Leis à patada


A análise desta proposta – tão má que até custa a ler e pior, a acreditar – é um catálogo de violações de direitos constitucionalmente garantidos, de atropelamentos de princípios fundamentais, de entre os quais o da proporcionalidade, de desprezo arrogante pelos direitos dos cidadãos.


Penso não ser exagero dizer que a comunidade jurídica está em estado de choque com a proposta de lei apresentada à discussão pública pelo Governo em matéria de habitação.

Tudo nessa proposta é tragicamente mau, violador dos direitos dos cidadãos, ignorante em relação a princípios básicos do direito e dos direitos fundamentais previstos, entre outros textos, na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, cujo artigo 17º, aliás concordante com a Constituição portuguesa, dispõe que “todas as pessoas têm o direito de fruir da propriedade dos seus bens legalmente adquiridos, de os utilizar, de dispor deles e de os transmitir em vida ou por morte”. 

Já todos sabemos que o direito de propriedade – pilar fundamental da liberdade individual e colectiva – não é absoluto. Como se diz também nessa Carta, “A utilização dos bens pode ser regulamentada por lei na medida do necessário ao interesse geral”.

O ponto é que a “medida do necessário ao interesse geral” não pode nem deve ter como substância o confisco (apropriação sem contrapartida) da propriedade dos cidadãos, em função apenas de opções ideológicas dos governos em funções, ainda que os nossos governantes estejam convencidos, na esteira de um qualquer Proudhon de pacotilha, que “a propriedade é um roubo”…

Ora, é disso que a proposta de lei “+Habitação” do Governo trata. Do confisco de direitos. À patada.

A análise desta proposta – tão má que até custa a ler e pior, a acreditar – é um catálogo de violações de direitos constitucionalmente garantidos, de atropelamentos de princípios fundamentais, de entre os quais o da proporcionalidade, de desprezo arrogante pelos direitos dos cidadãos.

Custa-me dizer isto, mas não há substantivos e adjectivos suficientes para qualificar o tão excruciantemente má que esta proposta consegue ser.

Já muita gente se pronunciou sobre a questão do arrendamento coercivo e o absurdo que consistiria em impor a alguém que não o queira fazer, o arrendamento de uma casa sua. A reforçar o absurdo fica o facto de que o Estado poderia apossar-se de um prédio, fazer-lhe nos seus termos e condições (caras e corruptas como sabemos) “obras” de requalificação e subarrendá-lo cobrando-se das rendas para pagamento dos custos das obras feitas contra a vontade do dono, que assim ficaria provado do que tivesse sido seu, por décadas e décadas… ou seja, para sempre. 

Isto é apenas um exemplo. Ponto por ponto, medida por medida é, como já disse, um catálogo de brutalidades burocráticas, posses abusivas, corrupção prevista e arbítrio desmedido, o que esta proposta de lei prevê.

Não respeita nem os direitos dos nacionais – o que é costumeiro em Portugal – nem os dos estrangeiros que de boa fé investiram no nosso país e se veriam atirados para situações impensáveis num país da União Europeia. Nem me venham com a conversa – mentirosa – de que outros países da União têm leis similares, porque pura e simplesmente, não é verdade.

Acresce, cereja em cima do bolo, o congelamento das rendas mesmo para novos contratos de arrendamento, ou seja, entendamo-nos, o Estado fixa de uma vez por todas e para a eternidade, as rendas que podem ser cobradas pelos proprietários!

Falta ainda acrescentar a criação de um Estado pidesco (é o verdadeiro regresso aos tempos do Dr. Salazar: rendas congeladas, preços administrativos, escritos nas janelas e agora, a PIDE) em que as empresas de serviços de água, electricidade e gás teriam de informar a Gestapo (perdão, as finanças) dos consumos de cada casa, para efeitos de avaliação sobre se estão devolutas. Pena têm os comunistas que em 1975 não houvesse meios de controlo destes.

O resultado deste desastre, se porventura pudesse entrar em vigor alguma vez, seria o maior colapso do parque imobiliário português a que teríamos assistido na nossa geração, o fim do mercado do arrendamento, a paragem da construção de prédios novos salvo de habitação social ou de luxo, o ainda maior empobrecimento da classe média, centenas de milhares de desempregados, milhares de empresas falidas, a renovada degenerescência dos parques urbanos de Lisboa e do Porto, o enclausuramento do país sobre si próprio, a perda de qualquer crédito internacional como país de investimento, a fuga de quem já para cá veio, a acrescer à fuga de quem cá nasceu, daqui para fora… 

Porquê tudo isto? Porque o primeiro-ministro é estúpido, excessivamente incompetente ou totalmente ignorante das realidades da vida? Não, não é por isso. 

A causa primeira é simplesmente que o poder em Portugal foi sequestrado por um bando de gente pouco honesta, como “aquele” que contratou com um adiantamento de 300.000 euros um centro transfronteiriço em Caminha, uma noção totalmente ridícula, que desqualificaria qualquer um para o que fosse, mas que António Costa entendeu por bem fazer seu secretário de Estado adjunto.

Este bando é capaz de tudo para se manter no poder. Tudo é tudo, sem limites nem restrições. Para abafar os múltiplos casos de corrupção que se abateram sobre o governo, vale tudo, incluindo destruir a economia, arruinar o crédito externo de Portugal, pôr em causa todos os nossos direitos, inventar um “1º direito à habitação” que justificaria medidas excepcionais de espezinhamento dos direitos de toda a gente, em prol sabe-se lá bem de quem, mas estou disposto a apostar simples contra dobrado, que há-de haver muitos meninos, meninas e menines do PS a precisar de casinha e logo por acaso, da sua, caro leitor. Azar o seu.

Como é evidente, isto não pode ser, isto não é tudo deles, há direitos e tribunais, a justiça demora mas lá chegará, há a carta europeia dos direitos fundamentais, e há “nós”.

Também nos cabe a nós opor a isto, como dizia a música, “uma muralha de aço”, uma resistência cidadã ao espezinhamento dos nossos direitos e, pelo menos, pelo menos, uma decisão inabalável que as acrobacias retóricas e as promessas rotas do Dr. Costa não podem alterar: não voltar a votar neste bando.

Valha-nos que nas últimas eleições autárquicas votamos para Lisboa e para o Porto e tantas e tantas outras cidades principais, no PSD e no CDS, e que os presidentes dessas Câmaras já declararam que nos seus municípios não vai haver estes desvarios. A menos que o bando de desvairados que nos desgoverna decida retirar aos municípios as suas legítimas competências. Já nada me surpreenderia…

 

Advogado, ex-secretário de estado da Justiça, subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade