Lua Cão. Viagem ao meio de uma sala escura

Lua Cão. Viagem ao meio de uma sala escura


A exposição comissariada por Natxo Checa na Galeria Walk & Talk para a sexta edição do festival de arte pública de São Miguel junta, num cinema lateral, obras de Alexandre Estrela e de João Maria Gusmão e Pedro Paiva. Um programa que dura 12 horas de onde nasce uma nova obra.


Foi “para escapar ao tédio lisboeta” que a partir do verão de 2006 Natxo Checa desafiou João Maria Gusmão e Pedro Paiva a fazer excursões artísticas pelo mundo. “Era do estilo, dinheiro no bolso que angariávamos a rapar concursos públicos e que cambiávamos em dólares, equipamento no porão do avião e, durante cinco anos, procurávamos os lugares mais inusitados para a criação artística.” Andaram por Angola, Brasil, Argentina, Marrocos, Chile, conta Natxo Checa sobre o trabalho que fez ao longo desses anos com a dupla João Maria Gusmão e Pedro Paiva, que lhe veio à memória anos mais tarde, quando em 2012 chegou à Lagoa das Sete Cidades com Alexandre Estrela, a imaginar que podia fazer o mesmo. “Mas a sua resistência a viajar e a sujar as botas entalou-nos numa cabana de madeira húmida no centro da cratera açoriana.”

Foi no último dia em São Miguel — conta à entrada de Lua Cão, exposição que comissariou nesta edição do festival de arte pública Walk & Talk, um cruzamento de filmes da dupla de artistas com outros de Alexandre Estrela num cinema lateral que pode ser vista até este sábado na Galeria Walk & Talk, em Ponta Delgada — que decidiram descer ao túnel que se dizia que havia na Lagoa das Sete Cidades, rebentado na década de 1930. Um quilómetro e duzentos “para sacudir a água quando havia enchente” e para instalar uma válvula de água potável. “Havia um certo suspense em relação a isso, tínhamos muita curiosidade.” E foram.

“Tínhamos fumado um charro, mas independentemente do charro, que não é uma coisa assim tão forte, começámos a andar e a ouvir barulhos, uma corrente de ar, depois lá para o meio o espaço abria, enfim, tivemos uma espécie de trip sem tomar ácido licérgico”, sorri o curador e produtor da Galeria Zé dos Bois, convidado para esta sexa edição do Walk & Talk.

Dois meses depois regressaram aos Açores e à gruta com um rolo de 600 metros de película, desenrolado pela lama do meio até uma das pontas, depois recolhido e revelado, para projetar em sobreposição com um vídeo feito por Alexandre Estrela enquanto percorreu o túnel de uma ponta à outra. “Viagem ao Meio”, que foi depois projetado na ZDB, tem a duração de três horas, as mesmas que o artista demorou a percorrer o túnel, e foi o ponto de partida para Lua Cão, com “Papagaio”, registo quase documental de um ritual de possessão feito por João Maria Gusmão e Pedro Paiva em São Tomé e Príncipe. Ritual  em que o espírito dos mortos entra nos corpos dos vivos, que os artistas filmaram. “Depois passavam a câmara aos monstros e o filme era um, e outro, ao mesmo tempo um filme realizado por eles e um filme de zombies, como num teatro de mortos-vivos.” Como na gruta da Lagoa das Sete Cidades de “Viagem ao Meio”, “uma luz ao fundo do túnel a meio de qualquer coisa”. 

Lua Cão, tradução à letra de Moon Dog, o fenómeno ótico em que a lua aparece duplicada, junta 11 filmes de Alexandre Estrela e de João Maria Gusmão e Pedro Paiva, num programa que dura das 14h às 22h e que começa com “Viagem ao Meio”, de Alexandre Estrela, interrompido para a projeção de “Papagaio” e retomado no final. Um cinema com uma bancada lateral em que é possível caminhar pelo meio das obras que se fundem num novo objeto artístico em que dificilmente se distingue a obra de um artista da dos outros. “Os filmes funcionam por simpatia, ou por partilha de ecrãs, ou por objetualização da imagem”, explica Natxo Checa, que adianta que será possível ver depois a exposição em Lisboa. “As imagens aparecem em multi-ecrã de maneira não aleatória, há um programa, mas não é uma narrativa.”