Livro. A história dos médicos que foram “mais do que isso”

Livro. A história dos médicos que foram “mais do que isso”


“Príncipes da Medicina. A vida e obra de alguns dos mais fascinantes e inspiradores médicos da História” poderia ter sido escrito por um historiador, mas foi o pediatra Mário Cordeiro – a quem as lides das palavras não são de todo estranhas – a dar o dedo ao manifesto. Durante três anos compilou as biografias…


Como se lembrou de fazer o levantamento da vida e obra de alguns dos mais importantes médicos da história?
A partir da biografia que escrevi sobre o meu avô, há três anos, e que gerou um livro intitulado “Júlio Gonçalves – de Goa a Lisboa” [que é um dos médicos que consta do atual livro], interessei-me por diversos médicos e médicas que foram “mais do que isso”. Falo de pessoas que se transcenderam noutras áreas, seja na filosofia, seja na política, arte, cultura. Todos em benefício do próximo, numa perspetiva de dádiva à humanidade. Foram pessoas com uma enorme capacidade inventiva, criatividade, organização e método. Todos já partiram, de Imhotep, no Antigo Egito, até Paulo Cunha e Silva, que nos deixou no ano passado. Alguns terão ficado de fora, porventura injustamente. Nenhum livro deste tipo consegue ser exaustivo, mas posso assegurar que ninguém foi deliberadamente preterido.

Quanto tempo durou a pesquisa? 

Cerca de três anos. Foi um trabalho de pesquisa, primeiro, dos médicos e médicas que poderiam entrar no livro, tentando alargar o âmbito o mais possível. Seguiu–se um trabalho de investigação e síntese sobre a vida dos médicos, em diversos livros, textos, sítios da internet e manuais de história da medicina. Encontrei muitos profissionais estrangeiros, mas também muitos portugueses e, sobretudo, nos tempos mais contemporâneos, os nossos compatriotas predominam.

Houve algum médico que não conhecia antes de escrever o livro?

Sim. Alguns, poucos, não conhecia de todo; outros, conhecia mas não tinha presente serem médicos. Conhecia-os exatamente através das suas outras atividades, como a literatura, a política ou a pintura, como por exemplo Céline, Tchekov, Luís de Almeida ou Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes, cujo processo dedutivo tem muito a ver com o método de diagnóstico. Todavia, posso dizer que sabia que mais de três quartos destas personalidades foram médicos – gosto muito de literatura, pintura e história, e creio que o meu conhecimento veio sobretudo daí. Alguns conheci pessoalmente e fui aluno de outros.

Há alguma história que o tenha surpreendido?

Muitas. É difícil isolar esta ou aquela, porque têm em comum terem sido génios criativos, inconformistas, voluntariosos e que nunca quiseram ter donos nem senhores, o que suscitou muitas invejas, perseguições e repúdio por parte de colegas e das instituições. Por exemplo, os limites impostos pela Igreja, designadamente através da Inquisição, forçaram durante séculos que a medicina não pudesse evoluir devidamente, dado, por exemplo, ser proibido dissecar cadáveres e estudar o corpo humano. Também é espantoso que alguns manuais e textos escritos desde a Antiguidade tivessem durado, como material de estudo, por mais de dois mil anos, e que houvesse médicos a descobrir coisas espantosas apenas por rasgo inventivo, enquanto outras ideias que qualquer criança de três anos hoje refuta se mantivessem como certezas durante séculos e séculos!

E procedimentos clínicos, algum o surpreendeu?

Sim, há histórias incríveis e torna-se difícil dizê-las todas mas, por exemplo, Laennec que inventou o estetoscópio ao ver crianças a brincarem com um pau e a emitir sons de um lado e a ouvi-los do outro, Van Leeuwenhoek que descobriu haver vida além da que era visível a olho nu ao inventar o microscópio, Werner Frossman, que se cateterizou a si próprio para ver que era possível chegar ao coração sem abrir o tórax, ou Alexander Fleming que, por ser desorganizado e desarrumado, descobriu o poder antibacteriano da lisozima nasal ao, por falta de cuidado, ter espirrado para cima de uma placa com bactérias. Resolveu partir para férias e deixar a limpeza das placas para quando voltasse, e viu que o fungo tinha crescido e parado o crescimento das bactérias – assim “nasceu” a penicilina.

Qual o avanço científico que destaca?

Foram tantos que não consigo destacar nenhum, até porque eles complementam-se e foi isso que tentei colocar no livro, e essa a razão pela qual apresento os médicos por ordem cronológica. Há um fio condutor dos avanços e dos percursos de vida, que segue paralelo aos avanços nos conhecimentos em geral, à história do mundo, às ideias políticas e filosóficas, às guerras e aos costumes, à ética… afinal, é esta a história da medicina, protagonizada por estes homens ecléticos e que dominavam “sete instrumentos”, e que fizeram avançar a civilização para patamares mais elevados, sem que desses avanços retirassem benefícios pessoais. Todavia, a humanidade ganhou muito por esses médicos e médicas terem assumido a coragem de mudar e de ousar. 

Tem um médico preferido?

Todos eles me fascinaram, pela variedade das suas vidas e pelos achados, descobertas e feitos com que nos brindaram. Claro que o meu avô tem um lugar muito especial, por razões óbvias, mas porque foi também um exemplo de vida de abnegação e de serviço. Vidas muitas vezes sofridas. Mas houve tantos que só lendo o livro se entenderá o que quero expressar, e isto não é uma frase propagandística.

Porquê príncipes?

São príncipes de histórias encantadas, e não príncipes das revistas cor-de-rosa! São, foram, pessoas altruístas, educadas, inovadoras, representando as melhores virtudes da condição humana. Encarnaram a nobreza humana, foram vítimas de invejas e de perseguições, mas estiveram do lado certo da ética. Foram príncipes porque não quiseram o poder, mas foram elegantes e respeitadores na sua postura civilizacional e contribuíram para ajudar a salvar a humanidade, tal como os príncipes das fábulas ajudam a resgatar as donzelas das garras da morte.

Apenas conta a história de seis “princesas”. Obviamente que esta disparidade entre médicos e médicas é subsidiária da própria história. Se escrevesse o livro daqui a cem anos, imagina uma realidade diferente?

As princesas só puderam “sair da toca” no início do século xx, e não apenas na medicina. Por exemplo, na música, a mulher de Schumann compunha e o marido é que ficava com os seus créditos. Daí exaltar as vidas de Cesina Bermudes, Carolina Beatriz Ângelo, Adelaide Cabete, Sara Benoliel, Virgínia Apgar ou Laura Ayres. Com o atual rácio de mulheres e homens nas faculdades de Medicina, a rondar os 70% “favoráveis” às mulheres, creio que a questão de género está devidamente resolvida e que as mulheres vão ter, finalmente, os mesmos direitos que os homens, podendo expressar a mesma genialidade, desenvolver os mesmos expoentes de criatividade e estudar, investigar e diversificar as suas vidas em todas as profissões. O livro só se debruça sobre pessoas que já morreram, daí esta quantidade esmagadora de homens. Daqui a cem anos alguém poderá rever o livro e acrescentar um segundo tomo que terá, certamente, uma grande percentagem de mulheres. Acho muito interessante o desafio. Algures no cosmos serei um leitor ávido, prometo!