Artur Carvalho. “O trolha ou o doutor, para mim, são iguais”

Artur Carvalho. “O trolha ou o doutor, para mim, são iguais”


Aos 63 anos, Artur Carvalho é uma grande testemunha da mudança do Beato/Marvila de bairros operários para zona de luxo.


É uma figura incontornável do eixo Beato-Poço do Bispo-Marvila, uma das zonas mais em voga na capital, mas que foi durante muitos anos terra de dificuldades, de casas sem as mínimas condições, trabalho duro e mal pago na maioria das vezes. Mas Marvila é sinónimo de paixão para quem aí viveu e vive. Se os pátios mais pobres e todos os armazéns estão a dar lugar a condomínios de luxo e a um comércio fashion, na Rua do Beato, no Tasco Não Venhas Tarde, existe um verdadeiro símbolo da resistência ao avanço dos novos investimentos imobiliários. Ali, a tradição ainda é o que era e Artur é um verdadeiro gaulês, qual Astérix, que resiste aos romanos, neste caso, aos abutres empresariais. Com o seu farto bigode e a boina basca, Artur Carvalho, antigo guarda-redes do Clube Oriental de Lisboa, vulgo COL, consegue ter na sua tasca tanto o estivador e o mangas fadista como o artista plástico Pedro Cabrita Reis (que, por vezes, se entretém a fazer esculturas com garrafas e jornais), o empresário e eterno candidato à presidência do Sporting Pedro Baltasar ou os queques de Cascais. E o mais engraçado é que todos convivem tranquilamente. A refeição fica por sete euros e meio, mas Artur adora mimar os seus clientes com uma entrada de torresmos, de salpicão ou de queijo. Tudo como manda a tradição.

Aqui fica a entrevista a Artur Carvalho, um homem que é o espelho da vida de Marvila dos últimos 60 anos, uma terra que tem tudo para perder a sua alma. A zona operária de antigamente está a ser transformada em bairro de luxo e os antigos residentes e comerciantes têm o seu futuro suspenso. 

Nasceu aqui na zona?
Sim, no Beato, mais propriamente no Pátio da Quintinha. Tenho 63 anos. O meu percurso até hoje foi marcado por altos e baixos. Tive uma infância, como todos naquela altura, muito complicada.

Complicada como?
Éramos seis irmãos, hoje restam três. Nessa altura, as grandes dificuldades passavam principalmente pelos valores monetários que os nossos pais recebiam, porque eram muito baixos. As habitações também não eram condignas para se viver. Isto era um pátio onde a maioria das pessoas – que vieram do Norte – vinham para aqui porque esta era a parte industrial de Lisboa. Nesta zona, todos os dias passavam cerca de cinco mil pessoas. Havia muitos funcionários, era a Nacional, a fábrica da borracha, os vinhos… 

Abel Pereira da Fonseca.
Exatamente. Era os vinhos, aqueles armazéns cor-de-rosa. O dinheiro não abundava muito e os nossos pais fizeram muitos sacrifícios. Refiro-me mais à minha mãe. Todos os filhos acham que as mães são as melhores do mundo. Naquela altura trabalhava-se muito com o rol – íamos à mercearia, ao talho, e pagava-se ao mês, chamava-se o rol. 
O que faziam os seus pais?

O meu pai foi ajudante de camionagem e a minha mãe era operária na fábrica da borracha. Chegou a uma altura em que, com seis filhos, não era muito fácil trabalharem os dois. Por isso, passou a ser só um vencimento que entrava em casa. É certo que não havia as despesas que há hoje. Não havia eletricidade, água. 

Porquê?
Os pátios não tinham essas coisas. Nem casas de banho. Só com o 25 de Abril é que foi criado um impulso muito grande e todos os moradores foram fazendo melhorias. Aí, sim, já tinham as mínimas condições. O meu irmão mais velho, o Vitorino, como todos nós, foi trabalhar muito cedo. O meu irmão foi para a Nacional. O meu irmão Sérgio também começou a trabalhar na mesma fábrica. A Nacional era um polo de grande juventude.

Começaram a trabalhar com que idade?
Com 14 anos, como eu. Nessa altura começava-se com essa idade. Quando eu tinha 14 anos havia aqui a Efacec e fui para lá trabalhar para a parte de eletricidade, quadros elétricos. O meu irmão Renato, mais velho do que eu, também estava na Efacec. Aí, sim, o dinheiro já ia entrando em casa, tínhamos disciplina. E ajudávamos muito os pais naquela altura.

O dinheiro não era para vocês?
Não. Os primeiros eletrodomésticos, por exemplo, nós é que comprámos. Era uma vida um bocado complicada. Mas com muita honra, dignidade e educação. Foi bom. Saí e fui trabalhar para um sujeito, o Aurélio Alves, no Jardim Constantino. A partir daí, tinha eu 16 anos, comecei noutra vida, que foi a vida do futebol. Sempre fui um homem acanhado e havia aqui um sujeito no pátio, que era o sr. Tomás, que era roupeiro do Oriental. Nós jogávamos em frente, ali na praia. Era o nosso campo. E os velhos iam ver. E foi assim que fui para o Oriental.

O que é a praia?
É aqui em frente [junto ao rio, perto dos contentores, na Avenida Infante Dom Henrique]. Aquilo era um baldio, não havia nada. Metíamos duas pedras a fazer de balizas. No meu caso e no do Amílcar – que foi internacional – foi aí que começámos a jogar futebol. Nessa altura, o Oriental arranjava trabalho aos jogadores, até como compensação por não pagar muito. A maioria deles ia para os bancos.

E no seu caso?
O Gonzaga Ribeiro, que era presidente do Oriental, perguntou-me se eu não queria ir trabalhar e arranjou-me emprego na UTIC. Comecei nos serviços administrativos na sede, que era na Avenida da Liberdade, mas depois fui para as instalações nos Olivais. Mas já me estou a adiantar. Eu tinha a alcunha de Costa Pereira [guarda-redes doBenfica e da seleção nacional] porque, na altura, tinha dificuldades em dizer Costa Pereira e ficou essa alcunha. Fui uma vez aos treinos, já me mandava muitas vezes para o chão, todo roto. Mas fiquei lá, com o grande míster na altura, que já não está entre nós, que era o Edmundo. Depois tive uma certa sorte, já que tinha e tenho 1,74 metros. Num jogo aqui no Oriental com a Académica, o nosso guarda-redes foi expulso e para o substituir avançou um dos miúdos – e eu subi à força.
 

Com que idade?
Tinha 18 anos. Sou o quarto guarda-redes mais jovem a jogar numa primeira divisão. Nessa altura aconteceu uma coisa gira. Aquilo era um mundo que não é nada como o de hoje e, quando me apresentam ao Pedro Gomes, ele olha para mim e disse que tínhamos de comprar uns sapatos altos. Todos eles já eram homens feitos e eu comecei a treinar numa sexta-feira. Havia lá outro guarda-redes, que era o Zé Carlos, meu amigo, que já era sénior. Mas o Pedro Gomes apostou em mim. Depois tivemos o primeiro jogo em Olhão. Tive sorte, perdemos mas não fui o culpado em nada, e depois seguimos esse caminho. Tive a sorte de o meu colega que também tinha sido expulso, o Azevedo, me ter ensinado e amparado. O Oriental tinha realmente, na i Divisão, um grupo muito, muito bom. E assim foi o começo no futebol. 
 

O que fazia na UTIC?
Era administrativo. Em 1987, a UTIC abre falência, somos indemnizados e o que é que eu ia fazer? Não tinha conhecimentos de nada, o mundo era diferente, com grande complicações de trabalho porque não havia emprego.Portugal passava por uma grave crise económica.
 

Já tinha deixado de jogar?
Não, estava a jogar ainda. Acabei em 1988. Saí do Oriental, fui para o Atlético, para o Desportivo de Moscavide e daí para Rio Maior. Acabei no SL Olivais. Joguei durante 16 anos.
 

Qual foi o maior ordenado que teve como jogador?
Foi no Atlético, já pagavam pela assinatura. Além do Rio Maior, que também me pagaram pela assinatura. Ainda estive no Vialonga e aí também pagaram pela assinatura. Nessa altura, entre trabalho e futebol, já conseguia equilibrar as coisas. Sei que já ganhava um conto e 500 em 1973. Mas penso que na altura foi 120 contos. No Atlético, na ii Divisão. Na i Divisão, só representei o Oriental. Quando fechou a UTIC havia aqui isto onde estamos [O Tasco] e, como eram só pessoas conhecidas, tive algumas ajudas. 
 

O que era este espaço?
Sempre foi uma tasca. Era uma tasca que me faz recuar no tempo. Na altura havia aqui muitas pessoas de idade. Ainda era do tempo em que vinham para aqui beber um copinho de três, agora não há disso. Havia também um amigo nosso, que era de idade, que tocava guitarra portuguesa. Andavam aqui, brincavam. Não havendo condições em casa, o refúgio deles era nos estabelecimentos, não só aqui como noutras tascas. Era o ponto de encontro, dessa altura, dessa juventude. Faziam aqui uma vida bonita, não tem nada a ver com o que é hoje.
 

O que quer dizer com vida bonita?
Sentiam-se bem. Hoje, como naquela altura, a maioria das pessoas já de idade jogam às cartas num espaço verde com mesas e cadeiras. Aqui, nunca houve disso, nunca houve o interesse das juntas de freguesias ou das câmaras de fazer aqui um polo de nada. Naquela altura, a maioria das pessoas traziam a lancheira, chegavam aqui, deixavam a marmita e ao meio-dia, quando chegavam, estava aquecida. Era aquilo que se fazia antes de eu vir para cá. Depois de eu vir, não, é o que é hoje.
 

Entra aqui em que ano?
Em 1988.
 

Com experiência?
Nada, zero. Foi a necessidade. Não sabia fazer nada, não havia emprego. Mas houve esta oportunidade e vim para aqui. No meu tempo jovem havia aqui um clube que era o Beato Atlético Clube. Após o 25 de Abril, a parte mais jovem meteu mãos à obra para honrar o que havia aqui no pátio, que era esse clube. Abrimos a sede, fizemos obras, movimentámos muita juventude. Só que o poder político também não queria – e nunca quis –, e foi estagnado, não saiu nada. Nunca tivemos o apoio das forças políticas naquela altura. 

Tinha alguma revolta social?
Sim, todos nós temos uma revolta social.

Entra na política?
Quando foi o 25 de Abril, aqui no pátio havia um rapaz, meu amigo, da minha idade, que tinha sido preso e que estava em Caxias. O meu irmão Renato e outros colegas tiveram de fugir para França. Eu não, era mais jovem e a bola não me permitia. O primeiro partido que veio aqui foi o MRPP, era a força com mais violência, com uma política dura e pura. Fizemos muita coisa naquela altura que talvez hoje considere que não tivesse sido bem feita, mas também não interessa.

Que muita coisa?
Era destruir aquilo que era necessário. Em Marvila e Chelas, naquela altura, estavam a ser construídas casas para a polícia, GNR, Polícia Judiciária e para a PIDE, e eu estive na ocupação das casas. Foi uma luta muito renhida. Houve camaradas que na altura tinham grandes necessidades, mas primeiro arranjavam para os outros e depois é que era para eles. Tínhamos de dar o exemplo aos outros. 

Ocuparam casas.

Exato. Ajudei a ocupar, mas nunca ocupei. Vivia na mesma no pátio.

Foi nessa altura que fez a casa de banho?
Não. Só começámos a construir em finais de 75, altura em que aparece a eletricidade. Numa casa pequena viviam seis ou sete pessoas. Havia grandes dificuldades. Mais tarde houve outra grande luta por causa dos transportes. Aquela área lá em cima, em Chelas e Marvila, não tinha acesso aos transportes. Houve aqui uma revolta. O que fizemos? Obrigámos os autocarros a irem onde as pessoas precisavam. Um dia pensámos: “É hoje!” Entrámos pelo autocarro e dissemos ao motorista o que ele tinha de fazer. A população obrigou a que os autocarros fossem lá cima. Foi uma conquista do 25 de Abril. 

Como acaba com as marmitas no Tasco?
Naquela altura, já as marmitas não eram relevantes, já tinha passado o 25 de Abril. O poder de compra era outro e já não era necessário trazer as marmitas porque as pessoas já ganhavam mais algum dinheiro para que não fosse preciso. Os custos com a refeição não eram grandes – estas casas, um dia, vão desaparecer. As tascas não conseguem resistir. Se hoje vamos a um restaurante fora daqui levam mil e uma coisas, e bem. E aqui já dizem: “Tanto?” As tascas têm grandes dificuldades.

Entretanto casou-se.
Sim, em 1982, após a morte da minha mãe. Saí daqui do pátio e fui morar para Vale Formoso de Cima. Tive um filho, que é o Pedro, e ficámos por ali. Ainda jogava à bola e não tive oportunidade de o ver nascer porque nesse dia estava em Elvas, num jogo. Quando cheguei a casa é que tinha lá um papel a dizer que a minha mulher tinha ido para a maternidade. Não havia telemóveis. 
 

Como começa o Tasco?
Quando saí da UTIC, a nossa indemnização foi, ao dinheiro de hoje, 500 euros. Fiz uma sociedade com um amigo que tinha trabalhado comigo. O trespasse era de valores muito mais altos, mas eu tenho um amigo que o sogro dele trabalhava no banco. Ele disse para eu falar com o sogro para ver se havia a possibilidade de um empréstimo. Foi só por isso, senão eles não emprestavam. Eu não tinha nada. Mas a confiança era de tal ordem que autorizaram o empréstimo. Foi assim que paguei o trespasse da tasca. Eu e ele.

Quanto custou o trespasse?
Foi um valor razoável. Naquela altura foi de dois mil contos. Mas com tudo o que tivemos de acrescentar chegou quase aos três mil contos. Passado um ano, o meu amigo achou que não era a praia dele, falámos abertamente e fiquei eu cá sozinho, com grandes sacrifícios.

Estava na cozinha?
Não. Tínhamos três empregados na altura. Havia muito movimento. Como disse, eram cinco mil pessoas por dia a passar aqui, não a vir aqui. Só havia uma balança aqui, das camionetas, aqui na Nacional. Todos tinham de vir pesar vazios e cheios. Vinham ao Porto de Lisboa carregar. Eu tenho dito a algumas pessoas que, hoje, um motorista faz tudo. Na altura eram três: o motorista e dois ajudantes. O chofer não pegava em nada, eram os ajudantes. Era um mundo. Recordo-me que às seis da manhã tinha de estar aberto.

Tão cedo?
Sim, eram os estivadores! Tomavam ginjinha, Eduardino, bagaço.
 

Logo às seis da manhã?
Sim, sim. Batiam à porta e não comiam nada, era só beber. Estavam aqui até às sete, depois tinham de ir para ser contados e às oito horas, oito e meia é que vinham novamente. Eram os melhores clientes que as tascas tinham porque tinham um poder de compra muito grande. Os estivadores; os motoristas, não. Tinham senhas, davam-lhes uns tickets.
 

Aqui no restaurante?
Sim, eles recebiam os tickets para alimentação e depois gastavam aqui. E vinham também almoçar, chegavam lá para as 11h30. Naquela altura, tenho de confessar, os estivadores eram uma classe acima das outras todas. Mesmo acima dos empregados de escritório. Tinham poder e o poder era esse: o dia de amanhã não interessava. Foram realmente clientes fabulosos. 

Como decide ir para a cozinha?
Foi com a crise, no final dos anos 90. Fiquei sozinho. Era só eu e o meu irmão Renato, que trabalhava na Nacional, e quando esse meu amigo se foi embora, eu perguntei ao meu irmão se queria vir trabalhar para aqui. Veio e esteve até falecer. Éramos só os dois, tivemos muitas, muitas, muitas crises. Isto só sobreviveu porque éramos os dois. Se houvesse algum empregado, isto não sobreviveria. E vou para a cozinha por necessidade.

Sabia cozinhar alguma coisa?

Aquilo que a minha mãe e o meu pai me ensinavam. Não tinha experiência, não tinha nada. Acho que quando estamos numa situação de aflição recorremos a qualquer coisa. E foi o meu caso. Eu jamais pensaria nisto. Fui-me habituando. Umas coisas mal, outras bem. Uma das coisas que hoje tenho e que sempre falei com o meu irmão é que não queríamos aqui nenhum cliente como cliente, queríamos como amigo. E ainda hoje é assim. O cliente entra e sai. O amigo não, esse vem cá amanhã outra vez. Foi essa política que a minha mãe e o meu pai me ensinaram.

O que cozinhava nessa altura?
Comida tradicional, o que fazíamos em casa: as favas, o peixe grelhado, frito e cozido. Aquelas comidas tradicionais que em casa comíamos. Mais tarde, sim, vamos acreditando que na realidade não é tão difícil como pensamos, e depois chegam as novas tecnologias, começamos a ler, a tirar receitas, a ir à internet… Como em tudo na vida, há uma necessidade com a qual aprendemos o básico. Para fazer um refogado, eu sei o que tenho de fazer. Para fazer um peixe, sei o que tenho de fazer. Tenho as bases todas, e depois, com as novas tecnologias, vemos novas receitas, aproveitamos algumas coisas dessa mesma receita, mas a minha é a minha. Temos de dar um toque. O meu irmão Sérgio foi para os Estados Unidos e era cozinheiro em hotéis de Nova Iorque. Quantas vezes ele me telefonava a dar ementas, a explicar como se fazia. 

Que tipo de ementas?
Como fazer molhos, explicou-me como os hotéis faziam. Dava-me algo para que eu pudesse desenvolver. Depois, nós damos o nome e fazemos o molho que queremos. O cliente é que prova e vê se gosta ou não. O meu irmão foi o meu grande professor e devo-lhe muito. Foi uma ajuda muito importante para mim. Eu andava aos apalpões e depois aprendi muito. Mas ainda hoje estou a aprender. Um dos pratos que comecei a fazer aqui, as bochechas no forno, foi um prato que nunca pensei que tivesse o impacto que teve. E foi o meu irmão que me disse como fazer. Há realmente muitas pessoas que gostam das bochechas.
Ninguém vinha para aqui sem ser os estivadores e as outras pessoas que trabalhavam aqui na zona?
Os estivadores, com a crise, já não vinham cá.

Como conquista outro tipo de clientes?
Sendo persistente. 

Há quatro anos, não havia quase ninguém no Beato ou em Marvila. Como era a clientela nessa altura?
A grande crise, uma das maiores que houve na restauração, foi por volta dos anos 2000. Em 2005, já se começa a sentir. As pessoas deixam de vir porque não queriam gastar. Não sabiam o dia de amanhã. Tive dias em que só fazia cinco refeições. Não desisti por causa do meu irmão, porque éramos os dois. No final do mês não havia, logo se via no mês seguinte. Mas éramos sempre certinhos, foi uma das coisas que os meus pais me ensinaram. Como disse, não quero clientes, quero amigos. E foram esses amigos que vieram ajudar. Foram aqueles que não deixaram de vir, pediram-me para ficar. Tenho clientes que vêm cá há 30 anos. Não são clientes para mim, fazem já parte da mobília da casa. Esses amigos de há 30 anos foram sempre fiéis. Tive aqui um homem com um poder económico muito alto. Chamava-se Manuel da Levantina porque ele era dono da Levantina. Era aquela pessoa que, se estivesse em Setúbal ou em Peniche – porque ele fazia vários pontos do país –, ligava-me e perguntava o que tinha para comer. Dizia-me que às 12h30 estava aqui. Ele estava num sítio onde havia peixe fresco, eu dizia-lhe para ele ficar lá, mas ele preferia vir aqui comer. Era extraordinário, nunca me deixou. Sempre gostei de criar amizades. 
 

Os jogadores da bola e dirigentes também vêm cá.
Sim, do Oriental, que para mim é o clube do coração. Ainda hoje vivo para isso. Nasci lá. 

Continua a acompanhar o clube.
Há três anos entrou esta direção. Uma parte deles são meus amigos e há um deles que considero como irmão, o vice-presidente. Dou-me bem com todos. Houve uma altura em que o Oriental ia sempre almoçar antes dos jogos a um amigo meu, o Rui do Barrote. Decidiram mudar e vieram falar comigo, se havia possibilidade de ao domingo virem aqui almoçar. Eu disse que ao domingo não trabalhava, era o meu dia de descanso. Mas insistiram muito e eu não consigo dizer que não. Então, há dois anos que vêm cá almoçar antes dos jogos. Continuo a ir a todo o lado com eles.
 

Falha quantos jogos por anos?
Falhar? De há dois anos para cá, até hoje, acho que zero. Em casa e fora. Porque tenho este amigo, como se fosse um irmão, que é o Zé Rafael, ele tem carro e lá vamos.
E paga as viagens?
Claro que sim.

E já chegou a ser o único adepto do Oriental presente num jogo?
Não, porque normalmente vou com esse meu amigo. Ou um trio. Normalmente vou eu, o Muller e o Zé Rafael. Desde a época passada vai também o Luís e somos quatro. Este ano vai ser alargado para cinco porque o Marco também faz questão de ir.
 

Quanto gasta com o Oriental por mês?
A minha mulher vai ler, não posso dizer. (risos)

É uma paixão.
É uma paixão mesmo, não tenham dúvidas. A minha mulher diz que casei com o Oriental. Ela vai de férias e eu não vou, tenho compromissos. Vou só nos 15 dias de férias que temos por ano. Aos fins de semana, ela e o meu filho vão muitas vezes para Porto Covo e eu não vou. Durante a semana, então, é impensável. 
Como se torna um fenómeno em que tem uma clientela como Pedro Cabrita Reis, Pedro Baltazar, entre tantos outros? Tem várias classes sociais cá dentro. O menu é barato.
É muito fácil: mais uma vez, as amizades e os amigos que trazem outros amigos. Pela simpatia, por a casa ser familiar, como eu sempre quis. O trolha ou o doutor, para mim, são iguais. A simpatia é igual e as pessoas sentem-se bem neste meio. A primeira vez que veio aqui o Pedro Cabrita Reis – e já lá vão uns anos –, como isto é uma tasca, ele também é um homem que nada lhe subiu à cabeça, muito simples e com uma ideologia política muito interessante, entrou aqui, simpatizou mais com o meu irmão Renato, mas hoje, passados cinco anos, é um homem que traz outros amigos, muitas pessoas do mundo da arte. Ele traz os seus amigos, sente-se bem aqui, sente conforto. Aqui somos todos uma família. As pessoas sentem-se em casa.

Consegue ganhar dinheiro com preços tão baixos?
Não ganho muito. Nunca tive a ambição de ser rico e nunca terei. Aquilo que tenho chega-me para o dia-a-dia e para amanhã. Não tenho nem nunca tive despesas acima das minhas posses. Sou muito controlado, ganhe dez, cinco ou três. 
 

É normal encontrar aqui à porta, em cima do passeio, desde Jaguares até ao carro mais modesto. Pedro Baltazar também é um habitué.
Eu conhecia o doutor da televisão e esse meu amigo Zé Rafael, que tem também um restaurante no Bairro Alto, o Primavera, é cliente e amigo também dele. Houve uma altura que o trouxe aqui. Não deixou de gostar deste ambiente familiar e tem trazido colegas dele, os gestores do Sporting já estiveram aqui. Ele traz muitas pessoas conhecidas do mundo do futebol. E apraz-me esta situação. A minha tasca é familiar. 

Como acha que esta zona passou da miséria para se tornar um fenómeno da moda?

Ainda hoje estou para perceber. Isto vai ter um fim. Não estou garantido aqui, ninguém está. Sei que há muitos grupos interessados nisto, isto vai ser tudo arrasado. Já há cinco anos dizia que esta zona é mais ano, menos ano. Mas continuo a dizer que o capital está doidinho por meter as mãos nisto. Como disse, vai ser o oásis de Lisboa. A Baixa vai deixar de ser o que é. Quando veio a Expo, houve um grande interesse dos Olivais para norte e nada se fez para sul. Nessa altura decorreram muitas reuniões com uma instituição para fazer também esta parte toda, arranjar as fachadas e dar a conhecer aos estrangeiros. Mas ficou parado. Depois houve a situação da fábrica do material de guerra, que esteve muitos anos parada, como o gás. Numa altura iam avançar com as obras mas, depois, os solos estavam contaminados e estiveram muitos anos parados. Hoje estão a começar para sul. Isto vai ligar a Santa Apolónia. O elétrico que havia não vai ser como era, mas está tudo feito de Santa Apolónia até à Expo para ter o elétrico. Não vou dizer que é o metro porque é superfície, mas está tudo estudado. Naquela zona ali estão a fazer moradias de milhões. Veem aquelas moradias e não querem isto [zona mais antiga].

Era um homem acanhado, mas tornou-se muito mais comunicativo.

A idade vai ensinando as pessoas a ver o mundo de uma forma diferente. Era acanhado porque achávamos que éramos inferiores aos outros. A escolaridade não é grande, temos grandes dificuldades.

Fez a escola até que idade?
Até à quarta classe. Comecei aos 14 anos a trabalhar, não era possível estudar. Um dos desgostos maiores que a minha mãe teve, e isso marca-me até ao resto da vida, foi não saber uma letra do alfabeto. E faleceu sem saber uma letra. Com a idade, vamos avançando e vamos percebendo que não é ser inferior, não é o facto de o doutor falar de uma maneira que muitas vezes não percebemos.
 

Na altura do campo de futebol apanhava caranguejos aqui no rio.
Com certeza, a pesca era importante. Naquela altura da juventude, uma das coisas que havia nas tascas era comer os caranguejos. Muitas vezes, tapava o estômago. Então pescávamos assim: era uma saca de batatas em rede, com um arco, puxávamos em baixo e lá dentro tínhamos cabeça de peixe-espada ou rabos de bacalhau. O que mais entrava dentro dos sacos eram os camarões, havia muito aqui. 

Vendiam?
Comíamos. Mas às vezes vendíamos, claro. Nas tascas, nos restaurantes. Dizia alguém deste país, com grandes responsabilidades, que o rio era dos lisboetas. Tudo uma treta. Naquela altura, nós íamos para a pesca, mas hoje ninguém pode pescar porque está tudo vedado. O Porto de Lisboa cedeu o espaço todo e as firmas começaram a meter redes. Já não se consegue lá entrar. Essa pessoa que disse que o rio era dos lisboetas não sabia o que estava a dizer.
 

Como é que uma figura típica do Oriental, de repente, começa a meter um barrete na cabeça, calças aos quadrados, e torna-se um cozinheiro.
Duas senhoras que já frequentam a casa há 30 anos e, como costumo dizer, fazem parte da mobília, num Natal ofereceram-me o barrete, as calças e a jaqueta. Jamais poderia deixar de usar esta vestimenta. Não são as mesmas que me ofereceram, mas faço questão de continuar a usar. As pessoas acham giro, engraçado. Ainda hoje esteve aí um sujeito a dizer que parece que estava a usar o barrete dos bascos. Estas brincadeiras caem bem. 

Falava em ambiente familiar, mas a qualidade da comida também é importante. Tem mãos mágicas?
Não, claro que não. A comida é familiar e conjuga-se com o ambiente. Hoje, os casais mais jovens fritam peixe em casa? Não vão fazer cozido à portuguesa, favas, ovos escalfados com ervilhas, não vão fazer essas comidas em casa. E os mais jovens têm muito essa noção de ir comer essas refeições fora porque não fazem em casa. Antigamente era isso que se fazia nas nossas casas, não se vinha ao restaurante comê-las. A grande mudança que houve foi nessa parte também. Não acredito que um casal que tenha, por exemplo, um menino, frite peixe em casa. Nem que seja por causa do cheiro. E naquela altura fazia-se muito. Hoje, as senhoras não sabem cozinhar como no tempo da minha mãe. Não era possível trazer cinco ou seis filhos ao restaurante, não havia dinheiro. Então tinham de fazer. E chegou a um ponto em que ninguém quer ter filhos.

Também só teve um filho. Porque não teve mais?
A Paula, quando teve o Pedro, teve muitas dores e muitas dificuldades. E disse-me que não queria ter mais filhos. Houve uma altura em que me chateei. Tenho amigos meus que são filhos únicos e diziam que sentiam um vazio. A Paula, naquela altura, não quis, mas hoje diz que era feliz se tivesse tido outro. Naquela altura tive de acompanhá-la porque a acompanho nos bons e nos maus momentos.