadas pelo “Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade”, ou similares, proporcionará uma afirmação das qualidades humanas dos políticos acima dos defeitos, exatamente ao invés da evolução negativa a que temos assistido. Porquê? Porque o sistema que preconizamos, ao fortalecer a independência dos deputados, promove a sua responsabilização, estimula a sua genuinidade, convoca a afirmação da sua credibilidade enquanto pessoas genuínas e políticos autênticos. O escrutínio individual de cada deputado passará a ser próximo e natural. Não me refiro ao tipo de escrutínio em que se entretém a imprensa dos escândalos – esse continuará aí, naturalmente. Mas refiro-me a um escrutínio muito mais importante para salvarmos a democracia e que nos vai escapando por inteiro: o escrutínio da autenticidade do pensamento de quem nos representa, o escrutínio da sua generosidade cívica ou não, o escrutínio da sinceridade da dedicação à causa pública, o escrutínio do saber e do propósito.
Hoje não é assim porque o sistema de seleção dos deputados dispensa esses atributos e privilegia outros. O império dos diretórios dita: quanto mais dócil e obediente, melhor; quanto mais sonora retórica, melhor; quanto mais ginástica no palmómetro de bancada, melhor; quanto melhor arte dissimuladora, melhor; quanto mais habilidade manobradora, melhor; e por aí adiante. Não que alguns destes atributos não sejam importantes no desempenho político. Mas não devem ser os prevalecentes; sobretudo, não devem apagar os atributos que têm a ver com pensamento, sinceridade, entrega, autenticidade, propósito cívico. A política, na sua substância, é isto; aquilo é apenas a forma.
O problema a que chegámos é que a forma mastigou e engoliu toda a substância. O sentido e a busca do bem comum foram-se perdendo. Confunde-se zaragata com discussão política e discussão com debate. Uma vitória política não é a solução de um problema; é um triunfo efémero num qualquer ringue de pugilato. Não se vence uma dificuldade ou uma crise, esmaga-se um adversário. A própria mentira se torna boa e recomendável se der aparato, espetáculo jeitoso, boa linha de defesa. O essencial é despertar vibração nas próprias hostes, animando a excitação das claques.
De ciclo em ciclo político, vai sendo cada vez mais difícil perceber o que realmente pensam a maioria dos nossos representantes. Alguns há que mais parecem profissionais do não pensamento e fazem jus ao provérbio que um dia ouvi: “A palavra é uma dádiva do diabo para o homem esconder aquilo que pensa.” E a mulher também, é claro.
A política visa o autodesfrute dos artistas e a delícia dos seguidores. Às vezes, o povo choca-se de os ver rir e sorrir tanto quando há tantos a passar tantas dificuldades. Tornámo-nos mais uma democracia de seguidores do que de eleitores. Vemo-lo no contínuo afastamento destes, de eleição em eleição – votam com os pés: “Vão-se embora.” Como já tenho escrito, a nossa democracia é representativa no sentido de representação teatral, não de efetiva representação política. O teatrinho corre bem e animado; a representação dos cidadãos, nem por isso.
Agora continuamos a atolar-nos na falta de reformismo do Estado, que pesa cada vez mais às costas das famílias e da economia produtiva. Os que berravam contra a austeridade aí estão a aplicá-la, com novos alvos e outros processos. E os que hoje berram – bem – contra os aumentos de impostos são os que, antes, os sobrecarregaram e voltarão – mal – a aumentá-los no futuro, se voltarem a ser chamados ao mando. Porquê? Porque a cultura política é superficial e foge da raiz e do tronco dos problemas. E porque é a cultura política assim? Porque é uma cultura irresponsável: é uma cultura de faz-de-conta, não de prestação de contas.
Enquanto não mudarmos a chave do sistema político, isto é, o sistema eleitoral, não teremos melhores políticos nem uma cultura política de préstimo. Só abrindo o sistema proporcional – justo, reto, sem truques de secretaria – a uma componente significativa de círculos uninominais, permitindo também candidaturas independentes, teremos competição exigente, democracia representativa a sério, partidos reabilitados, regeneração política em Portugal. Quem tem medo de gente livre? Quem tem medo de um sistema sério?