1. O que se passa na Turquia coloca–nos diretamente perante uma questão crucial: o que é a democracia?
Muitas são as definições mas, no essencial, todas apontam para a legitimidade do governo exercido pela maioria.
Em democracia, para que esta possa governar legitimamente, é necessário, contudo, que o faça de acordo com um ordenamento jurídico-constitucional que garanta os direitos de todos.
É nesse pacto, na aceitação comum de regras que estabelecem o direito de uns a governar e de outros a não serem perseguidos por não comungarem da visão política da maioria, que reside a própria possibilidade da existência de um governo legitimado e aceite por todos.
É necessário, por isso, que a autoridade para dirimir os sempre inevitáveis conflitos seja atribuída a um poder independente – o poder judicial – que apenas deve obedecer às normas jurídicas fundadas no pacto acolhido pela maioria e pela minoria.
Não se pode, assim, falar em democracia sem simultaneamente se falar no respeito pelo Estado de direito ou, ainda, sem falar do respeito devido aos órgãos que o devem fazer valer: os tribunais.
2. O desrespeito e, inclusive, o desmantelamento do aparelho de poder judicial independente inviabilizam, por si, a noção de Estado de direito.
É verdade que em quase todos os regimes – e refiro-me só aos que podem ser apelidados de democráticos – existe sempre alguma tensão entre a maioria e o poder judicial, precisamente por este dever agir independentemente da vontade política daquela, designadamente se esta se não exprimir por via de uma lei constitucionalmente legítima.
Uma coisa é, pois, o reconhecimento dessa tensão e a sua gestão nos limites dos equilíbrios constitucionais; outra, bem diferente, é a subversão radical das esferas e possibilidades de intervenção do poder judicial, designadamente se ela é feita através do afastamento compulsivo e massivo de magistrados, alegadamente por poderem perturbar, no exercício normal das suas funções, os desígnios constitucionalmente ilegítimos da maioria.
Quando isso acontece, são os pressupostos e os princípios estruturantes do Estado de direito e, portanto, da democracia que estão em crise.
3. A participação no Conselho da Europa – onde a Turquia se integra – exige o respeito por estes direitos democráticos, especialmente por parte dos países que, além do mais, assinaram alguns dos seus protocolos mais avançados.
Entre estes destacam-se, desde logo, os protocolos adicionais n.o 6 e n.o 13 à Convenção Europeia sobre os Direitos do Homem (CEDH), que versam a abolição da pena de morte, ambos ratificados pela Turquia.
Outro dos princípios fundamentais que todas as democracias exigem é o da não aplicação retroativa da lei penal nova (art.o 7.o da CEDH).
Este princípio desdobra-se em duas vertentes: ninguém pode ser condenado por crime que a lei antes não previa e ninguém pode ser condenado em pena mais grave do que a lei estabelecia à data da prática de um crime.
4. A derrogação e denúncia da Convenção, protocolos e direitos essenciais neles previstos têm regras e a sua violação exclui, naturalmente, qualquer país da comunidade de países europeus que integram o Conselho da Europa.
Tudo o que se tem passado na Turquia não pode, pois, ser visto apenas à luz de uma sua possível adesão à União Europeia – adesão que, aliás, ninguém prevê para breve, e muito menos o governo daquele país.
Há mais Europa, pelo que compete aos representantes dos países democráticos exigir, agora, o respeito rigoroso dos protocolos que garantem os direitos humanos no seio do Conselho da Europa.