Arresto. Como o tribunal conseguiu chegar  aos bens de Berardo

Arresto. Como o tribunal conseguiu chegar aos bens de Berardo


Justiça recorreu a uma figura jurídica que raramente é usada: desconsideração da personalidade jurídica coletiva. Mas o caso do empresário foi considerado excecional. O advogado Carlos Reis Gonçalves explicou ao i em que situações esta medida pode ser utilizada. Para já, foram arrestados dois imóveis e os títulos da coleção Berardo.


Imóveis, bens e títulos da sua coleção penhorados são para já as consequências visíveis da ida de Joe Berardo à comissão parlamentar de inquérito à recapitalização e gestão da Caixa Geral de Depósitos (CGD). Os alarmes já soaram junto do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) que está a analisar documentos sobre a “golpada” de Joe Berardo à Caixa Geral de Depósitos (CGD), BCP e ao Novo Banco através da Associação Coleção Berardo, a dona das obras de arte e cujos títulos de participação foram dados em penhor da dívida de mil milhões de euros junto dos bancos, avançou o Eco.

No Parlamento, o empresário garantiu que tinha apenas uma garagem em seu nome. O resto do património pertencia à Fundação Joe Berardo e a empresas da esfera do comendador madeirense. Mas esta versão não convenceu o Tribunal da Comarca de Lisboa, que ordenou o arresto de vários bens do empresário, incluindo dois apartamentos no valor de quatro milhões de euros. Para isso recorreu a uma figura jurídica pouco conhecida: a desconsideração da personalidade jurídica coletiva. Mas porquê recorrer a um mecanismo legal que raramente é posto em prática?

O arresto foi pedido pela CGD, a quem Joe Berardo deve cerca de 320 milhões de euros, através de empréstimos à Fundação Berardo e à Metalgest. Para conseguir apreender os bens, o tribunal utilizou aquela figura jurídica, pouco comum. Segundo o artigo publicado na revista jurídica Julgar – e assinado pelo advogado Armando Triunfante –, este mecanismo é usado em situações “onde se configura um mau uso de institutos próprios do direito das sociedades, nomeadamente aproveitando ilicitamente a personalidade coletiva para cometer fraudes ou abuso do direito”.

“É uma figura jurídica utilizada quando a sociedade comercial (pessoa coletiva) se desvia da rota que o ordenamento jurídico lhe traçou, optando por um comportamento abusivo e fraudulento que não pode ser aceite na utilização funcional da sociedade ou quando a conduta censurável não é substancialmente da sociedade mas do ou dos seus sócios (ou ao invés). Em tese geral, pode dizer-se que a desconsideração da personalidade jurídica da pessoa coletiva é imposta pelos ditames da boa fé e traduz-se no desrespeito do princípio da separação entre a pessoa coletiva e os seus membros”, explica ao i o advogado Carlos Reis Gonçalves, especialista em Direito do Trabalho e com artigos publicados sobre este tema.

Quando pode ser usada? Existem três cenários em que esta medida pode ser posta em prática. A primeira é quando existe atentado a terceiros ou abuso de personalidade, ou seja, “a sociedade comercial é utilizada pelo(s) sócio(s) para contornar uma obrigação legal ou contratual que ele individualmente assumiu ou para encobrir um negócio contrário à lei, funcionando como interposta pessoa. Nessas hipóteses, desde que seja patente um comportamento abusivo e fraudulento por parte de determinado sócio, em prejuízo de terceiros, pode superar-se a autonomia da sociedade e passar a ver-se esse sócio, que responderá individualmente perante o lesado”, diz Carlos Reis Gonçalves.

Outra situação em que este mecanismo é usado é quando existe uma mistura de património, ou seja, quando os sócios ‘baralham’ os bens pessoais com os sociais. O advogado deu alguns exemplos ao i de comportamentos deste género: “O sócio que imputa as suas despesas pessoais, nomeadamente, alimentação vestuário e viagens à sociedade, pagando-as com o património desta; A prestação de serviços da sociedade em favor do sócio, por exemplo quando os trabalhadores da sociedade prestam serviços pessoais a um sócio, como trabalhos de construção civil na residência do sócio, continuando a ser pagos pela sociedade como se estivessem ao seu serviço; Um ou mais sócios agem de forma a tornar impossível a manutenção de uma contabilidade social organizada, servindo-se frequentemente do dinheiro e das contas bancárias da sociedade como se fossem seus e vice-versa”.

Existe ainda um terceiro cenário em que esta figura jurídica pode ser aplicada: a subcapitalização originária (logo na criação da sociedade) ou superveniente (já depois de esta ser constituída). No entanto, “a doutrina no caso da subcapitalização material da sociedade tem entendido que não deve ser desconsiderada a personalidade jurídica dos sócios mas apenas a limitação da responsabilidade dos sócios. Basicamente não está em causa a personalidade da sociedade, nem tão pouco um abuso desse instituto, mas apenas o aproveitamento indevido da limitação da responsabilidade”, refere o mesmo Carlos Reis Gonçalves. O advogado frisa ainda que esta é uma medida excecional que só pode ser usada na impossibilidade de utilização de outros mecanismos legais.

Atentado a terceiros Tal como o i já tinha noticiado, no caso de Joe Berardo, os juízes conseguiram provar, através de documentos e testemunhos dos moradores dos prédios onde o empresário tem os dois apartamentos, que os imóveis em causa – ambos na zona da Lapa, em Lisboa –, apesar de estarem em nome de empresas da sua esfera, pertencem, na verdade, ao comendador.

“Não conheço todos os contornos do caso concreto, motivo pelo qual não me posso prenunciar. Em termos genéricos parece-me que estará a ser defendida uma situação de atentado a terceiros e abuso de personalidade acima descrita”, disse ao i Carlos Reis Gonçalves.

Já na sexta-feira foi revelado que foram executados os títulos da Associação Coleção Berardo (ACB), proprietária das obras de arte cedidas ao Estado, revelou o Jornal de Económico. No entanto, o processo está em fase de contestação, sendo que Berardo pediu um prazo adicional de 30 dias para contestar a penhora da totalidade dos títulos da ACB, que termina a 23 de setembro, avança o mesmo jornal.

No processo, além do empresário, são também visadas três entidades ligadas a Berardo. A Metalgest, a Fundação José Berardo e ainda a Moagens Associadas, tendo já sido citadas no início de junho. O tribunal requereu também à ACB e aos bancos o inventário das obras, com o objetivo de determinar os montantes que estão neste momento garantidos para pagar as dívidas do empresário.

Recorde-se que o arresto de bens surgiu depois de, em abril, a CGD se ter juntado ao BCP e ao Novo Banco numa ação judicial inédita. Os três bancos portugueses têm como objetivo cobrar dívidas ao empresário madeirense de quase mil milhões de euros.

Os créditos concedidos pelas três instituições bancárias serviram para comprar ações do BCP, que, em 2007, viveu uma guerra interna de poder. Como garantia, Berardo deu as próprias ações do BCP, que acabaram por desvalorizar significativamente, trazendo perdas avultadas para os bancos.