Guilherme Centazzi. O romance pioneiro de um doutor algarvio


O rebuçado literário ficou a ganhar pó na lata até o investigador lhe tomar o gosto. Tudo começou com um projecto paralelo à actividade de escrita de Pedro Almeida Vieira, uma base de dados sobre a literatura do género histórico em Portugal, a biblioHistória, que conta já com mais de 500 autores e cerca de…


O rebuçado literário ficou a ganhar pó na lata até o investigador lhe tomar o gosto. Tudo começou com um projecto paralelo à actividade de escrita de Pedro Almeida Vieira, uma base de dados sobre a literatura do género histórico em Portugal, a biblioHistória, que conta já com mais de 500 autores e cerca de 1400 obras, entre contos, romances e novelas. “Como não há uma listagem completa dos autores e das suas obras, sobretudo do século xix, sempre que encontrava um escritor desconhecido ia à Biblioteca Nacional, consultava as suas obras, e via se se encaixavam no género histórico ou não.”

Durante estas pesquisas depara-se com alguns romances de um tal Guilherme Centazzi, entre elas “O Estudante de Coimbra – Relâmpago da História Portuguesa desde 1826 até 1838”, título que à partida o leva a crer tratar-se de um ensaio. A obra, originalmente publicada entre 1940 e 1941, revela-se afinal um romance, à margem do pendor histórico da pesquisa inicial, mas com direito a interesse redobrado.

“Cronologicamente estávamos a falar de um romance anterior às obras de Herculano e Almeida Garrett.” E, logo, a recapitular a história com direito a algumas alterações no pódio, patrocinadas por um escritor que deu que falar como médico, músico e até – que o sucessor Dr. Bayard lhe faça a devida vénia – como inventor de rebuçados peitorais, para alívio das gargantas de “cantores e oradores”.
Guilherme Centazzi, autor “estranhamente desconhecido”, renascia da sombra dos arquivos do tempo como o verdadeiro precursor do romance português, passando subtilmente a perna à história de amor entre Eurico e Hermengarda, de Alexandre Herculano, e a “O Arco de Santana”, de Almeida Garrett, inclusive através da obra “Carlos e Julieta”, publicada em 1838, que reformularia uma década depois sob o título “Beatriz e o Aventureiro”. O romance foi também encontrado na Biblioteca Nacional. A apreciação dá conta de uma obra ainda muito embrionária, “o que se pode considerar um dramalhão”, ao contrário de “O Estudante de Coimbra”, “muito bem estruturado, apesar de algumas pequenas falhas”. Um fruto do período do romantismo em Portugal, com facetas “inovadoras para a época”, escrito por Centazzi aos 32 anos.

“Na verdade não descobri nenhum manuscrito no baú, era um livro que estava disponível. Tem-se a percepção de que na literatura dos primórdios do romantismo quase não tínhamos escritores, mas na verdade a nossa literatura do século xix não é pobre. Penso que os académicos se terão voltado quase sempre para os mesmos escritores.”

Movendo-se à margem de uma certa elite literária, o esquecido Centazzi surge listado no “Dicionário Bibliográfico Português”, de Inocêncio Francisco da Silva, apesar de a sua obra ter sido pouco vasculhada. “Não é assim tão surpreendente para a época, anos 40 do século xix. As obras tinham uma circulação muito restrita. Para se ter uma ideia, a primeira obra de Herculano, em 1844, ‘Eurico o Presbítero’, era alvo de subscrições prévias, em vez de ser colocada em livrarias como hoje acontece. As tiragens eram muito pequenas, mesmo para uma obra como esta, que na altura teria uns 700 subscritores.”

O algarvio brioso Aguçada a curiosidade com as datas anteriores, as atenções viravam-se para o apelido, que obrigou a verificação prévia da sua nacionalidade. Provava-se no fim de contas que o sobrenome aponta para a ascendência italiana, mas o autor não só nascera em Faro, como carregaria ao longo dos anos um especial orgulho no seu berço a sul. “Nas obras assume em vários escritos a sua costela algarvia.”

Mais tarde, Pedro Almeida Vieira viria a ter acesso ao registo completo do baptismo de Guilherme Centazzi, que nasce em 1808, ano da segunda invasão francesa, e vem em criança para Lisboa. O seu pai, António, agente comercial, cidadão da antiga República de Veneza que viria a naturalizar-se português, casou-se com uma portuguesa. Do lado materno, o seu avô, genovês, também desposara uma portuguesa.

Prevalece um vazio de informação sobre grande parte do seu percurso, mas sabe-se que Guilherme Centazzi se forma na Faculdade de Medicina de Paris, onde obtém o grau de doutor, após ter sido expulso da Universidade de Coimbra, para onde fora estudar Matemática em 1826. Pelas suas opções liberais, esteve exilado em França entre 1829 e 1834, durante as guerras liberais, que opuseram D. Pedro e D. Miguel numa contenda pelo direito de sucessão ao trono. “Centazzi é ajudado por um irmão militar que morre na parte final da guerra.”

Por vocação ou necessidade, Guilherme vai além dos escritos. A obra “Dicionário Biográfico de Músicos Portugueses” não esqueceu uma das inclinações do algarvio, que tocava violino e violeta, competências que lhe terão também valido sustento durante o desterro, estando no entanto aquém do virtuosismo no capítulo da composição para canto e piano, que assina na década de 60. Executante digno de nota, as composições da sua autoria, algumas das quais representadas em saraus para a corte, mostram “muita carência de conhecimentos técnicos”.

Com o regresso a Lisboa dedica-se à medicina como actividade principal, praticada em paragens como Mafra, Ericeira ou Arruda dos Vinhos, chegando a servir o exército. Terminaria os seus dias na capital, num terceiro andar da Rua das Flores, onde terá morrido, em 1875, sem que se conheça a causa da morte. Através do gabinete de estudos Olisiponenses, Pedro chegou ao jazigo do militar José Jorge Loureiro, onde se encontra sepultado o escritor, actualmente ao abandono, no cemitério dos Prazeres, em Lisboa. “Supostamente seriam grandes amigos.”

Em paralelo, Centazzi publica uma vasta obra de medicina, com destaque para a higiene e saúde profiláctica. “Considerações gerais sobre os exercícios gymnasticos, e as vantagens que delles resultam: ensaio lido e dedicado à Sociedade das Sciencias Medicas de Lisboa” (1836) e “Considérations générales sur l’action des exercices gymnastiques sur l’économie animale” (1834) são dois dos títulos referenciados em www.worldcat.org, a que se juntam, por exemplo, “Hygiene e medicina popular” e opúsculos sobre envenenamentos.

Como caracteriza em posfácio Maria de Fátima Martinho, a sua obra “reflecte as tendências da literatura portuguesa até ao fim do terceiro quartel de oitocentos”, com uma “visão crítica e desassombrada da sua vida e da medicina”, num quadro português em constante mutação, das invasões francesas às guerras civis e à Regeneração”.

Para o maçon e católico, a bagagem científica incompatibilizava-se com certos ritos clericais. “No livro de 1840 ‘Higiene e Medicina Popular’ nasce uma polémica. Centazzi mencionava as desvantagens de se baptizar as crianças com menos de oito meses. Acaba por ser um tipo multifacetado. É essa parte mais curiosa, com uma série de paradoxos engraçados.”

Centazzi casou duas vezes. Viúvo da primeira mulher, de quem tem um filho, que acaba por morrer durante um dos surtos de cólera, volta a casar e, a julgar pelos escritos, terá tido mais filhos. Por ironia, a sua valorosa acção durante a epidemia de febre-amarela, nos anos 50, valeu-lhe a comenda de cavaleiro da Ordem de Cristo. O médico foi também inventor dos então famosos rebuçados peitorais Dr. Centazzi, produzidos industrialmente até meados do século xx.

Atento aos benefícios do exercício físico no contexto da medicina preventiva, a tentativa de introduzir a prática regular da ginástica, à época considerada uma modalidade pouco masculina, não terá contado com a melhor das recepções.

“Der Student von Coimbra” A dispersão do seu interesse por áreas distintas, explica de certa forma a disseminação das referências ao seu trajecto em diferentes compilações, e invariavelmente pouco concretas. Circulando entre o romance, o teatro e a poesia, é neste último género que Guilherme dá os primeiros passos nas letras, estreando-se com o livro “Poesias Diversas”, publicado em 1827. Na década de 60 ainda escreve “As Sete Penadas”, num estilo ora jocoso ora sério, e “Recreios Poéticos”.

No entanto, a grande inovação na sua escrita mostra-se sobretudo com “O Estudante de Coimbra” (1840), um romance em três volumes abordando, com uma faceta quase picaresca, a vida de um universitário que se envolve nas guerras liberais, em que combina romantismo com realismo. A única imagem conhecida de Centazzi está integrada na primeira edição do livro, existente na Biblioteca Nacional e na Biblioteca da Universidade de Coimbra.

Embora alguns traços do protagonista do romance possam ter um cunho autobiográfico, o grosso do enredo não deixa dúvidas de que a ficção prevalece sobre as memórias pessoais. Em 1861, numa edição actualizada, Centazzi introduz uma série de alterações ao manuscrito inicial, expurgando por completo o terceiro tomo. “Até neste aspecto está no lado errado da história. A primeira edição de ‘O Estudante de Coimbra’ é dedicada a Feliciano de Castilho, que acaba por ser trucidado pela polémica da geração de 70.”

Se o presente lhe fez pouca justiça, o passado não foi mais generoso no tribunal da razão. Apesar de ser um médico conceituado, foi praticamente ignorado pela elite literária da sua época, “talvez por algumas das suas obras, sobretudo ‘O Estudante de Coimbra’, não se inserirem nos cânones do romantismo”.

Apesar da utilização de recursos estilísticos inovadores – e mesmo em contracorrente – na literatura portuguesa, Pedro Almeida Vieira, responsável pela fixação e notas desta edição de “O Estudante de Coimbra”, que a Planeta publica, esbarrou em algumas dificuldades com a escrita do autor, repleta de “reminiscências do século xviii”. Aspectos como a colocação de vírgulas ou o abuso dos dois pontos foram revistos, somando-se 300 notas que orientam a leitura. “É a versão que imagino que ele escreveria se vivesse nesta época.”

Desafiando ignorância deliberada ou negligência involuntária, a sua obra deu brado para lá da fronteira. Gozou de uma tradução em alemão no ano de 1844, que o converteu no primeiro português com um romance editado no estrangeiro, antecipando-se a Alexandre Herculano, que chegaria à Alemanha em 1848. “Der Student von Coimbra”, pelo editor H. B. Hirschfeld, de Leipzig, mereceu uma extensa e elogiosa recensão, de mais de uma dezena de páginas, pelo conceituado crítico escocês Thomas Carlyle na “Fraser’s Magazine”. A edição, de que não há exemplares em Portugal, vem indicada no site www.worldcat.org. “Existe uma edição numa biblioteca espanhola e duas numa biblioteca suíça.” Recentemente, foi vendido um exemplar numa leiloeira em Pforzheim, desconhecendo-se o preço alcançado.

Nos anos 60 do século xix publicou mais dois romances: “A Alma do Justo” (1861), que condensa o essencial das poucas pistas biográficas que deixa, e “Duas Palavras Contemporâneas” (1867), bem como dois contos num volume: “Fantasia e Verdade” e “Saber Lutar É Vencer”. Num período marcado pelo nascimento e pelo enterro de publicações à velocidade da luz, foi ainda proprietário e redactor de dois periódicos efémeros: “Desenganos da Vida” (1863) e “O Semanário” (1867-1868).
O desejo seguinte de Pedro Almeida Vieira seria escarafunchar na biografia do pioneiro que dá nome a uma rua de Faro, que “escreveria muito para a gaveta”, grande parte perdida.