Se o pai fosse vivo, ex-presidente da Câmara de Mira, havia de ter orgulho na carreira do filho, antes académico reconhecido, depois ministro de Portugal e, em breve, académico outra vez.
Calças de sarja, branco sujo, T-shirt branca e pullover verde, cabelo aloirado, barba por fazer, apartamento em Miraflores, mais jovem do que os 48 do cartão de cidadão, uma empregada, dois assessores, um jornalista, a mulher e um menu especialmente preparado pelo chef Luís Miguel Poiares Pessoa Maduro. A receita prevista era assim, sem filtros, com uma ideia, ainda que exagerada, que se aproxima do conceito de convívio.
O pretexto jornalístico era assinalar o Dia Nacional da Gastronomia Portuguesa. Quase ninguém ligou, mas sob os seus auspícios, a Assembleia da República instituiu o dia, anualmente, no último domingo de Maio.
Aazáfama na hora marcada, com o ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional em bolandas na cozinha, revelava um empenho que garante ter sido o seu nos dois anos que passou entre os colegas ministros e um staff governamental, a priori, desconhecido para ele. Entre Florença e Nova Iorque, com passagem por Portugal “ao serviço do país”, como gosta de sublinhar.
Na varanda das traseiras, o court de ténis e a piscina revelam alguma exclusividade, mas nada que chegue à ostentação ou luxo. Uns flutes de champanhe servidos com um presunto do mar, como o próprio chamou à entrada de barriga de atum com avelãs.
Como se pode não apreciar, ou pelo menos estar atento, às conversas de um “Maduro” com formação nas advocacias, com o mundo de Nova Iorque e Florença em pano de fundo, o juiz mais novo de sempre do Tribunal de Justiça europeu, useiro e vezeiro nos seminários e conferências all over the world, geek dos cinemas, cidadão do mundo, melómano q.b., com dezenas de carimbos no passaporte? Os jornalistas têm de ser irascíveis, quase agressivos, destacar os sound bytes, manter a postura a todo o preço? Lamento.
É difícil não o reconhecer e terá sido também quase impossível para Passos Coelho quando Durão Barroso fez a ponte e Poiares Maduro acabou por substituir Miguel Relvas. Uma tarefa difícil que alguns dizem mal sucedida, outros nem por isso.
Ao jantar, uma salada de abacate, tangerina e gamba precede o prato principal, a massa italiana com o bacalhau seco demolhado português, com azeitona, e que remete para a sua vida luso--italiana. Pediu licença sem vencimento no Instituto Universitário Europeu em Florença, onde é director, investigador com um emprego que, para muitos, será de sonho: sem alunos, sem horários, com a responsabilidade de investigar e escrever. É o sítio para onde vai voltar a seguir às eleições.
À pergunta que todos fazem “porque aceitou ir para ministro?”, o director da sua universidade, Joseph H. H. Weiler, respondeu em segundos:“When your country calls, you go!” Não se percebeu mais do que esta explicação e a ideia de subir na carreira com o cargo governamental nem vale a pena abordar.
ORedoma 2007 branco servido após o champanhe antecedeu a estrela da noite: o Chryseia 2012, o vinho português da Prats & Symington que o convidado levou para casa do ministro, só porque tem amigos influentes no Porto e no Douro. O ainda ministro da República “adorou” o vinho, mas também era muito difícil não gostar de um dos melhores do mundo.
Da política ainda se falou, mas a ideia era perceber quem era o homem por trás do político. Ainda assim, Miguel fez questão de resumir o que considerou a sua mais-valia nesta metade da legislatura em que participou. Como a política é feita de “alternativas imperfeitas”, admite, a sua ideia foi dotar os organismos da capacidade de decidir e pensar. Como é “liberal politicamente”, cita o caso da RTP,onde criou uma comissão que deverá funcionar autonomamente do governo. Repetiu que um bom político “é uma mistura de cartógrafo, poeta e juiz”, mas dá exemplos dos obstáculos com que se deparou. Num diploma que aprovou, a primeira resposta lembrava a série britânica “Yes, minister”:“A sugestão do senhor ministro, ainda que meritória, não pode ser concretizada por dificilmente objectivável.” Meteu mãos à obra e escreveu ele o diploma. Risos.
Enquanto se ouvia o segundo concerto para piano de Rachmaninoff, o chef Poiares Maduro serviu de sobremesa um tomate recheado com 12 sabores diferentes (entre outros, canela, maçã, pêra, pêssego, gengibre, noz, pinhão, pistácio). Recomendou o chef norte-americano Grant Achatz porque “é uma espécie de Beethoven na gastronomia. Por causa de um cancro, perdeu o sabor, o gosto, mas esmerou-se na cozinha molecular e é um dos grandes chefs”. Mas Poiares esteve lá. No restaurante e nos Estados Unidos, onde é professor convidado da que é considerada a melhor universidade de Direito das terras do Tio Sam:Yale. Tem o seu apartamento e um ordenado de que não quer falar. Lembre-se de que a boa educação impede as pessoas de falar do vil metal. A mesma razão porque não vai longe nas conversas sobre o seu Jaguar clássico, que o bom senso o impediu de utilizar em Lisboa. Sabemos que ganhava mais.
A população em geral pensa que Poiares Maduro é independente. Não é. Tem cartão de militante do PSD desde a JSD, mas avisa que “mais vale um independente militante num partido do que um independente dependente do partido”.
Agora é a recta final do seu mandato e quer mesmo voltar a Florença, um local que reconhece “mais optimista que Portugal”. Volta para Itália, para os Estados Unidos, e logo se verá. Vai manter a ligação à família e aos sobrinhos, alguns filhos da sua irmã Ana Cid Gonçalves, secretária-geral da Associação Portuguesa de Famílias Numerosas, “felizmente todos do Sporting”, diz sem esconder o clubismo. As histórias da afición ficaram por contar. Muitas e boas.
Foram cinco horas de conversa. Falou-se de George Ezra, Sherlock Holmes, Astor Piazzola, de viagens surpreendentes como o Japão, palco de “tradição e subcultura transgressora”, da arquitectura do governo, dos processos de decisão, dos bons métodos que passam por “reformar a forma como pensamos nas reformas”, do vinho, de comida, do cinema italiano e do francês, dos filósofos espanhóis, dos amigos ministros, do regresso a Portugal que idealiza:“Quando houver uma Yale em Lisboa com cheirinho de Florença. Ou então um casamento”, porque a família está sempre presente. Ficamos por aqui. Para já.