Moscovo. A PIDE, os pauliteiros de Miranda, o galheteiro e Lagardère

Moscovo. A PIDE, os pauliteiros de Miranda, o galheteiro e Lagardère


Em 1965, o Benfica foi convidado para ir à URSS, mas foi proibido pelo governo. Seria o V. Setúbal a primeira equipa portuguesa a pisar um relvado soviético


Portugal, isto é, a seleção nacional, só jogou pela primeira vez em Moscovo em abril de 1983, nove anos após o 25 de Abril, longe, portanto, do tempo em que os apparatchiks lambiam os beiços gulosos do molho que era servido com as criancinhas à hora dos pequenos-almoços. Tinha havido aquele Portugal-URSS em Wembley, em 1966, mas fora em campo neutro, não entrava para o rol dos complexos que separavam inequivocamente os dois regimes.

Aliás, essa tal viagem de 1983 terminou num massacre dentro de campo (5-0 para a União Soviética), com a lesão definitiva de Humberto Coelho e com as queixas de Bento em relação à porcaria da comida que lhe tinham posto no prato e que lhe valeria a pilhéria de ter acordado, certa manhã, com um fardo de palha à frente da porta de casa. Como se vê, nanja que comunista não possa ter sentido de humor. Não é incompatível nem exige depuração.

No dia 20 de outubro de 1971, a imprensa portuguesa dava à estampa com certa dose de sensacionalismo: “A primeira equipa de futebol portuguesa a pisar um relvado soviético!” Era o Vitória de Setúbal.

Seis anos antes, o Benfica tinha sido convidado para jogar em Moscovo um jogo particular, frente ao Spartak, em troca de um elevado cachê, mas o governo de António Oliveira Salazar achou tal viagem não fazia sentido. Que ia o Benfica fazer a um país com o qual Portugal não tinha relações diplomáticas? Não foi. Não foi o Benfica, não foi a Amália Rodrigues, nem a Fernanda Maria, nem o Carlos Ramos, nem os pauliteiros de Miranda, todos convidados pela agência soviética InTourist para que se levasse a cabo um intercâmbio cultural.

PIDE metida ao barulho, Albino André, o responsável pela Turexpresso, que tratava das viagens dos encarnados, foi interrogado para se perceber, preto no branco, como surgira a ideia mirabolante, e a direção do clube da Luz com uma atitude desafiadora: “É nossa intenção manter intercâmbio desportivo com clubes de todo o mundo!”

Vitória Não foi o Benfica, foi o Vitória de Setúbal, sorteado para defrontar o mesmo Spartak de Moscovo depois de ter afastado o Nîmes na eliminatória inicial da Taça UEFA de 1971-72.

Na segunda mão, no Bonfim, a abarrotar com cerca de 40 mil pessoas (afinal, não era todos os dias que havia exibições do Circo Moscovo!), os setubalenses venceram facilmente um adversário que também (quem diria?) viria a queixar- -se pela forma como foi recebido. Quatro a zero: dois golos de José Torres, um de Octávio e outro de Jacinto João, decidiram a peleja.

A primeira mão fora lá.

Temia-se o frio moscovita e as temperaturas desceram até aos sete graus negativos – para os sadinos, mesmo muito negativos. Ao contrário do que aconteceria com os portugueses, os russos estiveram-se nas tintas para essa equipa que vinha lá das areias da Ocidental praia. Não foram mais de 10 mil os espetadores que arrostaram com a tarde agreste e se sentaram no Estádio Lenine que suportava, à época – ainda não se chamava, como agora, Luzhniki (onde se jogará a final deste Campeonato do Mundo) –, cerca de 100 mil pessoas. A estátua de Vladimir Ilitch Ulianov, essa, estava lá tal como está agora. E bem imponente.

“Toi, Vladimir Ilitch, est-ce qu’au moins tu frissonnes/ En voyant les tiroirs de la bureaucratie ?”, cantou Michel Sardou. Burocrático: eis como se poderia classificar o tal primeiro jogo de uma equipa portuguesa sobre um relvado soviético.

Um zero a zero muito a zero.

Os moscovitas eram treinados por Nikita Simonian, um antigo internacional de renome, e tinham gente como Osianin e Mirsejev na frente, além de um guarda-redes de truz chamado Kavazetchi. Matine, Octávio e José Maria faziam um trio de meio-campo que parecia um galheteiro, mas deram conta do recado. O mestre Mário Zambujal, que esteve no Estádio Lenine, registou: “Os adeptos do Spartak escutaram de pé o nosso hino. E alguns confraternizaram, nas bancadas, com as dezenas de portugueses que foram, nesta volta da bola, acompanhar a equipa. Trocaram-se cigarros, emblemas e abraços. Só faltou trocar cartões–de-visita.”

O Vitória de Setúbal fora à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas! Merecia ponto de exclamação. Depois, em casa, Lagardère (como Pedroto chamava a Torres) saltou mais alto que a torre do Kremlin.