Passado ao abandono na Escola Afonso Domingues

Passado ao abandono na Escola Afonso Domingues


Foi durante o Estado Novo, uma referência no ensino técnico e profissional. Depois do 25 de Abril lá se encontravam as mais diversas culturas e etnias. Em 2010 fechou portas ficando ao abandono até hoje. Agora, será demolida para a concretização da TTT.


Se escrevermos o seu nome numa daquelas aplicações de transporte, parece que esta já não existe. A verdade é que não é fácil chegar aqui. «Tive vários amigos que andaram nesta escola. Sempre me contaram histórias muito felizes. O espaço é impressionante, é mesmo muito grande. Uma tristeza estar ao abandono. Vou deixá-la, mas peço que tenha cuidado. Está ao abandono e várias pessoas acabaram por se apoderar do espaço. Tenha cautela!», avisa o condutor que nos leva até ao local. Estamos na Rua Miguel de Oliveira, na Escola Secundária Afonso Domingues, onde durante vários anos a vida acontecia atrás dos portões verdes hoje enferrujados, degradados e destruídos. São 14 horas e, apesar de estarmos a meio de março, o sol queima, como se o pico da primavera já tivesse chegado. De quando em quando vemos passar uma pessoa que pára e observa com espanto a imponência deste edifício gasto pelo tempo e vandalizado por aqueles que ao longo destes 14 anos dele fizeram casa. A única vida que resta do espaço, são as pequenas flores que, em uníssono, pintam um quadro colorido. O portão está aberto. Ao entrarmos no terreno somos logo surpreendidos pelo lixo que percorre a terra e tenta tapar as ervas. Já dentro do edifício, com as paredes marcadas por graffitis, impera a escuridão e o frio, como se o passado tivesse sido apagado e abandonado. 

Do princípio ao fim 

A Escola Industrial Afonso Domingues (EIAD) foi fundada em 1884 e mudou-se para aqui em 1956. Foi durante o Estado Novo, uma referência no ensino técnico e profissional, nas áreas da mecânica e eletricidade. Na altura, era conhecida como «a universidade de Xabregas» devido aos seus cursos industriais, que eram frequentados sobretudo pelos filhos dos mestres operários da zona. Antes disso, as aulas eram lecionadas numa casa arrendada na Calçada do Grilo. Sensivelmente três anos mais tarde, acabou por se mudar para o rés do chão de um palacete na Calçada da Cruz da Pedra, na freguesia de São João. E, em 1897, abriu nas traseiras do Convento da Madre de Deus.

Em 1948, soube-se que a escola iria de novo mudar de lugar, desta vez para a Quinta das Veigas, em Marvila, hoje apelidada de Rua Miguel de Oliveira. O projeto, que ficou a cargo do arquiteto José Silva Costa, previa a construção de três edifícios, com capacidade para mil alunos, que seriam distribuídos por 31 turmas. A escola reabriu no dia 1 de outubro de 1956 e ocupava uma área total de aproximadamente 20 mil metros. 

Segundo a Associação Moradores e Empreendedores do Beato, o imóvel e respetivo logradouro integram a lista de bens imóveis de interesse municipal e outros bens culturais imóveis. Fechou as portas em 2010, por ordem do Ministério da Educação. A justificação? O terreno era necessário para a construção da Terceira Travessia sobre o Tejo (TTT), que ligaria Chelas ao Barreiro. E, sobretudo, para o novo TGV cujo plano acabou por não avançar. Agora, parece que esta será demolida no seguimento da construção de uma megaurbanização em Marvila. Em 28 hectares – entre Marvila e Beato –, de acordo com o Público, surgirá uma nova polaridade urbana, com parque verde como epicentro e ligação direta ao rio. Será necessário espaço para acessos à TTT (daí a demolição da escola).

Para tristeza de muitos 

As marcas de abandono são mais do que nítidas. O ambiente é húmido e aterrorizador. À medida que caminhamos pelos corredores, o som dos nossos passos ecoa por todo o espaço. Ainda se veem os autocolantes em forma de pés coloridos no chão como se nos indicassem vários caminhos. Ouve-se água a pingar e, ao fundo, algumas vozes e o latir de cães, como se alguém morasse aqui. Em todas as salas que visitamos, vemos sapatos, colchões, almofadas, cobertores, roupas sujas, plásticos, maços de tabaco vazios, restos de comida e dejetos, tanto animais como humanos. 

«Andei seis anos, desde o 7.º ao 12.º ano, na Escola Secundária Afonso Domingues, em Marvila», escreveu João Pimentel Ferreira no seu blogue Vera Veritas, em 2013. Segundo o mesmo, depois do 25 de Abril, a dita escola era frequentada pelos filhos da «bimbalhada rude, bárbara e iletrada, que vinha das zonas rurais do distrito de Viseu para as fábricas em Lisboa, e que morava no antigo Bairro Chinês, um dos maiores amontoados de barracas em Lisboa». No entanto, acrescenta, também era frequentada pelos luso-africanos que moravam no bairro da zona J de Chelas, «que povoaram aquela zona nos anos oitenta, vindos das ex-colónias». «A pitada de sal, era dada pela comunidade cigana, que vivia em bairros sociais como os da antiga zona N e zona M de Chelas», lembra ainda. Porém, de acordo com o texto do ex-aluno, a escola não foi sempre este «’melting pot’ genético-cultural». Teve alunos famosos como o escritor prémio Nobel, José Saramago.

Segundo escreveu o próprio escritor na sua biografia presente no site da sua fundação, entre 1935 e 1940, tirou o curso de Serralharia Mecânica nesta escola, já que os seus pais não tinham dinheiro para este continuar o liceu. «A única alternativa que se apresentava seria entrar para uma escola de ensino profissional», lê-se no texto. «O mais surpreendente era que o plano de estudos da escola, naquele tempo, embora obviamente orientado para formações profissionais técnicas, incluía, além do Francês, uma disciplina de Literatura», revelou. «Como não tinha livros em casa (livros meus, comprados por mim, ainda que com dinheiro emprestado por um amigo, só os pude ter aos 19 anos), foram os livros escolares de Português, pelo seu carácter ‘antológico’, que me abriram as portas para a fruição literária», continuou. Quando acabou o curso, Saramago trabalhou dois anos como serralheiro mecânico numa oficina de reparação de automóveis.

Relativamente ao cenário de abandono que já em 2013 se observava: «É o espelho do país que temos! Como é que se gastam milhares de euros em obras, para posteriormente se encerrar uma escola, por causa do projeto do TGV? E agora que o TGV não se faz, como é que se deixa assim o edifício ao abandono dos vândalos e dos indigentes? Não poderia ser reaberta, sendo uma escola com excelentes pavilhões para o ensino de cursos profissionalizantes? Sendo que agora o Governo até referiu que quer implementar o modelo alemão, no que concerne ao ensino de cursos mais especializados, área em que esta escola era sublime?», rematou João Pimentel Ferreira que tirou o curso de eletrónica e eletricidade. E a sua tristeza é partilhada por dezenas de pessoas que comentam o seu blogue e que deixam também elas o testemunho da sua passagem pela mesma escola. «Eu também fui aluno na EIAD de 1958 a 1963 e lá fiz os cursos de Mecânica (diurno) e de Desenhador Industrial (noturno)», escreveu três anos mais tarde na caixa de comentários, Manuel António Pires Abraços. «Posteriormente prossegui estudos. Fiz um bacharelato e uma licenciatura em engenharia. Digo com muito orgulho que a EIAD foi uma base sólida para a minha vida profissional como engenheiro nas empresas e como professor do ensino superior, nomeadamente no ISEL. De facto, choca-me toda a sucessão de incompreensíveis acontecimentos que conduziram ao encerramento da Escola Industrial Afonso Domingues!», lembrou. Além disso, no Facebook, existe ainda hoje um grupo de antigos alunos da Afonso Domingues. O Nascer do SOL tentou contacto, mas não obteve resposta. 

Segundo o Público, a megaurbanização em Marvila será uma operação de enorme impacto e que – juntamente com outros projetos urbanísticos previstos para as imediações –, «promete revolucionar a zona oriental de Lisboa». «A Unidade de Execução de Marvila (UEM) implica a construção de uma megaurbanização, espalhada por uma área de 28 hectares, com capacidade para 1427 fogos habitacionais, equipamentos diversos, um grande parque verde e a cobertura da linha ferroviária do Norte numa extensão de 400 metros, para facilitar o acesso à zona ribeirinha», escreveu a mesma publicação no final do mês passado. Tal como acima referido, dentro desse espaço, haverá ainda a construção das acessibilidades à Terceira Travessia do Tejo (TTT) na Lisboa e ainda a construção de novas acessibilidades rodoviárias (sobretudo pedonais e ciclovias). Assim, o edifício no qual muitos viveram os melhores anos da sua vida desaparecerá. Restará apenas a lembrança daquela que foi uma das escolas industriais mais conhecidas do país.