Nuno Júdice. Últimas notícias da nossa juventude

Nuno Júdice. Últimas notícias da nossa juventude


A morte de Júdice no passado dia 17 de Março por agora só gerou o palavreado encomiástico próprio das brochuras mortuárias, mas seria importante recuar meio século e ter em conta como a sua estreia trouxe um ímpeto de renovação da poesia que pela última vez correspondeu a essa “primavera magnífica” que se espera da…


Esqueçamos por um momento aquilo em que Nuno Júdice se tornou, já que a morte significa uma possibilidade de levantar de entre os escolhos de uma vida certos elementos resistentes, que se recusam a ser confundidos com a pura matéria degradada e sem expressão, e isto serve-nos uma oportunidade de “apanhar as cinzas da alucinação” e recompô-las, reaver o filme de uma vida segundo uma montagem mais aliciante. Vir propor cortes decisivos, resgatar algo de verdadeiramente ambicioso e que se perdeu no caminho. Movido por um ímpeto extraordinário, quando iniciou as suas investigações, a escrita de Júdice definiu-se pela busca incessante da poesia, de acordo com uma suspeita de que algo estava a ser atraiçoado nesta aventura ao circunscrevê-la a formas estanques, textos demasiado polidos, intuindo como mesmo o poema pode ser uma concessão ao engodo da literatura, e como toda a sua galanteria acaba por produzir um casulo enredante, preferindo a fissura, procurando impor um fio de respiração que não se deixe prender ou conter.

Júdice reconheceu que a poesia deve permanecer fiel a uma perseguição que se confunde com a circulação de realidade. A alusividade da poesia que começou por nos dar a ler é a de um ser insaciável, aquele que não se conforma em ser um narrador directo ou um explicador, mas esse buscador que se compraz em descontinuidades, em ilusões sinuosas e enganos, um curiosador de provérbios delirantes, daí o inacabamento dos poemas, a naturalíssima imperfeição destes, como se fosse nervosa a inteligência e funcionasse melhor nas ocasiões em que não a vigiam. Ele vem saborear os sinais de um colapso, tendo claro como os signos linguísticos não apreendem propriamente o real, e perderam a sua virtude comunicativa e formadora, restando apenas modos de afeição pessoal. A saliva teria secado na boca para tudo o que não seja da ordem da patologia privada. Abatida a razão, esvaziado o prestígio das concepções iluministas e dos sistemas filosóficos, já ninguém perde demasiado tempo com a coerência, e isso abre espaço a uma súbita invasão de forças estranhas, de espíritos caóticos, enredos dominados por vertigens passageiras, mas não menos inquietantes.

Começa tudo a pulsar e a estremecer, a perder os contornos exactos. De um mundo perdido não deixa de nos chegar o perfume de tudo o que persiste mergulhado naquele íntimo espaço obscuro onde os seres investigam esses traços com os quais poderiam recompor o rosto. No poema que abre o seu livro de estreia, – “A Noção do Poema”, 1972 –, Júdice refere “a esplêndida antiguidade/ do desvio, a íntima conformidade de um estilo memorativo, de uma poética/ exilante (…) a engenharia meia-noitecida das manipulações/ narrativas”. Quando aquela obra se iniciava, mostrava-se impregnada de um desejo de degradar as “gramáticas oficiantes”, de corrompê-las e a própria “memória ocidental” através dessa exposição a influências desordenadoras. Júdice preconizava “o contágio temporal do poema”, como se o próprio tempo fosse capaz de produzir o seu vírus, presságios penetrando a carne e fazendo-nos encarar o mundo como fantasmas, reconhecendo que são estes os habitantes do futuro, pois têm contacto com tudo aquilo que nos aguarda.

Não importa se as suas visões virão a cumprir-se ou não, o que é significativo é essa capacidade de escutar as pulsações de tudo o que é distante, levantar a delicadeza daquilo que não está consumado, que existe no domínio do imperfeito, às vezes do incompreensível. “Eles são testemunhas fronteiras de/ um hábito de divindade, construtores perceptivos/ do avesso, intérpretes da abjuração”, escreve Júdice, e logo admite “a prática de uma aristocracia tumultuosa, longe das métricas conformadas/ dos cultores de celebração – elogiando a intenção paranóica/ do poema, o desespero enfático da solidão”…

Chega a ser cruel a forma como este jovem poeta parece prenunciar nestes versos iniciais a sua própria degradação à medida que declinou este sentido vitalista, para o qual não está assegurada uma posteridade ou outra forma de glória que não seja a de ser um elo no tráfico entre roubadores do fogo, e isto à medida que ele mesmo passou às funções de agente das “alfândegas burguesas”, impondo-se “a prudência mercantil de uma cultura/ mediocrizada”. Mas então estava ainda comprometido com essa “flor libertadora”, preferia uma “música indecisa”, e desde logo “a disponibilidade sofredora”, confiando que a distância pela virtude que se adquire do lado da insistência encontra uma forma de penetrar e se enraizar na frase.

Por esses tempos, Júdice recusava os seus esforços à eternidade, e incitava o seu poema a escapar “às solicitações mórbidas de um espaço moral”, preferindo ensinar “corrupção… ódio… as formas/ plurais de um amor diverso…” Então, “as palavras e as frases sucediam-se ao ritmo da sua própria respiração”, era o próprio texto que parecia construir-se como um organismo, sentindo-se vivo, adquirindo uma capacidade de se relacionar com o mundo e o infinito ao seu redor, de desenvolver e afinar um órgão do espanto. Sem abdicar do seu impetuoso isolamento, reconhecia-se parte de “uma geração agressiva”, como caçadores embrenhando-se numa “floresta de fragmentos”, aproveitando a “efervescência das ruínas” para estabelecer uma “relação imaginária, ou passagem da realidade ao mundo sobrenatural da qualidade poética”.

Era possível à consciência ficar saturada de objectos desordenados e, mesmo assim, não perder essa espécie de gozo em afundar-se mais ainda, descobrir um outro nível, como se a vida não tivesse outro sentido que essa permanente refrega, essa prazerosa maldição de se entregar ao instante seguinte. De algum modo, começava a surgir um conjunto de poetas que aceitavam essa impossível primeira pessoa que aguenta a variação absurda de sensações que uma terra devastada impõe na intimidade daqueles que a habitam… “morrer seria um trabalho de inteligência, um exercício cuidado – criar distância, invocar esquecimento, enumerar. Os seus últimos anos foram a paciente preparação do culto supremo da agonia”.

Tantas vezes era nas propostas mais instáveis que se recolhia a vibração de um vigor realmente comprometido com a experiência deste tempo, da época. E Júdice reconhecia como “a continuidade da coisa viva não se sustenta da sua imutabilidade”. Assim, esta escrita dispunha-se a investigar o além, opondo-se àquela poesia do que fica ao nosso alcance, desse presente imediato que se inscreve nos nossos dias sob um signo de extinção, de incapacidade de se regenerar.

Em tantos poetas que vieram depois, sentimos como a sua denúncia da realidade sufocante em que vivemos insufla uma espécie de nostalgia engatilhada a um certo instinto utópico, que aponta não para um tempo ou um lugar melhor, mas um lugar indisponível, um lugar que nunca existiu. Vemos muito isto num desencanto que julga cantar, mas que simplesmente adere à nostalgia nesse sentido postulado por Michael Kamen quando lembra que esta produz uma espécie de contrafacção histórica, uma história que se aliviou da culpa ou do remorso. O nostálgico não é alguém que está preso ao passado, mas alguém que se abrigou numa antecâmera, colocando-se à margem, não estando imerso na memória nem afecto a uma vivência do presente.

Isto é muito evidente nessas desgostosas denúncias de poetas como Manuel de Freitas e outros da mesma geração, as quais nunca implicam qualquer combate ou compromisso com este tempo, mas são meramente uma forma de se fazerem representar como os últimos espécimes da nobreza de um tempo perdido, fingindo cultivar um apego ao real quotidiano e à experiência, mas ilustrando tudo isso por referência a um reino nebuloso que não passa afinal de uma fantasia.

Em certo sentido, as primeiras composições de Júdice estão um passo à frente e são posteriores a este logro, uma vez que se esforçam por “sair do lugar estéril da memória”, deixar esses quadros referenciais elusivos, reconhecer como a poesia só pode ser encontrada numa forma de teatro, ou seja, em representações que se sucedem sem fixar ordens de valores dogmáticas, como um exercício de uma expressão insubordinada, que não aceita ficar refém de banais composições de ordem social, como a pose e os pequenos mitos provinciais de ordem biografizante. “A poesia é o teatro, diz-me uma voz interior. Representar-me/ em cada poema, montar-me um personagem, uma acção, um ambiente.// Numa segunda revelação, vim a saber que toda a identidade/ é falsa, que eu próprio só acessoriamente sou eu próprio.”

Sem esses mitos menores da identidade, sem a profilaxia da sua pose, um poeta como Freitas vê dissolverem-se todos os seus pontos cardeais. Pelo contrário, ao admitir uma “expressão descuidada”, Júdice parecia entender a promessa de uma poesia que se libertasse “do jugo implacável da forma”, ordenando a confusão do pormenor e destruindo os inconvenientes da influência… “Assumiria o poeta/ então o destino impessoal da sua poesia, seria ele próprio o próprio/ mistério de ser, uma presença obscura nos outros, insubstituível personagem de si próprio, inventado inventor.”

Em vez de se misturar às “populações mórbidas/ do poente”, aquele miúdo reclamava “um processo convulso de composição”, como “variações do rosto”, registando intimamente “a tonalidade visionária das astrologias”. Pode ser que um homem não consiga elevar-se da sarjeta, mas o olhar é em si mesmo um destino, e cada tipo que se aplique em refazer a sua genealogia tem as condições de recriar infinitamente a sua experiência e a própria realidade. “Nasço na embriaguez dramática/ dos ecos irrepetíveis (…) o poema/ é uma enumeração de lugares, uma experiência do mito (…). Eis a cidade, rima/ alcoólica das mais antigas mecânicas.”

Se Júdice nunca atingiria a perfeição formal, o enlevo barroco que tornou a retórica miserabilista de Freitas um veneno tão mortiferamente eficaz, percebe-se como insistia no “triunfo da fecundidade”, enquanto esta relação posterior inscreve-se já como a cíclica rejeição dessa primavera magnífica e que é expressa com aquele orgulho inútil dos profetas da lengalenga decadentista. Já em 1972, ano em que Freitas nascia, Júdice parecia antever essa tremenda força reaccionária que cobre de noite a poesia, e proclamava: “Escrevo contra  a exigência ética dos cultores de realidade.” Ele manifestava a preferência pela “linguagem conceptual dos viajantes da ruptura”, identificando a própria alma com esse “movimento de vulnerabilidade”.

Este exercício poético está do lado de uma espécie de religião indecisa, que não tem um caminho seguro para a felicidade, que aceita a desgraça e o desvario, até a loucura, não conhece a cristalização ideal, e está muito próxima da lição de D.H. Lawrence quando este referia que não há uma rosa perfeita, mas algo mais incerto e ameaçado, e que é nisto que reside o seu encanto, a sua força de promessa, nesses momentos de apreensão do que está para lá da realidade dominada pelos nossos sentidos.

O balanço para o que há-de vir é feito tomando porções do tempo, desordenando-o. “Quem me procura? Quem resiste à ordem do tempo?”, interroga Júdice. O verso renova-se no ódio pelas noções que circulam segundo o gosto da multidão, lívida, sonâmbula. Júdice ia ao ponto de professar o seu ódio pelas palavras, “o nojo do poema, dos gestos/ habituais da frase”. Exprimia “uma vontade de resistir… de ficar no poema como em lugar nenhum…”, e de estar disponível assim para absorver esses ritmos mais largos e vastos: “As ondas derramam as frases sumptuosas/ de um continente excessivo. Eis a solenidade instante do desejo.”

Esta poesia, imensamente frágil, decorada de elementos caóticos, muitas vezes patética, não deixa ainda assim de estar mais próxima dessa revelação incarnada do fluxo, vibrando das suas mutações súbitas, entre riso e ruína. Há aqui um desejo de desbravar a matéria desse futuro infinito, sendo sensível à “música insalubre das aves litorais”, pois se estas se alimentam do lixo, também são as que recebem aqueles que regressam do outro mundo. Estes versos dão-se ao acaso, captam subtilezas e achados na vibração do que se reflecte momentaneamente no corpo cheio de escamas do idioma. Em vez de ficar encadeada com brilhos imperecíveis, esta poesia lança-se à conquista dos elementos mutantes, nessa relação rápida e fluida com o resto das coisas.

Sem princípio nem fim, há aqui algo de indomável, um movimento urgente e insurgente. “O poema transforma a realidade”, defende Júdice, lembrando como a audácia transfiguradora consegue animar de novo aquilo que parecia esgotado. “Ele é a fingida memória do poeta”, acrescenta. Mas lembra que se trata de um trabalho doloroso, este, de criar memória, de reconfigurar o que já se sabe, e, por isso, nunca está concluído, não se dá por satisfeito, nem se entende com o regime da perfeição. O poeta é um habitante dessa cidade sempre ávida, sempre instável, sempre em recomposição. Esse “lugar fragmentário/ da insinuação, génese vulcânica dos estilos cinerários, ânfora desenterrada/ das eternidades de obsidiana! Ó lugar, maneira nova das cintilações vesperais,/ arde!, arde!, nos silêncios antigos de uma inanidade/ agrícola…”

O poeta faz-se seguindo “o coração perecível do desejo”. Ele não fala de coisas cristalizadas e isoladas, fala do impulso, da ambição de ir além, de capturar essa presa de tal modo arredia e veloz que, com os seus movimentos, transforma o caçador, captura-o na sua perseguição obstinada, de tal modo que ele mesmo se transforma num mecanismo de pura ânsia e vertigem, ficando cativo de um fracasso esplendoroso.

“A beleza concluída e a simetria calculada são próprias das eternidades estáveis e imutáveis”, diz-nos Lawrence. “Mas no verso branco procuramos a vibração insurgente e nua do momento instante. O que a maior parte dos versilibristas consegue é retalhar a forma bela do verso metrificado e servi-la aos pedaços, como substância nova chamada vers libre. Eles desconhecem que o verso livre tem uma índole própria, que ele não é estrela nem pérola, mas sim instantâneo como plasma. O seu objectivo não se situa em nenhuma das eternidades. Não tem conclusão. Não tem estabilidade que possa satisfazer os apreciadores do imutável. Nada disto. É o instante, a essência, a própria nascente donde brota em jacto tudo o que será e foi. A expressão é como um espasmo, contacto imediato e simultâneo com todas as influências.”

Sem ser capaz de engendrar uma substância imorredoira, a poesia de Júdice soube estudar os elementos que permitem compor uma tempestade a partir dos signos linguísticos, a “tempestade não apenas/ como aparição suprema, mas precisamente sob este aspecto,/ como poder/ e como figura, entre as outras formas do céu; e à luz sagrada,/ como princípio modelador das formas e como genial configurante,/ de modo que a sua força se juntasse aos diversos elementos naturais,/ constituindo a fonte magnífica do poema”.

E é curioso como em nenhum outro dos poetas portugueses se reflecte de forma tão aguda a crise do verso, como se Júdice pressentisse que a poesia estivesse em risco de perder essas “vogais marítimas” que fazem do poeta aquele que canta o mar como os afogados.

Havia um tremendo desgosto pela poesia que melhor engendrava os mecanismos da sua reprodução, e este jovem poeta pressentia que a prosa poderia introduzir um efeito de corrupção e pânico revigoradores. Procurou congeminar esse elemento bárbaro de dissolução, para que não fosse a forma a quebrar o ímpeto em relação aos materiais que devem falar no poema. O som e o sopro não deveriam determinar todo o alcance da língua, mas era preciso uma verdadeira visão, um olhar intersticial e que fosse capaz de coser um sentido mais pleno da existência.

“A velha perspectiva arruinou-me os ouvidos”, escreveria ele uns anos depois… Mas em 1972, surgia um segundo título, “O Pavão Sonoro”, e esta breve plaquete abria com estes versos: “Comecei a ler-me com uma obscura sensação de desgosto./ Talvez, do outro lado do que eu tivesse escrito, o mundo (ou aquilo que, à primeira/ vista, é real e concreto) também ele sofresse de ausência,/ separado assim do que o ligava e unia num mesmo corpo, ou objecto./ Nesta ordem de ideias, eu dispusera já todos os elementos da vida./ Entre eles, mas a outro nível,/ estava o poema (…)”.

Às tantas torna-se claro como a poesia, no entender de Júdice, se convenceu de tal modo dos seus poderes, que se desligou dos fundamentos da realidade, e talvez se fosse infectada pelo espírito da prosa então isso pudesse alimentá-la de uma nova perturbação, levando-a à “descoberta de certas tonalidades mórbidas de consciência”. Não se dá uma verdadeira transfiguração sem produzir uma harmonia entre elementos opostos, e a poesia alimenta-se do risco e da incerteza, e em lugar de um ideal de pureza, retoma o seu efeito combativo apenas se souber articular “fragmentos da voracidade antiga, lugar/ da diferença; depois a ordem, o conflito,/ a  continuidade, a ruína”.

Retomemos a lição de D.H. Lawrence na introdução americana a New Poems: “Na minha flor de lótus deixa-me sentir o lodo e o céu. Deixa-me sentir o lodo denso no sorvedouro dos limos e a voragem dos ventos do céu. Deixa-me sentir uns e outros, no contacto mais puro, nudez de um sorvedouro denso, luminosidade que passa, nua. Não me dês o que permanece fixo, assente, estático. Não me dês o infinito nem o eterno; não quero o infinito nem a eternidade. Dá-me a brancura a fervilhar, a incandescência e a frieza do momento incarnado: o momento, essência de toda a mudança, brevidade e oposição”.

Em 1973, no livro “Crítica Doméstica dos Paralelepípedos”, Júdice parece assinalar o perigo de recairmos no “tempo previsível da nostalgia”, e podemos ouvi-lo a juntar-se a outros numa conversa imaginada, fazendo apelo a essa capacidade da ficção nos surgir como uma experiência posterior e que alterna elementos da tradição com as angústias do presente, permitindo dobrar o tempo, fazer coincidir inteligências separadas entre os séculos, culturas e idiomas para responder ao desafio do tempo presente. “Um outro poeta, falando/ da imagem velada de Saîs, conciliou o mistério com/ a vontade de clarificação/ que preside ao discurso. Afirmou ele que não basta/ situar a loucura no horizonte/ do desejo amoroso, nem evocar os limiares/ temporais de uma lenda, mas antes fundir/ razão e des-razão na subjectividade visionária do/ poema. Esta teoria da composição/ deu origem às múltiplas profecias e livros do/ destino que então surgiram. Os poetas/ enlouquecidos obstinaram-se na suspeita coerência/ do presságio. Muitos deles,/ ornamentando os seus trabalhos com magníficas/ concepções, sobreviveram ao agnosticismo/ das épocas; outros, permanecem ainda hoje/ incompreendidos ou, até, desconhecidos;/ e enquanto o saber os degrada, eu os lembro (…).”

Júdice vê na literatura uma espécie de organismo que consegue digerir diferentes tempos e, através da poesia, ficcionar uma memória em que é possível criar essa imensa casa assombrada onde ecos e vozes se respondem, de tal modo que a solidão se torna um compromisso de um corpo com um enredo que reside para lá da sua vida. De algum modo, mesmo essa voz de vozes que Júdice procura construir responde como uma vingança depois de, no seu primeiro livro, ele ter-nos deixado expressa essa tão profunda ira que alimenta o ímpeto de toda a literatura quando nos diz: “Não perdoo a ninguém/ a minha solidão.” Anos mais tarde, adiantará como através da escrita “a minha presença se juntava ao fulgor/ obscuro dos seres passados. Eu era um deles, círculo de alma/ na morte prematura, repetindo-me no reflexo invertido/ de um espelho futuro, princípio anterior ao longínquo fogo”.

Este amplo organismo circulatório fora já intuído por Joaquim Manuel Magalhães, que numa crítica a esta obra não só referia esse regime de “transposições anímicas” e as “imaginações biografizantes” que tantos poemas de Júdice entretecem, como notara que “o diálogo com os espíritos, o despedaçamento e regeneração dos órgãos do corpo, a tentativa de informação acerca dos mundos sobrenaturais, infranaturais, íntimos, traduzem a vitalidade simbólica que também pode ser a poesia, a sua busca de transmissão e conhecimento de outra vida”.

Trata-se de um quadro de compreensão do fenómeno poético que hoje está praticamente ausente da reflexão, não apenas do lado da crítica, como da própria respiração da poesia que se escreve e publica, como se aqueles que se debruçam sobre esta forma de contrariar a mortalidade inscrita na nossa biologia não se dessem conta de como este é o elemento decisivo na própria transcendência que caracteriza a relação humana. Não parecem reconhecer como ao longo da história, os homens alimentaram uma cólera por não serem deuses, e daí, através das suas criações, se aplicassem numa admirável vingança.

Num poema intitulado “Modificação de Deus. Aprendizagem”, às tantas Júdice deixa-nos estes versos: “Há uma razão profunda no interior mesmo da morte./ Ser é um corpo que o efémero transforma. O infinito floresce/ nas sangrentas feridas divino. Só o único permanece/ sobre o excesso que anuncio. Eis-me/ o último dos poetas cegos, guiado ao acaso, com a consciência de ir/ vertiginosamente contra o destino, bêbedo de luz…”

Ao reclamar a mesma deficiência de Homero, Milton ou Borges, Júdice assinala esse esplendor que só é possível alcançar através do mais doloroso e transformador dos lutos. No fundo, são os cegos aqueles que verdadeiramente estão capazes de se embebedar de luz, pois concebem interiormente um sol capaz de fazê-los corpos com luz própria. Também assim a imortalidade é uma fome que só nasce dentro dos seres que se entregam à metamorfose que opera em nós essa angústia da impermanência.

Assim, tacteando no escuro, sem forçar uma tese estrondosa, Júdice conseguiu naqueles primeiros anos e de uma forma por vezes soluçante, desengonçada, somando fulgores abruptos, versos tantas vezes desleixados, como quem abre uma ferida na própria cabeça, e foi capaz de construir “um equilíbrio alcançado pela ruína, a doença, a morte, pelo corpo como chaga e como dor” (JMM). Temos tido tão poucas aberturas ou devaneios verdadeiramente audaciosos na poesia portuguesa que se vem publicando ultimamente pelos poetas mais jovens, mas Júdice, com 24 anos dava-se conta disto: “Não é só a História a expectativa de um grito. Também a própria função física de um corpo a contém e transmite”… E há mesmo um poema em que este jovem parece profetizar aquela que viria a ser a tendência dominante da poesia portuguesa na primeira década e meia deste novo século, e particularmente da influência que teve sobre ela Manuel de Freitas: “nos seus gestos desastrados e nas suas expressões/ vulgares, transmitia um grave desgosto,/ sob a forma do desprezo por quaisquer tentativas/ de contacto, de comunicação espiritual,/ de trocas afectivas. Um dos seus livros,/ chamado precisamente ‘Morte! Morte!’, acentuara já/ esse lado mórbido e doentio do seu carácter,/ e deixava entrever uma imaginação labiríntica,/ vasta, embora escassa nos seus limites poéticos,/ e finalmente apocalíptica.”

Ao contrário deste perfil aziado, a força da poesia de Júdice estava num certo elemento de “beatitude”, na sua “obstinada busca da unidade perdida”, como assinalou António Ramos Rosa, na “perseguição desse instante em que o Uno se revelaria como o mistério vivo da criação poética”. E se ele falha, se nunca se contenta nem finge produzir resultados satisfatórios, se não aparece saciado, isso diz-nos como está comprometido, não com uma qualquer pose, mas com essa renovação de um ímpeto que depende mais do fracasso que de qualquer êxito.

No fundo, aqui a poesia não se confundia com uma forma qualquer de superioridade ou de triunfo pessoal, a metamorfose constante a que o poeta se submetia era empreendida no sentido de ele ser o elemento que faz deflagrar essa combinação de elementos e realidades díspares, e, como assinala Ramos Rosa, esta “metamorfose simultaneamente cósmica e poética” implica a destruição da individualidade, sendo o tom impessoal da poesia de Júdice o que confere a alguns dos seus versos “uma exemplaridade mítica”.

Hoje, pelo contrário, em vez de uma capacidade de alimentar novos sentidos e parâmetros de compreensão, a poesia tem vindo a professar uma espécie de ateísmo literário fundamentalista, ao mesmo tempo que se enreda num egotismo que, se finge insolência, não passa de uma forma de acatar as instruções do “consumismo que tudo teatraliza para o social” (JMM).

São os poetas que se julgam mais subversivos aqueles que, com a charlatanice desse seu repúdio generalizado pela época, assumem uma forma de adesão conformista, capitulando sem chegar a oferecer qualquer resistência. Por seu lado, se Júdice pode ter acabado por ceder ao seu próprio negativo, antes teve a audácia de procurar uma música própria, de elaborar um “ritual autónomo da canção” (JMM), reconhecendo que a sua força viria do despojamento do humano, de uma sensibilidade aos elementos exteriores. Não alimentava essa impostura de uma identidade que se concebe como uma ética exemplar e implacável, mas acolhendo a fragilidade própria de quem, afinal, a maior parte das vezes não sabe bem que rumo assumir, e, por isso mesmo, ferido de ausência e de horror para consigo mesmo, adquire uma paixão pelo que lhe é estranho.

“Nunca acreditei nos meus poemas”, diz-nos Júdice. “Sentado, a escrevê-los, roía-me a obsessão da vida.” Ora, a vida em si mesma é uma fabulosa incógnita, e de tanto ir atrás dela o poeta desenvolve um vício pelo horizonte. Outros porém contentam-se em ser “bebedores de redundância”, entram num frenesi sentencioso, e porque não viveram nada, desatam a injuriá-la, apenas para se distraírem por um bocado da falta desse “profundo desejo de ser” que apenas se colhe escapando à frivolidade do ego. “Como um cavalo, relincho; sinto, enfim,/ que me falta gente, conversas, o abrigo/ de vozes num labirinto que decifrei”, escreve Júdice.

JMM vinca como ele “cria um limiar melódico onde a acentuação lírica da intenção narrativa transporta para o espaço romântico essa forma que fora inicialmente feita para cantar e contar a aventura da exterioridade, e aqui surge como a interioridade radical de uma aventura íntima entregue à aspereza do contacto com o mundo, ao conflito entre o ensimesmamento e a árdua disponibilidade para os outros”.

Contra a relação póstuma e cínica que parece encarar cada novo dia como uma espécie de escândalo ou um sinal da imoralidade da existência, Júdice põe a tónica no grau de exigência que se pressente nos textos através dos quais o poeta oferece do mundo a sua versão.

Muitos poetas servem-se da realidade como desculpa, aliviando-se assim de qualquer exigência criativa. Assumem que não fazem mais que relatar aquilo que lhes macera a retina, e a sensação que fica é a de que só dão pelo lado mesquinho da existência. Com a sua “epopeia das reticências”, se Júdice estava longe de ser uma presença revolucionária no plano da poesia portuguesa contemporânea, mostrou-se empenhado em combinar elementos do romantismo com as vanguardas, aquela ousadia imagética dos surrealistas com o fulgor da poesia beat norte-americana, assumindo esse dever de continuação, misturando na voz a influência de raízes doces, com uma aventura que, como frisa JMM, surgia “no limite de tradições que, por acentuarem já um ligeiro anacronismo, permitem jogar com um certo esplendor retrospectivo as tentativas de sentido e de técnica articuladas”.

Não foi um poeta propriamente original, e já neste século abandonou-se àquela poemorreia que, às tantas, nos embaraçava a todos, sobretudo devido a essa necessidade de se vingar do desdém intramuros valendo-se de intrigas de secretaria para açambarcar prémios e traduções. Acabou por ser o seu próprio cangalheiro, exibindo aquela postura mole e traçando um contraste impiedoso face ao espírito que ressalta dos seus primeiros livros, fazendo-se cercar do género de oportunistas que acorrem como moscas para essas infinitas despedidas, abrindo espaço à gestação de palavreados bajuladores que deixam a lembrança de um poeta reduzida ao seu mais patético estertor. E, no entanto, mesmo seguido por essas tristes sombras incansáveis e pelos sóis amargos do ocaso da vida, não devemos deixar que esses sinos tresvariados se imponham de tal modo que façam esquecer o poeta que apareceu entre nós com um rosto tão variável, “contaminado por sucessivos cruzamentos monstruosos”, exaltantes, deixando-nos uma poesia dotada de uma rara qualidade crepuscular.

Com um bom número de frases abertas para o caos, arriscando o início, recolhendo esses sons ouvidos no fundo dos poços humanos, se Nuno Júdice não foi capaz, como nos prometera, de deixar “o cavalo moribundo/ como um fruto podre”, pelo menos soube defender o ideal da juventude de forma quase heroica enquanto esta lhe pertenceu, impregnando-a desse “murmúrio de génesis”, e deixando claro que não é a vida que está falha de vida, mas a morte que viu por fim triunfar a sua agência de publicitários.